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Jonathan Franzen: “o grande escritor da América” divide opiniões | Divulgação
Jonathan Franzen: “o grande escritor da América” divide opiniões| Foto: Divulgação

Mais de dois séculos de história do romance tornaram um tanto arredia a recepção de leitores mais especializados a espécimes, digamos, "puros" da arte romanesca, como os livros do norte-americano Jonathan Franzen. Um comentário típico sobre o mais recente deles, Liberdade, partiu do jovem escritor gaúcho Antônio Xerxenesky. Depois de aplicar ao romance de Franzen definições como "realismo educado" e "literatura tranquila, sem espaço para a invenção", pespegando-lhe a descrição metafórica de livro com "barba bem feita e camisa por dentro da calça", Xerxenesky se pergunta, admirado: "Quem esperava que um livro tão comportado e ‘correto’ seria considerado pela crítica uma das obras mais importantes do século 21?"

De fato, a crítica mais recorrente a Liberdade tem apontado sua forma supostamente "conservadora": acusam-no de parecer "um romanção do século 19" – e suas mais de seiscentas páginas chegam mesmo a ser usadas como prova do anacronismo de um livro que, além disso, traria a marca (o pecado?) original do romance como gênero: o realismo. Sérgio de Sá, autor de A Reinvenção do Escritor, prefere outro ponto de vista: "As muitas páginas podem ser sinal do contrário: quem está disposto a encarar o calhamaço?", questiona, para logo se valer do próprio rótulo crítico aplicado ao livro, mas agora em sua defesa: "E não haveria problema se fosse conservador da boa literatura. Não se pode pedir à literatura que seja experimentação em tempo integral".

"Ficção revivalista"

Um dos primeiros leitores brasileiros a comentar o fenômeno Franzen, em resenha publicada no blog Todoprosa (http://veja.abril.com.br/blog/todoprosa), muito antes do lançamento da tradução de Liberdade no Brasil, o também escritor Sérgio Rodrigues constatava, no mês passado, quando o "tsunami franzeniano" já atingia a costa brasileira: "A revalorização da ficção como arte narrativa por excelência, em ligação direta com a tradição romanesca do século 19, parece ser o pano de fundo para o curioso fenômeno de canonização do escritor americano Jonathan Franzen".

No post em questão, o blogueiro não se furta a uma avaliação pessoal do que leu ("O livro é bom? É. Maravilhoso? Longe disso;"), mas aprofunda a discussão com duas perguntas: "1) a literatura séria, isto é, artisticamente ambiciosa, ainda tem algo a dizer ao mundo?"; e "2) se tem, qual é a corrente estética mais bem aparelhada para dar conta da tarefa?" A resposta à primeira questão é positiva, até entusiástica; à segunda, ele responde com uma defesa do que, na essência, é o romance tradicional ou certa "ficção revivalista", a qual "retoma o legado de Tolstoi, [...] investindo em histórias realistas carnudas, boas de ler, de preferência longas, com personagens esféricos situados em contextos histórico-sociais bem definidos".

"Caretice, dirão alguns", prossegue o próprio Rodrigues, em seu diagnóstico dessa súbita revalorização midiática do romance. "Mas descartar tal postura como conservadora me parece, a esta altura da história, não só fácil como inconsistente: se pagar tributo à rica narrativa de Tolstoi – como faz Franzen explícita e imodestamente em Liberdade – é uma prova de conservadorismo, cultuar o espírito vanguardista da primeira metade do século 20, ideal eterno de muitos críticos, também é. Um dos problemas enfrentados pela literatura neste início de terceiro milênio é que tudo já tem uma tradição".

Às vésperas de mais uma Festa Literária Internacional de Paraty, pelo menos mais um nome estrangeiro aparece, para Sérgio Rodrigues, como exemplo de grande escritor com pretensões a comentarista de uma época: o norte-americano James Ellroy. "Considero provável que Ellroy – e não Franzen – continue sendo lido daqui a cem anos, caso ainda haja quem leia alguma coisa daqui a cem anos", arrisca o titular do blog Todoprosa. O decano dessa breve lista de romancistas candidatos a "consciência da América" poderia ser Philip Roth, com a estupenda trilogia formada por Pastoral Americana, Casei com um Comunista e A Marca Humana.

Passado e presente

Quem gosta do romance mais tradicional, fiel a suas origens realistas, certamente apreciará, ainda, um quarto autor de língua inglesa: o britânico Ian McEwan. Sem a mesma pretensão dos grandes painéis de época, já em 2005, com Sábado, o inglês se valia do gênero em que é especialista para uma reflexão sobre este início de século e milênio. O livro trata da guerra ao terror e do sentimento geral de insegurança reinante na Inglaterra após o 11 de Setembro, voltando a um dos embates prediletos de McEwan: o que opõe a fé, em especial a crença fanática ou fundamentalista, ao pensamento racional que herdamos do Iluminismo. Conforme comentou o filósofo Richard Rorty à época do lançamento de Sábado, "McEwan não tem mais certeza sobre essas questões do que qualquer um de nós. Mas seu romance ajuda a nos atualizarmos sobre nós mesmos". Não deixa de ser uma boa definição do gênero em si.

A pergunta seguinte aos especialistas é: e aqui, em terras brasileiras, que autor contemporâneo tentou ou tenta ser Franzen, Ellroy, Roth, McEwan? Para Sérgio Rodrigues, "apenas João Ubaldo Ribeiro tem uma obra com ambição, maturidade e peso equivalentes, do tipo que não abre mão do valor supremo da literatura – contar boas histórias – mas, para tanto, faz avançar as fronteiras das linguagens estabelecidas". O blog Todoprosa, em enquete de 2007 com mais de uma centena de profissionais ligados à literatura, consagrou João Ubaldo e seu Viva o Povo Brasileiro – também um mural, cobrindo quatro séculos da formação do Brasil – como o romance nacional mais importante dos últimos 30 anos.

À mesma categoria, a dos painéis históricos, ainda que sem comparar, aqui, a qualidade das tentativas, talvez se pudesse acrescentar duas séries de romances: O Tempo e o Vento, de Erico Veríssimo, saga da formação do Sul; e sua réplica ao norte, as Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro, tetralogia de Marcio Souza a ser completada, ainda, pelo quarto volume. Mais recentemente, o mineiro Luiz Ruffato tem se dedicado a traçar o que define como "uma reflexão sobre a formação e a evolução do proletariado a partir da década de 50, quando tem início a profunda transformação do nosso perfil socioeconômico". Ruffato se refere à série de cinco livros – o quinto deles já no prelo – que batizou de Inferno Provisório e vem publicando desde 2005.

Predomina, porém, em todas essas obras, uma preocupação mais com o passado do que com o presente – seriam, pois, mais do que só romances, romances "históricos"? A distinção, espinhosa, não cabe neste espaço, mas vale, por fim, ouvir a constatação do professor Sérgio de Sá: "Falta-nos mesmo essa entrada na vida do aqui e agora. A literatura (no Brasil) tem deixado essa função para o jornalismo e o cinema". Assim, o leitor brasileiro ainda aguarda, por viés próprio, a experiência "atualizadora" de si e do mundo, nas palavras do filósofo Rorty, que se pode obter lendo os dois romances – irresistíveis 1.200 páginas – responsáveis por elevar Jonathan Franzen a grande escritor da América.

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