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Ler não-ficção é visto como aprendizado

 | Foto: Divulgação
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Entrevista com Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista.

Quanto de reportagem há em Elza, a Garota? Mesmo se tratando declaradamente de um romance, o livro perigou pender mais para o jornalismo do que para a ficção?

Não perigou porque eu não queria isso. No momento em que decidi escrever um romance e não uma reportagem, contrariando a encomenda inicial da editora, estava claro que a ficção teria que ser a nota dominante, com o discurso do ensaio histórico (um ensaio bem livre e jornalisticamente pouco convencional, na verdade) embutido nela e não o contrário. Não acho que faça sentido usar a ficção como simples adorno de um relato não-ficcional. Por natureza, ela me parece um discurso mais forte, mais revelador e mais ousado.

Como foi criar os estilos – ou vozes – que narram a história de Elza? No relato jornalístico presente no romance, você chegou a se pegar, desavisadamente, mergulhado no texto literário?

Desavisadamente, não. Como eu disse, o texto literário dava as cartas o tempo todo. Ao longo de todo o processo, eu via a parte que se poderia chamar de ensaio histórico como sendo escrita por Molina, o personagem fictício do jornalista-escritor a quem Xerxes, o velho comunista, conta sua história. É uma das leituras possíveis. Se, no fim do livro, tive o cuidado de publicar uma nota em que assumo responsabilidade pelas informações e juízos con­­tidos nos trechos não-ficcionais, foi apenas por achar que, terminado o jogo da ficção, isso era um imperativo ético. Aquelas pessoas foram entrevistadas por mim, não pelo Molina. Como você diferenciou, ainda no caso de Elza, o tratamento dado aos personagens reais, em comparação àquele reservado aos ficcionais, na trama? Você diria que têm todos o mesmo peso e importância?

Não. O melhor e mais importante personagem do livro, tão importante que assume uma das vozes narrativas, é sem dúvida Xerxes. Os personagens "reais" aparecem filtrados por esse prisma na maior parte do livro. Um prisma que, como se verá no de­­senrolar da história, é bem pouco confiável. Esse efeito estava nos planos desde o início: fazer o leitor relativizar a História (com agá maiúsculo) e ver nela apenas uma entre muitas versões possíveis. Os fatos, em si, são sempre meio pobres.

Existe hoje, aparentemente, uma preferência maciça do público leitor pela não-ficção. Por que, na sua opinião, isso acontece?

Acredito que seja por existir uma identificação da não-ficção com a verdade, e portanto da ficção com a mentira. Isso se liga ao fenômeno do utilitarismo que se espera da leitura, ao sucesso da autoajuda. Ler não-ficção é visto como aprendizado, ler ficção como perda de tempo. O curioso é que frequentemente ocorre o contrário. Trata-se de uma visão filistina e ingênua. Como se não pudesse haver verdade, e verdade lancinante, no "inseto monstruoso" de Kafka, por exemplo. Elza se beneficiou dessa preferência pela não-ficção? Ou seja, a história real atraiu leitores que normalmente não se interessariam por um romance?

É possível que sim. A cobertura da imprensa foi certamente mais generosa do que a que costuma ser dispensada a livros de ficção pura – em alguns casos, a matéria foi publicada na seção de Política, que tem muito mais leitura que os suplementos literários. Se isso aconteceu, ótimo. Mas acho que quem ler o livro com olhos livres perceberá logo que, qualquer que fosse sua expectativa inicial, está diante de um romance.

Por que a tendência atual dos autores de injetar fatos, digamos, "comprováveis", ou mesmo a própria história de vida, nos enredos de ficção?

Não sei se isso chega a caracterizar uma tendência. O que talvez esteja ocorrendo é uma tentativa de alargamento da forma romance, que muita gente diz por aí que morreu. Na minha opinião, não só não morreu como tem essa capacidade genial de incorporar outros registros textuais sem perder sua identidade. Pode incorporar desde um discurso histórico, jornalístico ou biográfico até uma receita de bolo ou um manual de taxidermia. Se for bem resolvido como romance, romance será.

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