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Num diálogo no início da clássica "Os alquimistas estão chegando", Jorge Ben Jor (na época apenas Ben) ensina: "Tem que dançar dançando". Faz parecer fácil, não é? Quando, segundos depois, o violão dele começa a soar, percebe-se que é fácil, sim. Difícil é não "dançar dançando" ouvindo seu balanço. E tem sido assim desde os anos 60/70, quando ele e outros mestres da música brasileira começaram a misturar os sons e cadências negras dos Estados Unidos, do Brasil e da mãe de ambos, África. Lições que merecem ser ouvidas 30 anos depois e que chegam agora às lojas em um relançamento e duas compilações, respectivamente: "Tim Maia" (Som Livre), "Soul Brasil" (Som Livre) e "Jorge Ben revisitado" (Dubas).

O raro "Tim Maia", de 1977, está no pacote de relançamentos "Som Livre Masters" , organizada por Charles Gavin, que nos últimos anos tem se dedicado a vasculhar arquivos de gravadoras de olho em preciosidades.

- O disco é um dos mais criativos da carreira de Tim, com seu soul com toques de samba e forró. Soa absolutamente atual, apesar de bem voltado para as pistas da época - explica Gavin. - E tem "Feito para dançar", cujo título diz exatamente o que a música é.

O cantor estava realmente em fase inspirada - e especialmente dançante, como ressaltou Gavin. A faixa de abertura já passa o recado no título: "Pense menos". Essa linha mestra aparece no soul-funk de primeira de faixas como "Ride, twist and roll", a citada "Feito para dançar" (pedais wah-wah irresistíveis) e "É necessário" (mantra à la Funkadelic) e "Verão carioca" (pitadas de orquestra tropical nos metais) e na instrumental "Flores belas". O romantismo do vozeirão de Tim dá as caras nas classudas "Música para Betinha" e "Sem você". A marca do Brasil aparece de forma explícita nas vocalizações, estilo Os Cariocas, do samba-soul "Não esquente a cabeça". Um triângulo marca o xote black "Leva o meu blue", enquanto a levada do samba conduz "Venha dormir em casa" e "Let it all hang out" flui ao sabor do bossa-jazz.

Indo ainda mais fundo nas sonoridades brasileiras (e de certa forma, fundando algumas delas) Jorge Ben aparece pleno em "Jorge Ben revisitado". A compilação cobre a fase mais importante de sua carreira, de seu primeiro disco, "Samba esquema novo" (1963) até "África Brasil" (1976). As 20 faixas seguem uma ordem cronológica, com poucas exceções. Podemos, assim, acompanhar a genial trajetória do cantor de seu "samba misto de maracatu" ("Mas que nada") até o África-Brasil-funk "A história de Jorge". No caminho, clássicos como "Chove, chuva", "Cadê Tereza", Que maravilha" e "Taj Mahal", além de outras menos conhecidas como "Oba lá lá", "Zula" e "Porque é proibido pisar na grama". Todas igualmente geniais, sem exagero.

- Você não tem a sensação de ouvir um disco velho quando ouve essa fase de Jorge Ben - conta Leonel Pereda, responsável pela seleção de repertório ao lado de Ronaldo Bastos. - Os discos são cuidadosamente bem acabados, mas ao mesmo tempo tudo parece muito espontâneo. Sua música está presente em muita coisa que se produz hoje no Brasil, mas ao mesmo tempo é só dele. Tem um segredo ali que é dele, algo escondido que ninguém consegue imitar.

É claro que não se consegue desvendar o segredo de Ben simplesmente ouvindo a coletânea. Mas é divertido tentar. O tal segredo certamente passa pelas modulações de sua voz imprecisamente precisa, sobretudo nos primeiros anos, como em "Chove chuva", "Tim dom dom" e "Oba lá lá" - música de João Gilberto que na voz de Ben faz pensar no parentesco enviesado entre os dois gênios. O "algo escondido" pode estar no violão personalíssimo, que tem percussão de escola de samba, tambores africanos, guitarras de rock e baixos de soul. Ou na poética própria, ao mesmo tempo jocosa, ingênua e contundente, de versos como "O último será o primeiro/ E o primeiro sou eu", "Preciso saber urgentemente/ Por que é proibido pisar na grama", "Depois que o primeiro homem maravilhosamente pisou na lua/ Eu me senti com direito, com princípios e dignidade de me libertar", "Ela tem o perfume de uma flor que eu não sei o nome/ Mas ela deve ter o nome bonito igual a ela".

Em "Soul Brasil", as lições vêm de uma lista de mestres que inclui, além de Ben e Tim, Lady Zu, Gerson King Combo, Cassiano, Dom Salvador e Banda Black Rio. Como o objetivo é traçar uma história do gênero no Brasil, a coletânea inclui artistas recentes, como Faroca Carioca ("Doidinha") e Funk Como Le Gusta ("Olhos coloridos"). Mas o filé está nas pérolas dos anos 70, a maioria delas com cruzamentos riquíssimos do som de negros americanos e brasileiros. E numa seleção que, apesar das figurinhas carimbadas, tenta fugir das músicas mais óbvias:

- É impossível contar a história da soul music brasileira em 15 faixas. Por isso escolhemos momentos emblemáticos, mas sem cair na mesmice - explica Daniel Assis, que selecionou o repertório do CD. - Tim Maia entrou com "Bom senso", da fase Racional, de discos cultuados que até agora não foram lançados em CD. Simonal veio com a malandragem em "Não vem que não tem". Cassiano entrou com "Know-how", em dueto com Ed Motta. Procurei pôr também artistas menos conhecidos, como Noriel Vilela e Di Melo.

O groove refinado de Tim Maia, a malícia de Simonal, a voz grave de Noriel e o funk tropical de Di Melo são destaques. Ao lado de outros artistas da época, eles ajudaram a fundar uma tradição de música black brasileira que influencia nossa música até hoje de uma maneira que a coletânea não consegue mostrar de forma completa (nem poderia). Ficaram fora, por exemplo, os rappers, que desde os anos 80 têm o soul nacional como referência - exatamente a relação do hip hop americano com artistas como James Brown. Mas aqui, como fica claro na audição dos três discos, o tempero é outro. Como sugere a capa de "Soul Brasil", um Dom Pedro I black já decretou a independência de nosso balanço.

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