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Guilhermino César foi um dos homens mais brilhantes e agradáveis que conheci. Fundador da Revista Verde, ao lado de Rosário Fusco e outros. Poeta, romancista, ensaísta, historiador e professor da UFRGS. No jornal Correio do Povo publicou crônicas e crítica literária. Ocupou cargos e recebeu diversos títulos, mas tenho comigo que, de todos, preferiu a indicação como patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, em 1990. Um homem generoso com alma de menino.

Pois certa ocasião fui parar em Ijuí, convidado a falar sobre filosofia no Brasil. Guilhermino falaria no dia seguinte, mas, como chegou antes, lá estava na plateia, feliz como criança, disposto a ouvir o que eu diria.

"Estou curioso", me disse ele – "Li seu livro e gostei muito".

Tremi na base. Imaginei objeções, reparos, mas não foi isso que aconteceu. Ele se divertiu muito e foi o primeiro a levantar o dedo – feito menino de escola – para fazer uma pergunta provocadora, cheia de paradoxos, o que causou um reboliço no auditório, ocupado em parte por alguns marxistas de plantão. Ficamos os dois chateando os marxistas. Ele se divertia às gargalhadas.

Ao final da palestra, exibiu meu livro aberto numa página qualquer.

– Veja, me disse.

Olhei sem saber o que ver.

– Meus dedos, apontou ele com seu narigão rombudo.

Ele colocara os dois polegares nas margens do livro aberto.

– Veja, disse. Há lugar para os polegares. Livro tem que ter lugar para os polegares. Livro com margens estreitas é um crime editorial e literário.

Dito isso, acrescentou que livro tem que ficar de pé na prateleira. E sentenciou:

– Tem que ficar de pé na prateleira para ficar de pé na eternidade!

Hoje, qualquer frequentador de livraria sabe que grande parte dos livros está de pernas para o ar. O motivo é simples. Editores, obedecendo à estapafúrdia norma criada por burocratas, passaram a imprimir as lombadas de cima para baixo, alegando que, quando deitados e empilhados, fica fácil ler os títulos.

Ora, livro não foi feito para ficar deitado, mas de pé. Lemos as lombadas de baixo para cima, seguindo o sentido da escrita/leitura, da esquerda para a direita. Para corrigir essa bobagem, os livros, quando nas prateleiras, estão condenados a ficar de ponta-cabeça para que as lombadas possam ser lidas da esquerda para a direita. Ou seja: ao se inverter a lombada, os livros foram obrigados a dar uma cambalhota.

Sobre esse desacerto, não tive oportunidade de saber a opinião de Guilhermino, falecido em 1993. Mas estou certo de que ele, em alguma instância do cosmos, estará nesse momento exibindo os livros que carregou consigo para a eternidade, onde deve ser muito respeitado por anjos, arcanjos e querubins:

– De pé. Compreende, meu anjo? Livro tem que ficar de pé. Lá em baixo e aqui na eternidade. E a lombada deve ser impressa da esquerda para a direita, no sentido da escrita e da leitura. Do contrário, os livros ficam de ponta-cabeça e a gente sofre torcicolo.

E, entre gargalhadas, arrematará, para delírio das criaturas celestiais:

– Imagine o perigo, meu anjo. Quanto da cultura do Brasil se resume às lombadas!

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