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Política econômica

A mão do Estado balança o berço do livre mercado

Episódios do “setembro negro” sugerem que o setor financeiro é incapaz de corrigir os próprios erros

O maior choque financeiro desde a Grande Depressão começa a provocar uma pequena revolução nas bibliotecas econômicas mundo afora – e, inevitavelmente, deve causar mudanças consideráveis na forma como as autoridades regulam o funcionamento do mercado. O "setembro negro", marcado pelo colapso de bancos gigantescos e o socorro trilionário anunciado pelo governo dos Estados Unidos, tem feito economistas tirarem da prateleira os empoeirados livros do inglês John Maynard Keynes, o principal teórico da intervenção do Estado na economia, cujas idéias andavam meio abandonadas até pouco tempo atrás. Com isso, os estudos do liberal norte-americano Milton Friedman, que guiaram boa parte das políticas econômicas nas últimas três décadas, tendem a voltar para a estante.

"Vivemos a volta do pêndulo, que a partir dos anos 80 foi para o lado do liberalismo, da mínima intervenção, e agora está voltando para o lado do intervencionismo", explica Robson Ribeiro Gonçalves, professor do Instituto Superior de Administração e Economia, da Fundação Getúlio Vargas (Isae/FGV). "Há uma grande atualidade nas recomendações que Keynes fez após a crise de 1929. Por isso, é leitura mais que recomendada para os formuladores de políticas econômicas, enquanto que os artigos de Friedman provavelmente vão acumular alguma poeira."

Nos últimos meses, o governo norte-americano gastou centenas de bilhões de dólares para estatizar as duas maiores financeiras do setor imobiliário (Fannie Mae e Freddie Mac) e a maior seguradora do mundo (a AIG), além de se tornar sócio de alguns dos maiores bancos de investimento do país. O pacote mais recente prevê um desembolso de US$ 700 bilhões na compra de títulos "podres" de empresas prejudicadas pela crise das hipotecas. Tudo para resgatar o setor financeiro – e também a economia real – de um buraco que Wall Street cavou ao longo de anos de liberdade e desregulação.

Intervenção estatal assim, justamente no berço do livre mercado, não se via desde o "New Deal", programa adotado pelo presidente Franklin Roosevelt em 1933 para salvar os EUA dos catastróficos efeitos da quebra da Bolsa de Nova Iorque, quatro anos antes. A análise de Keynes sobre a Grande Depressão e suas sugestões de como o Estado pode impulsionar o desenvolvimento, reunidas em 1936 na Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, viraram o fio condutor das políticas econômicas do longo período de reconstrução e prosperidade vivido após a 2ª Guerra Mundial.

Mas o conseqüente endividamento de várias nações e o choque do petróleo, na década de 70, fizeram a "revolução keynesiana" dar lugar à cruzada liberal de Milton Friedman, defensor das liberdades econômicas e da participação mímina do setor público. Friedman pregava que, livres de amarras, as forças espontâneas do mercado – a "mão invisível" definida por Adam Smith – eram capazes de levar a economia a um estado de equilíbrio e, quando necessário, corrigir seu rumo automaticamente.

Os últimos episódios tem contrariado essa tese. "A mão invisível não existe, nem no setor financeiro nem em lugar algum. O Estado tem que participar, por meio de regras mais rígidas. Ou continuará entrando somente nos momentos difíceis?", questiona Manuel Enriquez Garcia, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP).

Silêncio

Frente aos últimos acontecimentos, chega a ser constrangedor o silêncio de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI), que por décadas se inspiraram nas idéias de Friedman – premiado com o Nobel de Economia em 1976 – para determinar as políticas de uma porção de países em desenvolvimento, exigindo regulações flexíveis para a atividade econômica e limites rígidos ao investimento e ao gasto estatal.

"É importante retomar a discussão sobre Keynes, principalmente porque a doutrina da desregulação foi imposta goela abaixo, e agora os EUA sentem na própria pele que ela não é feita apenas de benefícios", diz o economista Jedson César de Oliveira, professor da Estação-Ibmec Business School. Gonçalvez, do Isae/FGV, lembra que, por muito tempo, os economistas norte-americanos repetiram que o problema da América Latina era o excesso de intervenção. "Nesse caso, os EUA devem estar com um grande problema agora."

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