
Entrevista com Eliane Brum, jornalista e escritora.
Teu trabalho é, em alguma medida, o de escritora tanto quanto o de jornalista?
Para mim, jornalista é um contador de histórias reais. Sempre vi o ofício dessa forma. Nesse sentido, como repórter, sou uma escritora de histórias reais. Fico muito honrada quando identificam meu trabalho com o jornalismo literário, mas pessoalmente acho que o jornalismo não precisa ser adjetivado literário, investigativo etc. Implico um pouco com classificações e jargões. Correndo o risco de ser simplista, acho que existe bom jornalismo e mau jornalismo. Bom jornalismo é aquele que apura exaustivamente todos os detalhes da realidade sobre a qual vai contar. Vai muito além do fulano disse ontem, sicrano confirmou... O bom jornalista recusa-se a ser reduzido a um aplicador de aspas em série, porque reduzir o mundo apenas ao que é dito é reduzir a complexidade do real.
Embora tuas matérias sejam claramente calcadas na realidade cotidiana, você em algum momento se permite a invenção?
Acredito que, para o bom jornalismo, aquilo que não é dito é tão importante como o que é falado. Mas isso não tem nada a ver com invenção. Por isso, implico um pouco com o jargão de jornalismo literário. Por um lado, parece que fazer jornalismo, substantivo, não seria o suficiente. Por outro, o literário dá margem à falsa ideia de que se pode inventar alguma coisa. Não há liberdade poética em jornalismo.
Apesar de jornalísticos, teus textos apostam na riqueza e profundidade de personagens, basicamente no que se aproximam, de novo, da literatura. Retratar uma pessoa numa reportagem não é, de certa maneira, inventá-la?
Primeiro, eu não gosto da palavra personagem. Pessoas reais não são personagens, pelo menos não para uma reportagem. Personagem é um jargão da ficção, me parece. Acho que, no jornalismo, quando tratamos uma pessoa real como "personagem" de uma história, estamos nos distanciando dela. E não no bom sentido. Mas, por mais perto que eu tente chegar das verdades daquela pessoa, elas serão mediadas pelo meu olhar, pelo olhar de quem conta. Só que esse olhar tem de ser o mais delicado e o menos invasivo possível. Uma das minhas maiores preocupações quando retrato alguém é que a pessoa retratada se identifique com o retrato, se encontre nele, se reconheça. Do contrário, é uma traição e uma incompetência.
Existe hoje, aparentemente, uma preferência maciça do público leitor pela não-ficção. Por que, na sua opinião, isso acontece?
Você acha? Não tenho certeza. Acho que as pessoas gostam de histórias bem contadas, sejam de ficção ou não. E, se essas boas histórias permitirem uma identificação com a vida de quem lê, e principalmente com seus sonhos, melhor ainda. Talvez aí esteja uma explicação para uma parte desse aumento de interesse.
Ainda levando em conta essa preferência pela não-ficção, teus textos criam algum tipo de estranhamento por parte do leitor médio de jornais e revistas, justamente por extrapolarem aquela (certamente falsa) ideia de objetividade do texto jornalístico?
Acho que não é um estranhamento. Pelo retorno que tenho dos leitores, especialmente agora que a internet facilitou esse contato, é uma identificação maior. Eles sabem que sou uma pessoa escrevendo sobre outras pessoas. Procuro deixar muito claro para o leitor que é alguém que está escrevendo e não uma instituição. E também deixo muito claro onde a minha interferência alterou a história que estou contando. Por exemplo, no ano passado, testemunhei os últimos meses de vida de uma mulher chamada Alice. Um dos médicos havia dito a ela que, se ganhasse peso, poderia fazer uma cirurgia e ficar curada. Não era verdade, o tumor que a vitimava era inoperável. Então, ela vivia nesse dilema, achando que não ficar curada era culpa dela. Em determinado momento, eu disse a ela que não era culpa dela, que o tumor era inoperável. Conto isso na matéria, porque é uma informação fundamental para que o leitor possa compreender o que aconteceu depois. Essa interferência pesou no restante da narrativa.



