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Noel: 250 canções, verdadeira Comédia Humana sobre o cotidiano da gente carioca | Arquivo/Gazeta do Povo
Noel: 250 canções, verdadeira Comédia Humana sobre o cotidiano da gente carioca| Foto: Arquivo/Gazeta do Povo

O grande som da pequena caixa

O fósforo de segurança foi criado em 1844 por um sueco, mas a caixa de fósforos só surgiu nos anos 1890 nos Estados Unidos. Nin­­guém imaginaria que o pequeno objeto (48 x 36 x 17mm) se tornaria, nas mãos criativas dos sambistas brasileiros, um instrumento musical indispensável.

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  • Haroldo Lobo: músicas eram verdadeiras reportagens sobre a realidade da época

Rio de Janeiro - Os sambistas centenários estão de volta, encantando a todos com a magia de suas canções e – principalmente – a poesia de suas letras. No ano em que nasceram, o século 20 já sofria suas primeiras convulsões. Em 1910, o mundo estava às portas da Primeira Guerra Mundial, Jack Johnson era o primeiro negro campeão de box, o primeiro hidroavião subia aos céus, a Kodak comercializava a fotografia e Kandinsky criava a arte abstrata. O Brasil tinha 23 milhões de habitantes – três milhões nascidos no exterior – e estava a um ano da produção dos primeiros discos.

O primeiro sucesso seria o "samba carnavalesco" de Donga "Pelo Telefone", em 1917. A letra prendia de saída com seu tom de urgência: "O chefe da folia manda lhe avisar/Que com alegria não se questiona para se brincar." Seria a matriz da música que fariam os moleques que viviam então a doce inocência dos seus 7 anos.

Em 1935, quando – apesar do modernismo – nossa poesia ainda se atrelava aos preciosismos parnasianos, Noel de Medeiros Rosa (11 de dezembro, Sagitário) arrancava lirismo de temas banais do cotidiano, em "Conversa de Botequim", com uma letra cinematográfica: "Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/Uma boa média que não seja requentada/Um pão bem quente com manteiga à beça/Um guardanapo e um copo d’água bem gelada." Era o "samba do asfalto", que havia descido o morro para a cidade e retratava com arte e percepção a nova realidade urbana. Poesia pura.

Muitos desses "sambinhas" eram feitos no calor da hora em botequins, ao ritmo de violão, cavaquinho e da caixinha de fósforo(texto abaixo). Rabiscados com a ponta rombuda de um lápis nas "toalhas" das mesas ou nos guardanapos de papel, adquiriram com o tempo status de verdadeiras obras-primas. Como em "Dama do Cabaré", do mesmo Noel: "A carta que recebi, não me lembro de quem/Você nela dizia que quem é da boemia/Usa e abusa da diplomacia/Mas não gosta de ninguém."

Vinte e sete anos incompletos foi o tempo da passagem de Noel: nasceu, viveu e morreu no mesmo chalé de Vila Isabel. A movimentação em sua vida ficou por conta da música. O queixo torto, consequência do parto difícil, não lhe trouxe "complexos". Era líder e rebelde já nos tempos do Ginásio de São Bento. Não deu muita bola para a escola, sabendo que samba não se aprende na escola.

A escolha da profissão foi, segundo o pesquisador João Máximo, uma fatalidade: em Vila Isabel, bairro da baixa classe média, "jovens talentos tinham como principal, senão único, lazer a música". Apesar do sucesso de "Com Que Roupa" no carnaval de 1931, Noel entrou para a Faculdade de Medicina. Saiu seis meses depois: "Como médico, jamais serei um Miguel Couto. Mas quem sabe não poderei ser o Miguel Couto do samba?" Acabou sendo muito mais, chegou até a fazer crítica social: "Quanto a você/Da aristocracia/Que tem dinheiro/Mas não compra alegria."

Noel casou com Lindaura em 1934, mas sua paixão era mesmo a dama de cabaré Ceci. Corroído pela tuberculose, morreu em 1937. Deixou 250 canções, uma verdadeira Comédia Humana musical que descreve os dramas e o cotidiano da pequena gente carioca. "Ninguém cantou o Rio melhor do que ele", afirmou Tom Jobim. E Rubem Braga: "Vendo essas letras eu me pergunto se Noel Rosa não foi, tanto quanto sambista, um cronista e um poeta." E o próprio Noel, mostrando a sutileza do seu pensamento no menor detalhe: "A vocação é necessária até para se dar o laço na gravata" .

Cronista

Autor de um dos sambas de carnaval mais lindos, "Tristeza", Ha­roldo Lobo (22 de julho, Cân­­cer) foi o rei das marchinhas, estourando já em 1941 com "Alalaô" (parceria com Nássara e arranjo de Pixinguinha): "Alá-lá-ô, ô, ô, ô, ô, ô, ô,/Mas que calor, ô, ô, ô, ô, ô, ô./Atravessando o deserto de Saara/O sol estava quente e queimou a nossa cara..." A certa altura a letra cita com intimidade o deus islâmico: "Alá, meu bom Alá." Em outra marcha, Haroldo canta: "Vem, odalisca, pro meu harém, vem,vem, vem./Faço o que você quiser,/Pelas barbas de Maomé/Não olho mais pra outra mulher." Por muito menos, o escritor Salman Rush­­die foi condenado à morte pelos fundamentalistas...

De uma família de músicos (o pai tocava flauta e violão; o irmão era baterista e compositor), começou os estudos de música na América Fabril. Aos 13 anos já compunha sambas para o Bloco do Urso. Conheceu a vida cedo, foi até vigilante, depois caiu na boemia, onde ficou conhecido como Clarineta, pela voz com a tessitura do instrumento. Sua primeira música, gravada por Aurora Miranda (irmã de Carmen) em 1934, "Metralhadora", aludia à Revolução Constitucionalista. Criticou também o Eixo com "Que Passo É Esse Adolfo?" e "As Ruas do Japão". Mas sua verve se concentrava mesmo na crônica de costumes. Suas músicas eram verdadeiras reportagens sobre a realidade brasileira da época, como "A Mulher do Leiteiro", "Alô Padeiro (Não É Economia)" e "Cabo Laurindo".

Usava também animais em seus temas e "O Passo do Can­gu­­ru" fez sucesso nos EUA como "Brazilian Willy". Morreu ce­­do, aos 55 anos, mas deixou 600 canções, entre elas a inesquecível Tristeza, música que Nilton de Souza (depois Niltinho Tristeza, compôs em 1963 e passou a cantar no bloco Boêmios de Bo­­ta­­fogo. Haroldo gostou tanto que propôs parceria a Niltinho e deu o toque de mestre ao suprimir a segunda parte. Gravado por Jair Rodrigues, foi o grande sucesso do Carnaval de 1966, mas Haroldo não estava mais aí para saborear a sua glória.

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