Semana passada a Gazeta do Povo publicou um texto intitulado “‘Barbie’ é comédia inteligente que nem as pitadas woke conseguem estragar”. Alguns leitores ficaram furiosos. Afinal, como é possível que Ana Sánchez de la Nieta tenha gostado de um filme sobre o qual prevaleciam opiniões do tipo não-vi-e-não-gostei? Como ela ousa?! E o texto é fraquinho mesmo, com elogios rasgados de alguém que provavelmente vestiu rosa para ir ao cinema. Mas esse não é o ponto aqui.
A virulência dos comentários (“Título repulsivo proporcional a uma matéria asquerosa”, lia-se num deles) levou minha editora a um gesto desesperado, extremo e arriscado. Ela me acordou do meu sono de beleza para me propor o “sacrifício master” (palavras dela!) de assistir à tão falada e mal-afamada produção. Hesitei, disse que precisava terminar de ler a “Ilíada”, que tinha sido picado pela mosca tse-tsé, que estava com febre do feno, que isso e que aquilo. Não adiantou. Por fim, vesti minha melhor cueca rosa e lá fui eu para o cinema. (Me deve o reembolso do ingresso, hein, Lígia!).
E a primeira coisa a constatar sobre “Barbie” é que o fenômeno cultural e o filme são duas coisas distintas. Por “fenômeno cultural” me refiro, claro, às hordas barulhenta e barbiemente monocromáticas que tomaram conta dos cinemas nas últimas semanas. Porque antes mesmo de o filme começar, o fenômeno esfrega na nossa cara uma realidade incômoda: a da infantilização da sociedade. Uma infantilização que se reflete não só nas roupas cor-de-rosa, mas sobretudo nessa aderência imediata e passional a uma modinha da qual mês que vem ninguém mais se lembrará.
Então este é o primeiro obstáculo para quem pretende se sujeitar ao “sacrifício master” (palavras dela!) de assistir a “Barbie”. O outro é a enxurrada de pré-opiniões que se aproveitam do fenômeno cultural para impor uma agenda política. Mas isso já é consequência do filme, sobre o qual falarei daqui a pouco, depois do nosso intervalo comercial.
[INTERVALO COMERCIAL. ANUNCIE AQUI, MATTEL]
A princípio eu achava que “Barbie” era um filme para crianças que estava sendo visto com o olhar de adulto. Ou melhor, “adulto”. (Pena que não dá para pôr aspas cor-de-rosa aqui). Mas aí me informaram que a classificação etária do filme é 12 anos. Ou seja, “Barbie” é mesmo um filme feito para adultos infantilizados, mas capazes de ao menos entender a referência inicial ao clássico “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Ou será que estou sendo otimista demais?
Aliás, me ocorre agora algo e o insight é bom demais para ser desperdiçado. “Barbie” é um filme para a geração acostumada aos Homens de Ferro, Homens-Aranhas, Super-Homens, Batmans, Hulks e X-Men da vida. Da vida fictícia, no caso. Com direito à formulaica jornada do herói e o maniqueísmo simplista do mundo infantil. Ou seja, não é novidade nenhuma e se há escândalo é só porque o rosa realmente fere os olhos da gente.
No mais, a principal crítica que se pode fazer a “Barbie” é a de que se trata de um filme com evidentes fins propagandísticos, mas totalmente descompromissado com o feminismo que apregoa. No fundo, é aquele tipo de (vou forçar a barra agora; prepare-se!) obra de arte tão niilista, tão cínica, tão autocentrada e tão alheia ao propósito daquilo que se pretende a uma, well, obra de arte que acaba sendo um veículo de propaganda ineficiente. Um desses panfletos em papel tão vagabundo que se desmancha na sarjeta.
Ao defender o feminismo num minuto para criticá-lo no outro, ao acusar a emasculação dos homens aqui e ridicularizar o machismo ali e ao exaltar o peterpanismo (não confundir com “passapanismo) que se espalhou pelo mundo, “Barbie” parece pular de galho em galho, tentando agradar a plateia num momento para, no momento seguinte, desagradá-la. Assim, o filme garante o sucesso da discussão em torno não desses temas suspostamente profundos, mas em torno do próprio filme. Eu avisei que era uma “obra” autocentrada!
Somos melhores do que isso
De qualquer forma, me espanta essa repulsa a opiniões que possam ser favoráveis a um filme que terá o mesmo impacto cultural recente da slime – aquela meleca que foi moda entre as crianças há alguns anos. Ou da lambada. Afinal, defendemos ou não as pessoas exporem seus argumentos pró e contra qualquer coisa? Ou será que secretamente concordamos quando “o outro lado” diz que certas ideias são nocivas demais e não podem circular livremente?
Por falar em reações, vale reparar nas expressões e nos comentários das pessoas que de fato assistiram ao filme. Não é todo mundo que mantém o entusiasmo rosa depois das quase duas horas da história. Uns porque queriam mais propaganda. Mais wokismo. Outros simplesmente porque “Barbie”, assim meio sem querer querendo, ofende a inteligência do espectador médio (e, no meu caso, careca e com uma pancinha). Nem todos confessarão, mas a verdade é que, para além das lacrações, “Barbie” no fundo nos leva à constatação autocrítica: somos melhores do que isso.
Deixe sua opinião