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Lei de Responsabilidade Fiscal
A ideia de Bolsonaro de revogar parte da Lei de Responsabilidade Fiscal contraria discurso de austeridade do ministro da Economia, Paulo Guedes.| Foto: Edu Andrade/Ascom/ME

O presidente Jair Bolsonaro voltou a defender uma flexibilização da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ele quer acabar com a obrigação de adotar medidas de compensação ao dar isenção de tributos. Com isso, o governo poderia zerar os tributos federais PIS e Cofins que incidem sobre combustíveis – uma demanda dos caminhoneiros – sem precisar criar ou aumentar outro imposto.

Ele defendeu essa ideia em público ao menos quatro vezes neste ano. Bolsonaro falou que, se não fosse essa obrigação, já teria zerado os impostos federais sobre combustíveis. “Se não tivesse [a obrigação da compensação], eu zeraria agora os R$ 0,33 [referentes ao custo da PIS/Cofins sobre diesel]", disse no último dia 4, em Cascavel (PR). Os caminhoneiros ameaçaram fazer greve em 1º de fevereiro devido ao custo do diesel, mas o movimento não teve adesão.

Inicialmente, Bolsonaro gostaria que a flexibilização da LRF fosse discutida na reforma tributária. “Na reforma tributária, eu gostaria, não sei se estou certo, tenho que falar com Paulo Guedes [ministro da Economia] antes, que nós não tivéssemos este entendimento na Lei de Responsabilidade Fiscal, ao diminuir imposto ser obrigado a achar a fonte para compensar aquilo que foi diminuído em outro local", disse no dia 30 de janeiro, em Brasília.

Recentemente, o presidente mudou de ideia. Ele quer que a discussão seja feita agora, dentro da proposta de emenda à Constituição (PEC) que vai viabilizar o pagamento do auxílio emergencial em 2021 ao prever uma cláusula de excepcionalidade que dispensará o cumprimento de regras fiscais em momentos de calamidade. A proposta será votada no dia 25. Enquanto isso, a reforma tributária tramitará por até oito meses, segundo previsão da mesa diretora do Congresso.

“Toda vez que se fala em reduzir a maioria dos impostos, você tem que ou majorar outros tributos, ou criar um novo. Estamos tratando disso, porque pode ser que exista uma cláusula de excepcionalidade para isso. Estamos na pandemia, a crise está aí. No que depender de mim, quero reduzir PIS/Cofins, num primeiro momento, para o diesel", afirmou Bolsonaro durante sua live semanal do último dia 11.

O que diz o artigo da LRF que Bolsonaro quer excluir

O artigo 14 da LRF prevê que, quando Congresso ou Executivo decidem dar algum benefício tributário que implique perda de arrecadação e que afete o cumprimento da meta fiscal do governo, eles precisam apresentar uma medida de compensação para não prejudicar o resultado das contas públicas. A meta fiscal é o resultado das contas públicas que o governo deve perseguir. Ela é definida na Lei de Diretrizes Orçamentárias.

Essa medida compensatória pode ser o aumento de algum imposto existente, a criação de um novo tributo ou a redução de benefícios vigentes. Ela precisa ser apresentada junto com o projeto que dá o benefício tributário para alguém. Caso contrário, o texto não poderia nem ser aprovado.

Mas, como o Congresso frequentemente aprova benefícios sem contrapartida fiscal, cabe ao presidente da República vetar iniciativas assim. Sem o veto, o presidente deve responder por crime de responsabilidade fiscal, passível de impeachment.

O autor do projeto que buscar dar isenção de tributo só é dispensado de apresentar medida de compensação caso prove que a nova isenção não vai afetar a meta fiscal e que seu custo já foi considerado na estimativa de receita da lei orçamentária.

Quais são os impactos de excluir o artigo 14 da LRF?

1. Abrir mão de arrecadação em situação fiscal delicada

Além de ir na contramão do discurso de austeridade fiscal defendido pelo ministro Paulo Guedes, a exclusão do artigo 14 da LRF teria dois impactos diretos, segundo especialistas em contas públicas consultados pela Gazeta do Povo. O primeiro é abrir mão de arrecadação num momento em que a situação fiscal está delicada. A dívida pública do país alcançou o equivalente a 89,3% do PIB em 2020, a maior de toda a série histórica do Banco Central. O patamar é considerado elevado para um país emergente.

