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Siumara Rocha, a Mara do Kapelle, e duas de suas marcas: o cigarro e os gatos.
Siumara Rocha, a Mara do Kapelle, e duas de suas marcas: o cigarro e os gatos.| Foto: Arquivo pessoal

Existem estabelecimentos que reverberam a personalidade de seus administradores, chegando ao ponto de fundir um ao outro na hora de referenciá-los. É o caso de Siumara Rocha com seu bar, o Kapelle. Antes de tudo, ela era Mara do Kapelle. O bar reúne a boemia curitibana desde 1974, mas de lá para cá mudou de localização. O primeiro endereço foi a Barão do Cerro Azul; nos anos 1980 mudou para a Saldanha Marinho, onde permanece até hoje. Mara faleceu no dia 4 de novembro, aos 70 anos.

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Mara era tão do Kapelle que muitas vezes não era possível saber se o frequentador estava ali meramente para tomar umas e ouvir música ou para visitar a amiga. “Eu ia para as duas coisas”, relembra Regina Fernandes Reinhart, amiga e socióloga. Mara chegou a morar no bar por um período, em um espaço nos fundos que, assim como o estabelecimento comercial, parecia fazer parte do cenário de um filme. O divã de veludo e o cabideiro com seus chapéus compunham a atmosfera artística que a acompanhava até na hora de descansar.

Ela mesma parecia saída de uma filmagem de Paris dos anos 1950. Sempre ostentando salto alto, todo dia era uma ocasião possível para usar paetê. As unhas vermelhas e a roupa preta completavam a aparência sofisticada de uma mulher livre e dona de si. Mesmo depois de parar de fumar, mantinha um cigarro entre os dedos. “Fazia parte da composição de cena que ela era”, descreve Regina.

Não era raro que frequentadores caíssem de amores por ela. Chegou a receber carta apaixonada de um deles, mas não se deixava levar por fanfarronices. Dela ninguém tirava casquinha. Entre palavrões e gargalhadas, capitaneou o boteco por décadas com pulso firme. Com voz rouca e impassível, porém sem exaltação, solicitava que um ou outro cliente que por ventura se excedesse – evento cotidiano em qualquer bar – se retirasse.

Jornalistas, políticos, músicos, artistas, acadêmicos e pessoas públicas eram cativos no Kapelle. As décadas de 1980 e 1990 foram o auge da efervescência do local, em especial na época do movimento pelas Diretas Já, entre 1983 e 1984. O bar era praticamente uma extensão da atuação política e cívica dos frequentadores mais assíduos, que levavam para lá os debates e manifestações. Mara, uma filósofa politizada, mantinha a neutralidade nesses momentos.

Ao longo da conversa em que Regina relembra os bons momentos no bar, surgem nomes de pessoas conhecidas que ela já esbarrou por lá: o jurista Sepúlveda Pertence, o cartunista Jaguar, Ivo Rodrigues, vocalista do Blindagem, que também tocava no bar, e tantos outros. A música – e a cultura como um todo – era tão intrínseca ao ambiente quanto os gatos de Mara que circulavam entre os clientes. Em algumas épocas, havia uma programação musical concreta, com noite francesa, noite do rock, entre outras temáticas culturais. A proprietária ajudou a impulsionar bandas e artistas curitibanos ao abrir espaço garantido para que a música autoral atingisse o público frequentador. Nos últimos tempos, quem domina o microfone do Kapelle é o músico Maurinho.

O estabelecimento ganhou ares de bar secreto nos últimos anos. Com a placa apagada e a porta fechada, para entrar é preciso se identificar antes. Há mais de 40 anos, segue sendo o lar de Mara e dos boêmios de Curitiba.

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