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Há pelo menos três maneiras de ler o romance “S.”, o ousado projeto editorial de J.J. Abrams, o badalado criador dos seriados “Felicity” e “Lost” e diretor de “Star Wars – O despertar da força”.

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Após romper o lacre da caixa onde vem o livro, pode-se começar pela anotação no alto da segunda folha: “Caso encontre este livro, por favor devolva-o à sala P19, Biblioteca Central, Pollard State University”. Ou então pelo prefácio escrito pelo tradutor F.X. Caldeira para “O navio de Teseu”, romance de um tal V. M. Straka. Ainda há a opção de ir direto para o texto de Straka.

 
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“S.” não é exatamente um romance. Está mais próximo de um quebra-cabeça literário. O livro, escrito em colaboração com Doug Dorst, tem capa dura, páginas envelhecidas, adesivo de biblioteca na lombada e até a ficha das datas em que foi pego e depois devolvido. Afinal, “O navio de Teseu”, de Straka, foi escrito na década de 1940. Foi o último trabalho do autor, cuja biografia é nebulosa e incluiria a participação em atentados, sabotagens e conspirações internacionais.

A obra só foi publicada graças a Caldeira, que salvou os manuscritos e fez o texto final. Além do prefácio, o tradutor escreveu também uma série de notas de rodapé na edição. Nas margens do livro, o estudante de doutorado Eric e a aluna de graduação Jen desenvolvem um caloroso debate sobre o romance, Straka e Caldeira.

Livro

“S.”

J.J. Abrams e Doug Dorst. Tradução de Alexandre Martins e Alexandre Raposo. Intrínseca, 472 pp., R$ 99,90.

O cruzamento dessas três narrativas constitui a trama de “S.”, que marca a estreia literária de Abrams. O agora escritor teve a ideia ao encontrar um livro esquecido num banco de aeroporto.

Ao folheá-lo, encontrou um pedido anotado à mão: “a quem encontrar esse livro, por favor leia, leve para algum lugar e deixe que outra pessoa o encontre”. Daí veio a inspiração para a história de duas pessoas que se comunicam através das páginas de um livro em vários momentos.

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Sim, porque as conversas de Eric e Gen nas margens não obedecem a uma sequência temporal. Na mesma página, há anotações escritas em momentos diferentes. Mais um desafio imposto ao leitor. Perguntado qual a melhor maneira para de ler “S.”, Dorst, convidado por Abrams para a empreitada, diz que “sou provavelmente a pior pessoa para responder isso”.

Trecho de “S.”, de J.J. Abrams

“Entardecer. O Bairro Velho de uma cidade onde o rio encontra o mar.

“Um homem de sobretudo cinza-escuro caminha pelas ruas do bairro, uma trama de vias de paralelepípedos que partem do porto e se espalham pela vizinhança onde os cheiros de especiarias variam, mas a triste decrepitude é partilhada. As construções. enegrecidas pela fuligem de séculos, se elevam acima dele, bloqueando a maior parte do céu e a todo momento tornando difícil saber se ele está indo na direção da água ou se afastando dela.

“O homem suspeita de que esta é uma cidade na qual mesmo quem passou toda a vida nela se vê perdido. Mas ele não sabe se é uma dessas pessoas. Não sabe se já esteve aqui antes. Não sabe por que está ali naquele momento.

“À medida que o céu escurece, as construções parecem declinar precariamente. Na luminescência gordurosa dos postes eventuais (de aparência nova e com um brilho forte, incongruente com o ambiente), elas lançam sombras em ângulos estranhos e aparentemente aleatórios que sugerem que aqui a luz se comporta de forma diferente; esta é uma cidade de geometrias antigas e falhas.

“Cai uma garoa constante.”

(Trecho de “S.”, de J.J. Abrams e Doug Dorst, traduzido por Alexandre Martins e Alexandre Raposo.)

“Eu nunca tive que confrontar todos os textos na página. Se tentasse ler tudo ao mesmo tempo, provavelmente meu cérebro iria explodir”, afirma o escritor, em entrevista por telefone de sua casa em Austin, no Texas.

“Há os leitores muito disciplinados que leem primeiro o romance de Straka e depois as notas de acordo com as cores das canetas: primeiro as em azul e preto, depois em laranja e verde etc. Eu não consigo me imaginar tendo esse tipo de disciplina.”

Publicada nos Estados Unidos em novembro de 2013, a edição brasileira consumiu cerca de três anos de trabalho.

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A Intrínseca comprou os direitos de publicação antes da obra estar pronta. O primeiro contato com o original em inglês deixou todos surpresos, conta o gerente de produção Raphael Pacanowski.

Foi preciso contratar um designer especialista em caligrafia para fazer os diálogos de Eric e Jen. E ainda havia todo o material encartado dentro da obra: papéis avulsos, cartas, cartões postais e até um guardanapo.

“Foi feita uma pesquisa de canetas, das letras dos personagens. O caligrafista precisou estudar como o americano escrevia para conseguir mergulhar em cada personagem”, diz Pacanowski. “Algumas editoras lá fora, como a francesa, decidiram aplicar a fonte digital, mas queríamos manter a originalidade do projeto.”

Para Dorst, o projeto de “S.” explora as características únicas que o livro físico oferece.

“Nós temos um amor pelo livro físico e não é nada contra os livros eletrônicos. Esse projeto é uma maneira de lembrar e celebrar a experiência singular que o livro físico pode oferecer. Queríamos que fosse o objeto mais belo, interessante e tátil possível. A maneira como isso foi feita ficou muito bonita”, diz o autor.

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Por causa do alto custo de produção, a Intrínseca imprimiu os 12 mil exemplares da primeira edição na China, onde os papéis também foram encartados manualmente. Cada um deve ficar numa página específica e, para os mais atrapalhados, há um vídeo na internet que ensina o lugar correto. Pacanowski garante que a produção no exterior foi tomada por falta de opções no Brasil. A editora analisa a performance das vendas para decidir se será feita uma nova tiragem.

“Fui com o livro nas principais gráficas de São Paulo com que trabalhamos e ninguém queria fazer. Toda a parte manual é um processo muito caro. Para manter a qualidade (exigida pela produtora de Abrams) não tinha como fazer aqui”, diz Pacanowski.

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