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Cultuado por cinéfilos do mundo todo, filme de Ridley Scott mostrava um futuro distante que encontra certas semelhanças com a realidade atual.
Cultuado por cinéfilos do mundo todo, filme de Ridley Scott mostrava um futuro distante que encontra certas semelhanças com a realidade atual.| Foto: Divulgação

A literatura e o cinema costumam antecipar o futuro. Para citar alguns exemplos vivenciados por mim, posso falar da expectativa da chegada do início do século XXI por conta de 2001: Uma Odisseia no Espaço. Ou de 2015, ano em que passa a segunda parte da trilogia De Volta Para o Futuro. Agora, novembro de 2019, chegamos ao futuro de Blade Runner: O Caçador de Androides, que parecia tão distante quando o filme foi lançado, em 1982.

Não temos ainda carros voadores cruzando os céus. Muito menos seres humanos fabricados em laboratório. Mas conseguimos nos comunicar pelo celular ou pelo tablet através de aplicativos que permitem a troca de som e imagem. Em relação ao clima, não chegamos lá, mas, estamos a caminho.

Exatos 37 anos depois de seu lançamento, Blade Runner continua sendo um dos filmes mais influentes dos últimos tempos. Muito já foi dito em inúmeros textos e matérias publicadas ao longo dessas três décadas e meia. No caso do Brasil, tudo teve início em setembro de 1982, quando a Warner lançou o trailer do mais novo trabalho do diretor britânico egresso da publicidade, Ridley Scott. Três anos antes ele havia dirigido o primeiro filme da série Alien. Com o subtítulo de O Caçador de Andróides, os primeiros cartazes de Blade Runner foram colocados nos cinemas brasileiros e traziam uma frase que aguçou a curiosidade dos amantes da boa ficção-científica: “O homem fez o homem à sua imagem e semelhança. Agora o problema é seu.”

De mão em mão

Convém agora voltarmos um pouco mais no tempo e revermos toda a história por trás desse marco do cinema. Blade Runner é baseado em um livro de Philip K. Dick, Do Androids Dream of Eletric Sheap? (Algo como Os Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas?), publicado em 1968, nos Estados Unidos e lançado por aqui somente em 1983, aproveitando a estréia do filme.

O livro logo despertou o interesse de Hollywood. Em 1969, o diretor estreante Martin Scorsese tentou levar a história para a tela grande, porém, terminou não dando certo. Somente em 1974 os direitos do livro foram comprados por Herb Jaffe e seu filho, Robert Jaffe, escreveu a primeira adaptação cinematográfica.

O roteiro desagradou completamente o autor, pois simplificou demais a trama do livro. Mais uma vez o projeto não decolou. Três anos mais tarde, em 1977, os Jaffe abriram mão dos direitos do livro e o roteirista Hampton Fancher tentou adquiri-los e não conseguiu. Pouco tempo depois, no mesmo ano, Fancher fala sobre o livro para um amigo, Brian Kelly, que comprou os direitos para o cinema.

Kelly enviou uma cópia do livro para o produtor inglês Michael Deeley, que adorou o material, mas, o considerou infilmável. É bom lembrar que era 1977, ano do lançamento de Star Wars, um período em que todos os estúdios estavam procurando por um filme de ficção-científica que pudesse repetir o sucesso da saga criada por George Lucas. Kelly procurou Fancher e pediu a ele que escrevesse um roteiro baseado no livro. Ele passou então o ano inteiro de 1978 trabalhando no roteiro que, inicialmente, manteve o título do livro. Kelly procurou Deeley novamente e lhe entregou o roteiro de Fancher. Dois dias depois, Deeley telefonou para Kelly e assumiu a produção do filme.

Deeley iniciou seus contatos para a obtenção de dinheiro junto aos estúdios. No início de 1979, o título do roteiro foi alterado para Android e logo depois, para Mechanismo. Ele então começou a procurar um diretor para o filme com quatro nomes em mente: Ridley Scott, Adrian Lyne, Michael Apted e Bruce Beresford. Nenhum deles, naquele momento, estava disponível.

