“Matrix”, o blockbuster original que fez história em 1999| Foto: Divulgação/

A completa falência criativa de Hollywood, representada pelas notícias recentes de que a Warner Brothers está em vias de refazer o filme “Matrix”, o originalíssimo blockbuster de 1999 sobre as batalhas finais da humanidade em sua guerra contra as máquinas que a ultrapassaram, é óbvia demais – e, honestamente, também deprimente demais – para se passar muito tempo refletindo sobre o assunto.

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Já é mortificante o suficiente observar enquanto Hollywood repete os mesmos dispositivos narrativos de novo e de novo nos filmes do gênero de super-herói, que foram feitos já para serem repetitivos e depois recomeçarem tudo desde o começo. Ver a indústria se preparando para canibalizar os seus próprios blockbusters mais criativos me faz me perguntar se não seria melhor para a cultura de massa se a falha geológica de San Andreas em Los Angeles não abrisse logo de uma vez e tragasse tudo na área dos 40 quilômetros ao seu redor.

E a ideia de retomar “Matrix” não é ruim só porque destrói as minhas esperanças pelo futuro da originalidade nos filmes de ação, a ponto de eu me sentir tentada a abandonar tudo para ir estudar manuscritos medievais num claustro em algum lugar. Partindo de uma perspectiva financeira, a virtude de retomar uma propriedade intelectual que já pertence ao estúdio é que ela vem com um “pré-reconhecimento” de marca já pronto: a Warner Brothers pode botar fé que os espectadores têm uma familiaridade básica com o conceito por trás de “Matrix”, por isso a companhia não precisa perder tempo explicando-o para vender a nova versão. E, nesse sentido, a força de “Matrix” também representa um risco para a Warner Brothers: “Matrix” vem com um tipo de pré-reconhecimento que dificulta para o remake conseguir andar nas próprias pernas.

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A escolha das pílulas

Uma das ideias mais duradouras de “Matrix” e uma das características visuais mais fortes do filme é a escolha entre a pílula vermelha e a pílula azul que Morfeu (Laurence Fishburne), líder de uma resistência contra as máquinas, oferece ao hacker Neo (Keanu Reeves), que, no começo do filme, se vê explorando elementos do mundo que não lhe parecem bem certos. A pílula vermelha oferecerá a Neo a chance de ver e compreender a realidade da sua existência, mas correndo o risco de sair profundamente abalado pela experiência, talvez até mesmo destruído. A pílula azul o devolverá a uma existência relativamente confortável, sem quaisquer respostas para as perguntas que o perturbam, mas mantendo intactas sua paz de espírito e sanidade. Neo escolhe a pílula vermelha, é claro, e aí começa a nossa aventura.

Mas, mesmo que um novo filme “Matrix” nos levasse por uma direção radicalmente diferente, o que é que a pílula vermelha revelaria ao próximo protagonista e a nós? E o que isso significaria? Mesmo que ele ou ela não chegue a usar a pílula vermelha, o que as plateias entenderiam que seria a mensagem real do filme?

Eu pergunto isso, porque nos anos que se passaram desde que “Matrix” chegou aos cinemas, essa cena foi reutilizada por várias das facções da “direita alternativa”, mais famosamente os tais ativistas dos direitos dos homens. No sentido em que eles utilizam a cena, tomar a pílula vermelha revela não a descoberta de que os seres humanos estão sendo mantidos vivos por robôs que essencialmente os plantam e colhem para aproveitar os impulsos elétricos em seus cérebros, mas a ideia de que somos nós, as mulheres, quem governamos o mundo na verdade, explorando os homens com nossa sexualidade demoníaca, negando a guarda dos seus filhos, encurtando a sua expectativa de vida e fazendo acusações falsas de estupro.

Como comentou Aja Romano no site de notícias Vox, “a metáfora da Matrix funciona para praticamente todos os sistemas sociais que você possa conceber e odiar, mas o movimento da ‘direita alternativa’ o utilizou explicitamente para construir um circuito de retorno a fim de ampliar o alcance da sua misoginia e racismo. Em outras palavras, se você discorda ou oferece um ponto de vista oposto ao deles, é porque você ainda vive dentro da Matrix – você tomou a pílula azul, você é parte do rebanho desmiolado, você é um ‘cuck’ [a palavra significa literalmente ‘corno’, mas é utilizada para ofender homens vistos como sexualmente submissos] ou uma histérica, integrante da ameaça composta pelas políticas identitárias progressistas”.

Restrições do ambiente

Nada disso quer dizer que a Warner Brothers e o roteirista Zak Penn, envolvido no projeto, chegariam a utilizar essa interpretação de “Matrix”, além do mais, eu sequer consigo imaginar que as diretoras Lana e Lilly Wachowski, ambas mulheres transgênero, que dirigiram o filme original e suas sequências e vêm enfatizando o valor da diversidade e da liderança feminina em sua obra, poderiam apoiar ou até mesmo manter uma postura minimamente neutra diante de uma apropriação dessas dos conceitos que elas mesmas apresentaram.

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Qualquer nova versão de “Matrix” já chegaria a um público que não apenas conhece as ideias de base da franquia, mas também se vê dentro de circunstâncias em que pelo menos parte da discussão e debate sobre o filme está predeterminada. Fazer um remake de “Matrix” significa que não apenas os artistas envolvidos estariam seguindo num caminho já trilhado, como também sua habilidade de dizer qualquer coisa de nova e inédita sofrerá ainda as restrições do ambiente no qual o filme será lançado.

É horrível imaginar os artistas tendo que repetir de novo e de novo a mesma história de antes. É pior ainda imaginar que eles desejem dizer algo de original, mas em condições nas quais ninguém poderá ouvir ou absorver a mensagem.