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Ícone beatnik, escritor de verborragia inigualável, homem de beleza sedutora, exímio jogador de futebol americano, beberrão de resistência invejável, amante de mulheres de todos os credos e raças, integrante de um grupo de amigos responsável pelo auge da contracultura no século 20. Tal lista de qualidades heróicas atribuídas ao escritor norte-americano Jack Kerouac (1922 – 1969) não poderiam deixar de aparecer em qualquer uma de suas biografias.

Por tal motivo, descrever, em relatos corretos e objetivos, o lado frágil, a devoção à família, o desejo de crer em uma força suprema e o processo degradante pelo qual passou (física e psicologicamente) no fim de sua vida talvez seja o grande diferencial de Kerouac, biografia de autoria do escritor e psiquiatra francês Ives Buin, recém-lançada no Brasil como o oitavo volume da série Biografias, da acessível editora gaúcha L&PM.

Em pouco mais de 250 páginas, Buin percorre um longo trajeto temporal – da origem da família Kerouac aos últimos momentos de seu representante mais célebre, Jack (originalmente Jean-Louis), primeiro a utilizar o vocábulo "beatitude" para designar os caminhos espirituais que julgava serem os de sua geração, palavra que, abreviada (beat), viria a batizar um movimento literário e comportamental que até hoje encontra discípulos fiéis.

Nos primeiros capítulos do livro, o clima vibrante da efervescente adolescência de Kerouac dominam as páginas da história de bolso, incluindo aí sua curta passagem pela Universidade de Columbia, em Nova Iorque, na qual recebeu uma bolsa de estudos por seu bom desempenho como jogador de futebol.

O talento para os esportes logo foi suplantado pela obsessão literária e pelo conhecimento da então prolífera cena de jazz nova-iorquina. Nela, Kerouac foi introduzido à pulsação constante do gênero musical que iria marcar para sempre sua vida, assim como ao ambiente notívago que viria a tornar-se seu habitat natural e às substâncias que viriam a funcionar como estimulantes da já acelerada velocidade de seus pensamentos – álcool, maconha e anfetaminas.

Sorrisos também são arrancados do leitor durante a narração das desastrosas passagens de Kerouac pela marinha mercantil, opção escolhida pelo próprio como meio de escapar do serviço militar, em 1942. Após viajar como cozinheiro em um navio com direção à Groelândia (no qual embarcou trançando as pernas de tão embriagado), Jack foi novamente convocado e fingiu-se de louco durante quase um ano completo até ser finalmente dispensado. "Os documentos médicos enviados à imprensa em setembro de 2005 são deploráveis, revelando uma terminologia que nada tem a ver com qualquer rigor científico: demência precoce (ou seja, esquizofrenia), constituição psicopática; os interrogatórios a respeito de suas práticas, como a masturbação, dão a entender instabilidade, não-confiabilidade e uma suspeita relacionada à escrita", revela Buin.

O relacionamento de Kerouac com Burroughs, Ginsberg, Lucien Carr e Neal Cassidy também ganha capítulos especiais, com direito a passagens escritas pelos mesmos a respeito de Kerouac e uma análise cuidadosa da influência exercida por cada um no texto do autor. "Neal ensina a Jack o essencial: o escritor só pode escrever o que ele é, a partir do que ele é. O escritor é indissociável de sua vida, e a vida, doravante ele vai vivê-la com Kerouac", conta o Buin, referindo-se a Cassidy, inspirador do herói de On the Road – Pé na Estrada.

Visto por Buin como uma vítima do sucesso, Kerouac é consumido pela própria "má reputação" da geração beat, cujo comportamento é resumido pelo francês a "sujeira, sexo e droga diante de uma América puritana". O ídolo beat acaba sucumbindo ao álcool e ao isolamento, razões de sua morte – por uma um "hemorragia digestiva cataclísmica não derrotada por 26 transfusões de sangue" – aos 47 anos de idade.

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Serviço: Kerouac, de Yves Buin (Tradução de Rejane Janowitzer. L&PM, 264 págs., R$ 17)

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