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Um dia, preocupado com a macroeconomia, no outro, devorado por micro-organismos. Foi essa a primeira frase que Álvaro ouviu da estranha criatura parada à sua frente. O autor da ironia era ninguém menos que Roberto, ou melhor, o fantasma de Roberto, seu ex-sócio que morrera há exatos sete anos, numa manhã de 24 de dezembro.

Álvaro não era de se deixar lograr por crendices e superstições. Era o mesmo homem prático, que, sete anos antes, ao sair do cemitério, dirigiu-se de imediato para o escritório e lá ficou até a hora em que foi obrigado a dispensar seus empregados. Para que pudessem se empanturrar em mais uma estúpida ceia de Natal.

Agora, porém, interrompido no ato de sair para o trabalho, tinha que reconhecer que a ciência não era capaz de explicar aquela figura diáfana que se punha a relatar toda a sorte de tormentos pelos quais vinha passando, condenado a vagar sem descanso por toda a eternidade. Roberto atribuía essa pós-vida desgraçada à sua conduta entre os vivos: a mesquinhez, a indiferença diante do sofrimento e da felicidade alheias. Compor­­tamento, aliás, muito parecido com o de Álvaro, para quem apontava agora um dedo repreensivo.

Nesta véspera de Natal, disse, você será visitado por três espíritos. Cada um deles irá lhe mostrar o quanto sua vida está errada. Mude enquanto é tempo. E saiu pela janela, desaparecendo na luz matutina.

Álvaro ficou só no aposento e, sentindo seu ceticismo desfazer-se no pavor, começou a se preparar para o que viria.

Após alguns minutos dirigindo, percebeu que sem querer se desviara do caminho do escritório. Como se não fosse ele ao volante, tomou a estrada e logo chegou a uma pequena cidade vizinha, local onde passara sua infância. Naquele lugar vivera os primeiros Natais, dos quais uma pequena ponta visível ainda permitia o resgate pela memória. Ali, ciceroneado pelo espírito que se apossara da direção do carro, percorreu os santuários da infância e reviu a si mesmo no tempo em que ansiava por receber seu presente. Pela janela, aspirou aromas que vinham de ceias antigas.

De volta ao escritório, depois que os empregados tinham debandado em busca de mais uma ceia, sentiu novamente os passos fugirem ao seu controle, e logo se viu em frente à casa onde morava dona Carolina, a funcionária que servia cafezinho. Tornado invisível pela mão do segundo espírito que o conduzia, Álvaro recolheu-se a um canto da sala e assistiu à ceia familiar. Eram cinco crianças, pálidas e magras; uma das meninas claramente sofria de asma e o menino mais velho não comeu doce por ser diabético. Mesmo assim, a ceia humilde foi também alegre e amorosa.

Em casa, Álvaro acordou de um sonho em que o terceiro espírito o mandava ir até a sala. Obedecendo, viu que lá acontecia um velório. No centro estava o caixão e, espalhadas pelo recinto, umas poucas pessoas que contavam piadas sobre o morto e arremedavam seus modos. Dentre aquelas, que se diziam aliviadas com a morte do finado, Álvaro reconheceu várias: alguns empregados, outros tantos parentes. De repente, ocorreu-lhe dar ao falecido a atenção que este merecia e, debruçando-se sobre o caixão, descobriu estarrecido que ali jazia ele próprio. Ele próprio, morto e objeto do escárnio de toda a gente.

Ainda na ca­­ma, aterrorizado com a visita dos três espíritos e com os prognósticos traçados por Roberto, Álvaro começou a planejar sua salvação. Sairia cedo no dia 25 e compraria presentes para todos os seus empregados, parentes e vizinhos. Para dona Carolina do cafezinho, uma cesta de Natal farta, a maior que encontrasse. Para o menino diabético, guloseimas sem açúcar. E para Roberto, muitas flores no seu túmulo.

Mas ao chegar ao cemitério, na manhã seguinte, vendo as lápides sob o sol indiferente, deu-se conta de que os filhos de dona Carolina, mesmo tendo desfrutado de uma linda ceia de Natal, em breve estariam ali também. Ali onde tudo termina. Ajeitou o buquê modesto e deu por encerradas suas atividades natalinas. Caro Roberto, disse para si mesmo, sem dirigir palavra a quem não podia escutá-lo: continuarei sendo como sou, sem a falsa bondade de quem teme um castigo. Por certo não sou dos melhores homens, mas nem por isso cederei às pressões dos que querem arrastar o mundo para a unanimidade.

Mário Araújo é curitibano, escritor, atuou como arte-educador e também como redator de publicidade em Curitiba. É autor do livro de contos A Hora Extrema (7 Letras), Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, em 2006. Seu segundo livro, Restos, foi publicado em 2008, pela editora Bertrand Brasil.

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