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Direito Trabalhista

Suspensão de processos de “pejotização” reacende embate entre STF e Justiça do Trabalho

Decisão do ministro Gilmar Mendes de suspender processos sobre pejotização em todo o país reacende embate entre STF e a Justiça Trabalhista
Decisão do ministro Gilmar Mendes de suspender processos sobre "pejotização" em todo o país reacendeu embate entre o STF e a Justiça do Trabalho (Foto: Valter Campanato/Agência Brasil)

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A suspensão de todos os processos que tratam da validade da contratação de trabalhadores autônomos ou pessoas jurídicas para prestação de serviços – a “pejotização” – inaugura mais um capítulo no embate entre o Supremo Tribunal Federal e a Justiça do Trabalho. A medida foi determinada pelo ministro Gilmar Mendes na segunda-feira (14).

Mesmo não afetando o mérito da questão, cujo julgamento segue em curso no Plenário do Supremo, a decisão do magistrado tem sido criticada sob o argumento de “esvaziar” as competências da Justiça Trabalhista. Os críticos também consideram que a suspensão e a futura decisão do STF podem trazer riscos para os trabalhadores e, até mesmo, questões fiscais para o governo.

Como justificativa para a medida, Mendes afirmou que controvérsias em torno da validade ou não dos contratos de pessoa jurídica têm sobrecarregado a Suprema Corte com recursos que questionam a constitucionalidade das decisões da Justiça do Trabalho. O magistrado alega que a alta demanda tem transformado o STF “em instância revisora de decisões trabalhistas”.

O magistrado disse que as cortes trabalhistas têm violado a orientação do STF, referindo-se às decisões relativas ao Tema 725 e à ADPF 324, nas quais o Supremo julgou ser “lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas”, com base no princípio da liberdade negocial.

Em resposta à suspensão dos processos sobre pejotização, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) se disse preocupada com os “riscos” vinculados à decisão do ministro do Supremo. De acordo com a entidade, a suspensão das ações pode inviabilizar o funcionamento da Justiça especializada, em razão do alto montante de processos dessa natureza em tramitação.

STF e Justiça do Trabalho já divergiram sobre terceirização e pejotização

Esse não é o primeiro embate entre ambas as instâncias do Judiciário em relação a contratos de terceirização e de pessoa jurídica. Os próprios julgamentos do Tema 725 e da ADPF 324 foram vistos como uma disputa entre o STF e a Justiça Trabalhista.

Nesses casos, o STF reconheceu a validade constitucional da contratação irrestrita para fins de terceirizar quaisquer atividades, incluindo a atividade-fim das empresas. A decisão vinculante do Supremo considera a liberdade de negociação entre as partes e a validade formal para se estabelecer esses contratos.

A Justiça Trabalhista, por sua vez, defende que cada caso deve ser avaliado em seus aspectos de realidade, em detrimento do que está firmado no contrato de serviços.

Felipe Pinheiro, head da área trabalhista do Carvalho Borges Araújo Advogados, explica que o Direito do Trabalho “se ampara na primazia da realidade sobre a forma e na prevalência do interesse coletivo quanto à proteção social do trabalhador”.

Em sua decisão pela suspensão dos processos de pejotização, Gilmar Mendes afirmou, por outro lado, que “o descumprimento sistemático da orientação do Supremo Tribunal Federal pela Justiça do Trabalho tem contribuído para um cenário de grande insegurança jurídica".

Disputas entre STF e Justiça do Trabalho vão além da pejotização

O STF e a Justiça do Trabalho também têm demonstrado entendimentos conflitantes em outros temas, como o dos vínculos entre trabalhadores e plataformas de aplicativos. Em dezembro de 2023, após várias decisões monocráticas, a 1.ª Turma do Supremo decidiu por unanimidade pela inexistência do vínculo empregatício nesses casos.

Os magistrados entenderam que a relação entre motoristas e aplicativos é caracterizada pela autonomia e flexibilidade, o que permite aos condutores escolher seus horários, aceitar ou recusar corridas e utilizar múltiplas plataformas simultaneamente.

