Mulheres marcharam com cartazes lembrando ficção distópica de Margaret Atwood| Foto: Nina Westervelt/NYT

Em janeiro, quando centenas de milhares de mulheres se reuniram em Washington para protestar contra a posse do presidente Donald Trump, a novelista Margaret Atwood começou a receber uma série de notificações no Twitter e no Facebook. As pessoas lhe mandavam imagens de manifestantes com cartazes que mencionavam seu romance distópico, “O Conto da Aia”.

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“Margaret Atwood apenas como ficção!” dizia um cartaz. “’O Conto da Aia’ não é um manual de instruções!”, dizia outro.

“O número era espantoso”, disse Atwood.

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“O Conto da Aia” se passa em um futuro não muito distante, na Nova Inglaterra, quando um regime totalitário toma o poder e os direitos civis são tirados das mulheres, e foi publicado há 32 anos. Porém, nos últimos meses, Atwood tem visto leitores ansiosos enxergando paralelos terríveis entre a sociedade opressiva do romance e o objetivo da política do governo republicano atual de cercear direitos reprodutivos.

Em 2016, as vendas do livro, que está em sua 52ª edição, cresceram cerca de 30 por cento em relação ao ano anterior. A editora do Atwood reimprimiu cem mil cópias para atender ao aumento da demanda após a eleição.

“Fatos alternativos”

“O Conto da Aia” é um dos vários romances distópicos clássicos que parecem tocar os leitores em um momento de grande ansiedade sobre a situação da democracia americana. As vendas de “A Revolução dos Bichos” e de “1984”, ambos de George Orwell, também subiram drasticamente, levando-os ao topo da lista dos mais vendidos da Amazon.

Outras obras que os leitores de hoje provavelmente não veem desde o ensino médio, mas que já entraram para essa lista são: “Admirável Mundo Novo”, romance de 1932 de Aldous Huxley, história de um futuro distópico na Inglaterra, no ano de 2540, e o romance de 1935 de Sinclair Lewis, “It Can’t Happen Here”, uma sátira sobre um candidato presidencial belicoso com uma plataforma populista nos Estados Unidos, mas que não passa de um demagogo fascista. Não faz muito tempo, ele estava em 9º lugar na lista da Amazon; “Admirável Mundo Novo”, em 15º.

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O aumento da popularidade dos romances distópicos clássicos parece refletir uma reação dos leitores, preocupados com os tons autoritários da retórica de Trump. O interesse em “1984” cresceu devido a uma série de comentários do presidente, do secretário de imprensa, Sean Spicer, e de sua conselheira, Kellyanne Conway, no qual desafiam relatos da mídia sobre o tamanho da multidão no dia da posse e sobre seu turbulento relacionamento com agências de inteligência dos EUA. Sua insistência em dizer que os fatos dependem de interpretação culminou com a incrível declaração de Conway no programa da NBC, “Meet the Press”, quando ela disse que Spicer não havia mentido sobre o tamanho da multidão, mas que usava “fatos alternativos”.

Linguagem política

Para muitos observadores, seu comentário lembrou a visão de Orwell de uma sociedade totalitária na qual a linguagem se torna uma arma política e a própria realidade é definida por quem está no poder. Essa observação gerou uma enxurrada de mensagens no Twitter mencionando Orwell e “1984”. O livro começou a subir na lista da Amazon, o que, por sua vez, atraiu mais leitores, em uma espécie de resposta orientada por algoritmos. Foi uma publicidade gratuita e imensa para um romance de 68 anos de idade.

O apresentador da CNN, Van Jones, recentemente leu uma famosa passagem do livro sobre a tentativa de forçar os cidadãos a “rejeitar as provas vistas e ouvidas” e pediu que os telespectadores não se tornem complacentes quando confrontados com uma imensidão de falsidades. “Não vamos tomar o caminho orwelliano, e espero que Trump não esteja tentando nos levar por ele”, disse.

