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 | Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo
| Foto: Miguel Nicolau/Especial para a Gazeta do Povo

Uso o mesmo corte de cabelo há décadas, tendo me frustrado nas poucas vezes que tentei variar. Não me reconhecia pela manhã, na hora em que me olhava no espelho do banheiro. Como não sou acostumado a compartilhar o banheiro com estranhos, resolvia voltar ao velho look. Cabelos curtos na lateral, cortados com a máquina nº 4 e penteados para trás na parte de cima, sempre o mais baixo possível, no limite de não arrepiar.

Quando saí do Brasil, uma das tensões era arrumar um cabeleireiro que me mantivesse tal como me vejo. Desde 2001, uma única pessoa cortava meu cabelo, o que me facilitava a vida, não precisando explicar como eu queria me ver depois de seu perigoso ataque.

Ao chegar a Portugal, passei mês e meio sem derrubar a velha juba. Vou ao salão a partir da terceira semana do último corte, e esta demora indicava meu temor. Quando não podia mais adiar, procurei uma dessas empresas chiques. O rapaz que me atendeu não inspirou confiança. Mas eu não tinha coragem de me levantar da cadeira e interromper o serviço que nem começara.

Quanto mais eu explicava, mais cara de desentendimento ele fazia. Resolvi então apelar para uma foto. Saquei de minha carteira um documento recente e mostrei-me com o cabelo muito bem arrumado.

O jovem começou a trabalhar confusamente. Eu explicava que não era para ser de uma forma e ele fazia justamente da maneira que eu não queria. A tesoura trabalhava em todas as direções, para meu desespero. Que aumentou quando ele empunhou uma máquina n. 2 e devastou toda a parte esquerda de minha cabeça. Daí penteou o que sobrou para o lado, deixando o topo comprido. Protestei em voz alta. As demais pessoas no salão começaram a acompanhar o rapaz agora nervosíssimo. Por fim, eu disse para ele finalizar do jeito que quisesse. O corte saiu muito parecido com o da minha meninice – pelo qual eu recebia o detestável apelido de Bodinho. Só um topete ridículo na parte de cima, o resto totalmente liso.

Fiquei duas semanas sem me olhar no espelho para evitar traumas de infância.

Um mês depois, eu dominava melhor a cidade e já sabia identificar os bons profissionais. Escolhi a barbearia Vasconcelos, ao lado do café A Brasileira, no centro histórico. Uma barbearia de quase 110 anos, sempre no mesmo lugar. Trabalham lá três gerações da mesma família, e se anunciam em tom de brincadeira como os melhores barbeiros do mundo. Mal expliquei o corte, o neto já se colocou a trabalhar. Pessoas da rua entram, conversam, reclamam disso e daquilo, vendem coisas. É um resumo alegre da cidade. Repetem a todo momento a interjeição, de origem galega, muito comum aqui no Norte: carago! O corte ficou perfeito. É como se há décadas eles cuidassem de minha cabeça cheia de redemoinhos, não apenas por fora.

Na última visita, o filho (já passei por todas as gerações) me perguntou como eu queria minhas patilhas. Disse que não sabia o que eram patilhas. Ele explicou: são as suíças.

– Gosto das costeletas curtas e retas.

– Esses brasileiros, carago! Usam cada palavra.

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