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Berlim (ALE) – The Road to Guantánamo (a estrada para Guantánamo), exibido anteontem na mostra competitiva do Festival de Berlim para uma platéia hipnotizada, numa sessão absolutamente lotada do Palácio da Berlinale, é um daqueles filmes que vêm para quebrar tabus e ilusões.

O docudrama do britânico Michael Winterbottom, diretor premiado com o Urso de Ouro aqui mesmo em Berlim há dois anos com Neste Mundo, utiliza uma linguagem quase oposta à do trator satírico Michael Moore para convencer o espectador da veracidade do que ele está vendo na tela.

Impactante e sem nenhuma concessão à gozação, Winterbottom e o co-diretor Mat Whitecross contam a história real de quatro jovens amigos britânicos de origem paquistanesa – Asif Iqbal, Ruhel Ahmed, Shafiq Rasul e Monir – que, ao irem da Inglaterra para o Paquistão participar do casamento de um deles, acabam sendo convencidos por um imã religioso a ir ao Afeganistão e conhecer o trabalho dos talibãs e seu governo. Ingenuamente, embarcam para Kadahar – o coração do movimento fundamentalista – e são apanhados no fogo cruzado e nos bombardeios americanos que iniciavam a sua intervenção no país afegão.

Ao tentar retornar ao Paquistão, são presos e, ao serem identicados como ingleses, entregues aos americanos numa instalação de triagem de prisioneiros da região próxima a Kunduz, um ex-ponto estratégico das forças talibãs. De lá, eles são mandados para a base aérea de Kandahar, e, junto com outros prisioneiros, vestidos com macacões alaranjados, são vendados e colocados em enormes aviões de transporte. Na verdade, ali começava o caminho que levaria três deles (Monir desaparece durante um bombardeio) ao terror dos campos de concentração Raio-X e Delta, dos fuzileiros navais americanos em Guantánamo.

A partir daí, os espectadores, chocados e presos em suas poltronas, são testemunhas dos abusos, agressões físicas e torturas – algumas tão sofisticadas que colocavam os métodos nazi-fascistas alemães da Segunda Guerra Mundial na Idade Média – a que os inquisidores militares, do FBI e da CIA, submetiam os prisioneiros engaiolados ao sol, sem poder falar, se movimentar ou até fazer suas preces.

Winterbottom e Whitecross não deixam pedra sobre pedra na edificação secular de defesa dos direitos humanos, que o povo americano construiu com fé absoluta no sistema e acreditava impossível de ser quebrado por seus próprios compatriotas militares, cuja imagem de retidão e obediência às leis sempre foram cultivadas como intocáveis.

The Road to Guantánamo, filmado em vídeo digital, tem o seu impacto psicológico aumentado por uma montagem extremamente ágil e, em aparente contradição, com imagens de momentos descontraídos e de alegria dos jovens em suas cidades natais na Inglaterra. Mais do que introduzir um elemento de poesia, no entanto, elas apenas acentuam, pelo contraste abrupto, a violência terrível que estava sendo mostrada na tela.

O filme é alinhavado pelos depoimentos estranhamente serenos de Asif, Ruhel e Shafiq, tomados pelos diretores após a libertação dos três devido sobretudo às pressões da opinião pública inglesa.

Não é de se esperar que The Road to Guantánamo tenha o sucesso de bilheteria de Fahrenheit 11 de Setembro, até por suas características mais sóbrias e não-proselitista. A reação que pode causar nas audiências dos Estados Unidos – caso o filme chegue até elas – é imprevisível. Mas uma coisa é certa de provocar: a perda das ilusões americanas de que o mundo é maniqueísta e dividido entre os bons e os maus, e que a maioria absoluta dos primeiros vive nos Estados Unidos.

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