Claro, não é a primeira vez que leitores e especialistas utilizam o romance para criticar ações e declarações de um governo. A correlação se tornou um padrão, a ponto de o nome de Orwell virar adjetivo. E porque tantos leitores americanos tiveram que ler o livro na escola ou na faculdade, a maioria tem uma certa familiaridade com seus temas básicos, como os perigos do autoritarismo e o uso de termos como “Big Brother”, que pode descrever uma infinidade de coisas, desde o Google até a segurança nacional.

“É uma referência que as pessoas podem usar em resposta ao embuste, à propaganda e ao uso indevido da linguagem pelo governo, coisas que ocorrem o tempo todo. Algumas coisas que essa administração está fazendo deixaram muita gente em estado de alerta, e as pessoas estão atrás de referências para compreender a nova realidade”, disse Alex Woloch, professor de Inglês na Universidade de Stanford que escreveu sobre as raízes da linguagem política de Orwell.

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Paralelos com o presente

A súbita relevância desse tipo de livro reflete o interesse público renovado em obras de ficção especulativa com décadas de idade, que funcionam como guias para a compreensão de nosso atual momento político. Os leitores que agora têm que lidar com solavancos na política americana, quando fatos facilmente verificáveis são objeto de debate e quando as liberdades civis e as normas democráticas parecem frágeis, estão buscando orientação e informação em romances distópicos.

“Muitos desses livros são cada vez mais importantes para o leitor americano médio, que querem saber o que está por vir, porque nunca passamos por isso antes. A língua está sendo usada para desestabilizar a percepção da realidade e isso é algo novo para este país”, disse o romancista Gary Shteyngart, autor do romance “Super Sad True Love Story”.

Muitos destes romances são best-sellers eternos e itens básicos de listas de leituras escolares, mas as editoras não estavam preparadas para o aumento da demanda. Logo após a eleição, “It Can’t Happen Here”, livro satírico de 82 anos de idade que foi popular em sua época, mas nunca consagrado como um clássico, esgotou na Amazon e no site da Books-a-Million. As vendas em 2016 cresceram 1.100 por cento em relação a 2015, de acordo com a editora.

“O livro certamente é conhecido e citado desde sua publicação, mas agora realmente pegou porque há muitos paralelos surpreendentes com o presente. É uma sátira sobre a política de alguém como Trump”, disse Michael Meyer, professor emérito de Inglês da Universidade de Connecticut, que escreveu uma introdução da obra.

“Apelo autoritário”

A trajetória de “1984” foi ainda mais dramática. Desde a posse, as vendas do livro subiram 9.500 por cento, de acordo com Craig Burke, diretor de publicidade da Signet Classics. O livro é o mais vendido no site da Barnes & Noble e apareceu entre os dez primeiros da lista da Indie Bestseller.

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O romance é um best-seller confiável – foi sucesso instantâneo quando lançado em 1949 e continua a vender cerca de 400 mil exemplares por ano nos Estados Unidos. Mesmo assim, a recente demanda pegou desprevenidas a editora e algumas livrarias. A Signet, que publica a edição brochura popular, reimprimiu mais cópias dele e de “A Revolução dos Bichos”.

“Recebemos grandes encomendas de todos os nossos clientes. Só nesta semana, imprimimos cerca de metade do que normalmente vendemos em um ano”, disse Burke.

Editoras e livrarias rapidamente aproveitaram o furor, lucrando com o interesse renovado em títulos de décadas de idade. A página de “It Can’t Happen Here” na Amazon mostra agora em destaque uma citação de Salon, chamando o livro de “o romance que antecipa o apelo autoritário de Donald Trump”. A Pinguim iniciou uma campanha publicitária nas redes sociais para promover “1984”, incluindo posts com citações do livro no Facebook e no Instagram.

Dezenas de novos comentários sobre ele apareceram na Amazon, e alguns leitores traçaram paralelos entre recentes acontecimentos políticos e a visão arrepiante de Orwell.

“Infelizmente, o livro é mais que relevante hoje nos EUA”, diz um post. “Hoje, Kellyanne Conway anunciou que vimos fatos alternativos”, escreveu outro, acrescentando, “Preparem-se para uma festa no estilo 1984”.

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Talvez haja outra razão para que os leitores voltem a “1984” e outros clássicos distópicos em tempos inquietantes: às vezes, é bom lembrar que as coisas podiam ser piores.