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Escritor moçambicano: proesa poética em contos “musicais” | Daniel Castellano/Gazeta do Povo
Escritor moçambicano: proesa poética em contos “musicais”| Foto: Daniel Castellano/Gazeta do Povo

Até este mês eu nunca havia lido nada do Mia Couto. OK, não é a primeira vez que exponho minha ignorância por aqui. Mas neste maio comecei a ler um livro de contos baseados em letras do Chico Buarque. Chama-se Essa História Está Diferente – Dez Contos para Canções de Chico Buarque. Ali, entre outras, estão obras encomendadas a Luis Fernando Verissimo, Xico Sá, André Sant’Anna, João Gilberto Noll e… Mia Couto.

Eu levei quase duas semanas para ler um conto de 18 páginas. Não que eu leia assim tão devagar, mas a prosa poética de Mia me acariciou como um belo soco na alma. A música que ele escolheu como inspiração foi "Olhos nos Olhos". A história é normal, quase banal e o que me cativou e me fez reler a frase e voltar a cada vez ao início da página ou do próprio conto, inspirando-me e conspirando-me, foi o estilo.

Alguma coisa me lembrou a adolescência, quando descobri Nietzsche e absorvia seus livros mais pelo estilo da prosa do que por aquilo que conseguia compreender e apreender da filosofia. Ou quando me meti na empreitada de encarar os sonetos de Shakespeare no original só pela sonoridade.

Pois Couto se juntou a esses poucos casos em que, para mim, a forma elevou o conteúdo, coisa rara depois de tantos anos de jornalismo, que me deixa frio e ávido de informação direta e impessoal (exceto nos textos do José Carlos Fernandes, é claro).

A prosa de Mia Couto é cheia de surpresas poéticas que surgem à primeira frase do conto: "A paixão é um fio de chuva em vidro de janela". Mas a cada parágrafo vêm versos que dançam em sua frente no meio da prosa como uma bailarina em um ritmo diferente dos colegas, roubando toda a atenção. E não é por erro, é por estilo.

Compartilho aqui, aleatoriamente, alguns desses achados:

"Como dói o indeciso tempo do ‘talvez’".

"Adélia, sua mais recente paixão, foi um céu cruzando um pássaro".

"Os amigos são a pior maravilha do mundo".

(Ao ver suas camisas recém lavadas pingando no varal) "Cada pingo lhe surgia como gota de suor escapando de um corpo que já fora seu".

"A mãe nunca o deu à luz" (sobre a mãe superprotetora).

"O passado é mentira. Metade é feita de coisas não passadas. A outra metade é feita de coisas que nunca mais passarão".

"O nome é uma luz que um coração acende".

Pois eu, que gosto da prosa crua e até do verso seco, me vi arrebatado pelo estilo de Couto. Mas é preciso dizer que não se trata de uma prosa rococó, pois a história flui e os achados nos põem no clima do conto. São adornos? Sim. Dispensáveis? Não.

Agora que eu terminei, se é que alguma vez vou terminar mesmo esse conto, fico pensando porque eu adorei Couto. Eu, que compartilho a cidade de Dalton Trevisan, que espreme e extirpa a prosa de todos os adornos e nem por isso ela é menos poética? Eu, amigo e admirador, entre tantos, de Cristovão Tezza, Leminski, Karam, Otávio Duarte, Marcos Prado, Thadeu Wojciechowski, todos escritores sem muita firula. Sim, eu que acabo de ler e também adorar o novo livro do ótimo Sérgio Viralobos ("Piada Louca", editora Nossa Cultura, vai ser lançado no próximo domingo, no MON) e de escutar o novo disco poético de Marcelo Sandmann (que além dos ótimos livros vai lançar uma coletânea de peças musicais em um disco da banda ZirigDansk no Paiol, também neste domingo), dois poetas letristas nada barrocos, vou "trair o movimento" e me assumir como lírico?

Oras, por que não? Sempre fui um romântico tosco, meio punk e meio hippie. Sou um desacerto que brinca com a prosa na poesia e a poesia na prosa. Medíocre incrustrado no meio do caminho do meio de Buda batendo um papo com o meio termo de Aristóteles.

Nessa zona do meio agrião não há fronteira. A única fronteira que nos prende é aquela que levamos dentro da gente. Parafraseando Mia Couto, "nosso ventre é a própria Terra, toda inteira", e tudo o que vivemos vive nela. O importante é viver e não sofrer muito com essa condição de ser vivente. Ou como disseram Thadeu W. e Sérgio Viralobos, "nunca mais vou morrer de dor e sobreviver".

Vou ali mergulhar e me perder na literatura de Mia Couto.

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