“Esse artigo está barrando, literalmente, o governo de abrir mão de receita num momento crítico de restrição fiscal para não melindrar um grupo político. Se hoje não tivesse essa lei, o governo daria o benefício e isso agravaria a situação fiscal”, explica Roberto Ellery, doutor em Economia e professor da Universidade de Brasília (UnB).

Ele afirma que, ao dar isenção de imposto para uma determinada categoria, o governo está aumentando o chamado "gasto tributário", uma conta que terá de ser paga em algum momento. “No fim do dia, quem determina o tamanho do imposto é o gasto do governo. Ou ele paga agora ou ele joga pra frente e vai tributar gerações futuras. Se você dá isenção, seu gasto tributário aumenta e alguém vai ter que pagar essa conta, hoje ou amanhã.”

2. Acabar com um dos únicos mecanismos de controle de receita

O segundo impacto em excluir o artigo 14 da LRF seria acabar com um dos únicos mecanismos previsos em lei que garante uma composição da receita pública, já que as demais regras fiscais, como o teto de gastos, focam no controle das despesas.

Ou seja, a exclusão daria ao governo o poder de aumentar ainda mais as renúncias tributárias. No Demonstrativo de Gastos Tributários anexado ao Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2021, a Receita prevê benefícios fiscais de R$ 308 bilhões, o equivalente a quase 21% da arrecadação federal projetada para o ano e a 4,02% do PIB esperado.

Ao abrir mão de receita, o governo acaba concentrando o ajuste fiscal nas despesas. Isso significa diminuir o dinheiro disponível para investimento, programas sociais e outros itens.

“Quem defende a revogação do art. 14 da LRF ou o direito de o Executivo conceder novas renúncias fiscais no contexto de achatamento do custeio das políticas sociais, ignora que serviços públicos reclamam a presença estatal diretamente”, afirma Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.

“Não se pode imaginar a oferta da educação básica obrigatória e a organização adequada do SUS, por exemplo, sem tributação adequada, até porque ambas as áreas gozam de piso de custeio proporcional à arrecadação de impostos nos níveis estadual e municipal”, completa.

A procuradora lembra que, no Brasil, os benefícios tributários são, historicamente, concedidos por prazo indeterminado e sem avaliação das contrapartidas que justifiquem a sua concessão. Já houve várias tentativas de obrigar o Executivo a diminuir, em conjunto com o Congresso, o nível atual de renúncias fiscais da União para 2% do PIB, metade do patamar atual. Nenhuma das tentativas de revisão foi levada adiante.

“Seguimos em pleno 2021 com mais de 4% do PIB em renúncias fiscais, enquanto o país só vê ser conduzido um debate iníquo e absolutamente enviesado de ajuste fiscal apenas incidente sobre despesas primárias”, diz Élida. “A baixa qualidade dos gastos tributários merece um debate próprio por parte da sociedade, porque eles acabam por se comportar como privilégios fiscais em uma sociedade tão desigual e carente de bons serviços públicos”, finaliza a procuradora.

Não é a primeira tentativa de flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal

A ideia lançada pelo presidente Bolsonaro de flexibilizar a LRF é antiga. Em 2012, por exemplo, o então líder do governo de Dilma Rousseff (PT) no Senado, o senador Eduardo Braga (PMDB), defendia mudanças no artigo 14 da legislação. Ele queria garantir que o governo tivesse direito de conceder ou ampliar benefícios tributários em duas hipóteses: se houvesse excesso de arrecadação tributária no ano ou compensação de contingenciamento de verbas orçamentárias. A ideia não vingou.

“A Lei de Responsabilidade Fiscal ela tá sendo sempre testada. Agora, esse em particular [aventado por Bolsonaro], é um teste perigoso”, diz Ellery. "Você abre espaço para atender a pressão de um grupo específico e amanhã vem pressão de outro grupo. A situação fiscal está muito crítica, precisamos tomar cuidado com essas medidas que aumentam o gasto", conclui o economista.

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