Apareceu então o veterano Robert Mulligan, diretor de O Sol é Para Todos. Mulligan ficou envolvido com o projeto até o final de 1979, tendo inclusive trabalhado com Fancher em algumas alterações na trama.

Nesse meio tempo, o roteiro de Fancher, sem as alterações feitas com Mulligan, chegou às mãos do diretor Ridley Scott, que havia concluído Alien. Ele fica empolgado com a história. Deeley, com a ajuda de Ivor Powell, um grande amigo de Scott, conseguiu finalmente convencê-lo a assumir a direção do projeto.

Chegamos então a 1980. O livro de Philip K. Dick, lançado há quase 12 anos, tinha um roteiro, um produtor e um diretor. Faltava apenas definir o elenco e conseguir o dinheiro necessário com algum estúdio. Na época, eles chegaram a assinar um contrato com a Filmways Pictures, que garantiu um orçamento de 13 milhões de dólares para a produção do filme.

Scott resolveu fazer mudanças no roteiro. Uma das coisas que não o agradava era o termo “detetive”. Ele argumentou com Fancher que se tratava de um termo muito comum em tramas policiais e já que o filme se propunha a mostrar uma visão diferente do futuro, teria que ter um nome novo para aquele tipo de trabalho. Fancher lembrou de um livro de William Burroughs, intitulado Blade Runner.

Deeley entrou em contato com os advogados de Burroughs e comprou o uso do título do livro para o filme. Pouco depois, eles descobriram que existia um outro livro de ficção-científica escrito por Alan E. Nourse que também fazia uso desse termo. Os produtores acabaram negociando com todas as pessoas envolvidas na posse do nome Blade Runner e, a partir de então, este passou a ser o nome definitivo do filme.

Outra alteração feita nessa época dizia respeito ao ano em que se desenvolve a ação da trama. Era meados de 1980. No livro de Philip K. Dick, a ação se passa em 1992, ou seja, pouco mais de dez anos no futuro. Era uma data próxima demais. Por segurança, eles decidem transferir a história para o ano de 2020 e logo depois, definitivamente, para novembro de 2019. A cidade também foi mudada: ao invés de San Francisco, eles optaram por Los Angeles.

De repente, uma inesperada mudança aconteceu: Hampton Fancher, a pessoa que há mais tempo estava envolvida com o projeto, por não mais suportar as pressões de Ridley Scott para fazer alterações em seu próprio roteiro, abandonou o grupo em novembro de 1980. O irmão caçula de Scott, o também diretor Tony Scott, indicou o premiado documentarista e também roteirista David Webb Peoples. Este recebeu o último tratamento feito por Fancher e disse a Deeley e Scott que não havia o que modificar, pois, na sua opinião, o roteiro estava perfeito. Mesmo assim, Scott falou sobre suas ideias e pediu que ele criasse uma nova palavra para substituir o termo “andróide”, já que era um nome muito utilizado nos livros de ficção-científica. Dias depois, lendo um trabalho de ciências de sua filha que tratava de duplicação celular, Peoples leu o termo replicating e criou então o nome replicant (replicante), que Ridley adotou de imediato.

No início de janeiro de 1981, quando tudo estava pronto para o início das filmagens, a Filmways Pictures abandonou o projeto. Deeley e Scott bateram então na porta de diversos estúdios, sem sucesso. Finalmente, eles conseguiram chegar a um acordo envolvendo três companhias: a Ladd Company (uma produtora independente), através da Warner Bros, investiu 7,5 milhões de dólares (em troca, ficou com a distribuição do filme em todo o Ocidente); a Shaw Brothers (uma empresa de Singapura gerenciada por Sir Run-Run Shaw, investiu outros 7,5 milhões de dólares e ficou com os direitos de distribuição para todo o Oriente) e a Tandem Productions (uma produtora de filmes para TV), assumiu o compromisso de completar qualquer estouro no orçamento até o limite de 10% do valor estipulado, que era de 15 milhões.

