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Miranda e Próspero observam um monstruoso Caliban em ilustração de A Tempestade | Henry Inman/Reprodução
Miranda e Próspero observam um monstruoso Caliban em ilustração de A Tempestade| Foto: Henry Inman/Reprodução

As ideias de selvageria e liberdade andam juntas na literatura. Quase contemporâneos e vivendo no boom das navegações, Daniel Defoe e Shakespeare viram um prato cheio nesses temas. A Tempestade, última peça do bardo e dramaturgo, cuja primeira encenação teria ocorrido em 1611, cria um mundo mágico repleto de espíritos subjugados a Próspero, duque de Milão cujo trono fora usurpado pelo irmão.

Ele promete libertar Ariel, seu mais fiel ajudante alado, mas somente após concluir sua última missão, de dar a devida paga ao irmão infiel e, de quebra, arranjar um marido para a filha. Miranda, trazida aos três anos pelo pai em fuga, pouco conhece do amor, e é, a seu modo, prisioneira do pai.

Até o noivo, Ferdinando, precisa passar pela provação do serviço. Por fim, há o selvagem Caliban, nativo da ilha, filho de uma bruxa, intragável, fedido, mal-educado. À menor exposição ao alcoolismo, vira presa fácil. Curioso é que, quando todas as intrigas se resolvem e os europeus voltam para seus reinos, Caliban ganha a liberdade e sua ilha de volta – insight que só teria um autor de vanguarda (do feminismo, da psicanálise, do pensamento pós-colonialista) como Shakespeare.

O ser humano em estado selvagem incita o tema da liberdade e seu oposto porque é uma presa fácil – por que não subjugá-lo?

Em Robinson Crusoé (Daniel Defoe, 1719), o náufrago é todo condescendência quando vê um fugitivo de canibais lançar-se ao mar. "Não poderia ter melhor oportunidade para arranjar um companheiro e auxiliar, talvez mesmo um amigo", diz, antes de nomeá-lo Sexta-feira.

O termo canibal, que tanto despertou horror e curiosidade entre os civilizados da época, teria inspirado o nome de Caliban. E o selvagem de Shakespeare é tão desprovido de esperteza quanto o de Defoe. "Tudo aquilo era demais para sua cabeça primitiva", diz Crusoé, após matar com sua espingarda um algoz do nativo – que rapidamente aprende palavras como sim e não e chama Crusoé de "patrão".

Se o conceito de liberdade num texto como este, do século 18, parece limitado ao leitor de hoje, é possível dizer que a tese do "bom selvagem" continua em voga.

Bonzinho e ignorante, essa continua a ser a representação do primitivo. Uma ideia burilada de forma muito criativa pelo sul-africano J. M. Coetzee, Nobel de Literatura de 2003, em Foe (que significa adversário, em inglês).

Aqui, Friday é um negro resgatado pelo náufrago inglês Cruso após ter a língua cortada. Ele é incapaz de maldades e segue seus amos como uma sombra, mas é um poço de incógnitas. Somente o aprendizado da escrita, para que escreva sua própria história, poderia dar vazão a suas verdades.

O livro filosofa sobre as questões de liberdade e do trato com o outro, o "inferior". "Enquanto ele for ignorante, podemos nos dizer que seus desejos nos são desconhecidos, e continuar a usá-lo a nosso bel prazer. (...) Há uma necessidade que sentimos, todos nós, em nossos corações, de ser livres, mas qual de nós pode dizer o que é realmente a liberdade?"

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