Na verdade, a Tandem terminou investindo mais quatro milhões e deixou o orçamento final de Blade Runner em 19 milhões de dólares. As filmagens iniciaram no dia 09 de março de 1981 e foram concluídas exatos quatro meses depois, em 09 de junho de 1981. Ridley Scott sempre foi um diretor extremamente perfeccionista e isso fez com que ele tivesse muitos atritos com a equipe técnica e o elenco, principalmente Harrison Ford.

Fracasso de bilheteria

Mesmo após o término das filmagens, os problemas não acabaram. Os executivos da Warner acharam o resultado final bastante complicado para o grande público e, contra a vontade de Scott, fizeram duas mudanças drásticas no filme: primeiro, incluíram a narração de Deckard, que Harrison Ford só gravou porque estava ainda sob contrato, (com isso, a Warner acreditava que o filme seria melhor entendido) e cortaram algumas sequências, modificando o final ambíguo e em aberto (Deckard e Rachael entrando no elevador e a porta fechando), para um final feliz em que vemos os dois dentro de um spinner (o carro voador) se dirigindo para iniciar uma nova vida no norte. Este novo final utiliza sobras da seqüência de abertura de O Iluminado, dirigido por Kubrick e produzido pela Warner no ano anterior. Foi esta versão que chegou aos cinemas em 1982.

Ao contrário do esperado, Blade Runner recebeu críticas negativas e foi um fracasso nas bilheterias americanas. Porém, criou um culto de fiéis seguidores. Quando começou a ser exibido fora dos Estados Unidos, as críticas melhoraram, a bilheteria idem e o culto ainda mais. Os críticos americanos terminaram revendo suas posições e finalmente deram ao filme o seu devido valor.

No ano seguinte, quando Blade Runner foi lançado em vídeo, o culto já estava mais do que estabelecido e a partir daí a Warner não teve mais prejuízos. De 1983 até 1990, cresceu cada vez mais o apelo dos fãs para que o filme fosse relançado nos cinemas. Desta vez, no entanto, algo aparentemente inimaginável aconteceu: um estudante de cinema descobriu perdido no depósito de filmes de uma universidade da Califórnia a versão original de Blade Runner e começou a exibi-la no circuito universitário.

No início de 1991, a Warner ficou sabendo das “sessões privadas” e recolheu todo o material. Vendo que o interesse do público estava mais que aguçado, o estúdio não perdeu tempo e em setembro de 1991 chamou Ridley Scott e lhe deu carta branca para refazer o filme do jeito que ele queria ter feito em 1982. Scott aceitou o desafio e fez todas as modificações necessárias. A versão final do diretor foi lançada nos Estados Unidos em agosto de 1992, dez anos depois do primeiro lançamento, e chegou ao Brasil em março de 1993.

Não havia mais a narração e novas cenas aéreas de Los Angeles foram incluídas, além do sonho de Deckard com o unicórnio (que sugere ser ele também um replicante) e por último, a eliminação do final feliz. O filme agora terminava com Deckard e Rachael entrando no elevador e a porta fechando.

Em 2007, na comemoração dos 25 anos do filme durante o Festival de Cinema de Veneza, Ridley Scott apresentou pela primeira vez a versão restaurada e definitiva de Blade Runner. Ele garantiu que não mexeria mais na obra. Pelo menos, até o momento, ele tem cumprido a palavra.

Blade Runner pode ser considerado um clássico, no sentido de ter resistido ao teste do tempo e influenciado outras obras, além de ser um autêntico filme de autor, cheio de pequenos detalhes que só quem o viu repetidas vezes e com bastante atenção é capaz de detectar na totalidade e sentir o que ele realmente é: uma experiência única. E como o cinema costuma nos antecipar o futuro, espero que o próximo ano não seja como mostrado em No Mundo de 2020 e agora que chegamos ao mês e ano em que se passa a ação do primeiro Blade Runner, só nos resta torcer para que estejamos de pé em 2049, ano em que passa a continuação do filme para que, mais uma vez, o futuro vire passado.

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