No entanto, Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) continuaram proferindo sentenças contrárias ao entendimento da Suprema Corte. A controvérsia é tamanha que houve divergências de entendimento até mesmo entre as turmas do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

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Especialistas veem riscos com avanço da pejotização

Felipe Pinheiro entende que, caso a decisão final do STF – que terá repercussão geral, valendo para todas as outras instâncias do Judiciário – seja a favor da pejotização, o principal prejudicado pode ser o trabalhador. No entanto, ele avalia que o cenário ainda é de muita incerteza. “Por ora, não há nenhuma mudança efetiva. É preciso aguardar o desfecho do julgamento e a modulação da decisão."

Da mesma forma, Elisa Alonso, especialista em Direito do Trabalho e sócia do RCA Advogados, avalia que a suspensão dos processos e a eventual consolidação de um entendimento mais permissivo às práticas de pejotização pode significar uma perda importante de proteção social e de garantias trabalhistas.

A jurista menciona inúmeros casos em que a contratação por meio de pessoa jurídica esconde uma verdadeira relação de emprego, com subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade, mas sem haver reconhecimento formal dos direitos decorrentes da CLT.

“Nestes casos, a pejotização se converte em instrumento de precarização, privando o trabalhador de acesso a férias, 13.º salário, FGTS, verbas rescisórias e Previdência Social adequada", afirmou.

Empresas veem alívio com possível validação de contratos de PJ

Por outro lado, a especialista em Direito do Trabalho avalia que a suspensão momentânea dos processos determinada pelo STF pode trazer um alívio para as empresas – especialmente em relação à insegurança jurídica gerada pela ausência de um parâmetro claro sobre a licitude da terceirização e da contratação de autônomos.

Alonso explica que setores que operam com alta demanda por especialização técnica e flexibilidade contratual – como tecnologia, saúde, advocacia e representação comercial – têm utilizado modelos de contratação alternativos à CLT. E isso tem sido vital para viabilizar operações, reduzir custos e adaptar a prestação de serviços às dinâmicas modernas de mercado.

“Com a suspensão e o efeito vinculante advindo do julgamento, as empresas esperam que o STF reafirme a validade dos contratos firmados, desde que não haja fraude ou desvirtuamento da sua finalidade”, concluiu.

Especialista alerta para distinção entre pejotização e terceirização

Segundo Felipe Pinheiro, há uma questão relevante sobre as decisões do STF no Tema 725 e na ADPF 324. Ambas tratam da licitude da contratação de mão de obra terceirizada para prestação de serviços relacionados à atividade-fim da empresa, ou seja, versam sobre contratos de terceirização.

Assim, ao eleger esses dois julgamentos prévios como “paradigmáticos" para firmar sua convicção em defesa da pejotização, o STF estaria misturando ambas as práticas, apesar de serem distintas entre si.

Agora, com o Tema 1389, o STF está avaliando a competência e os ônus de prova nos processos que discutem a existência de fraude no contrato civil/comercial de prestação de serviços; e a licitude da contratação de pessoa jurídica ou trabalhador autônomo para essa finalidade – ou seja, os contratos de pejotização.

Decisão pode reduzir arrecadação de INSS e afetar FGTS, diz Anamatra

Outro ponto crítico são as possíveis consequências da decisão final do STF sobre o mérito da validade ou não da pejotização. Na visão da Anamatra, ao atribuir às relações de trabalho “aspecto puramente formal", a ADPF 324 não debateu os “efeitos da pejotização ampla e outros aspectos fraudulentos da contratação do trabalho humano”.

A entidade avalia que, se seguido o entendimento das decisões anteriores do STF, pode haver “risco fiscal para o país, além de déficit previdenciário”. O temor é de que haja um aumento considerável no número de contratos de pessoa jurídica.

Em consequência, haveria menos arrecadação de tributos trabalhistas pelo governo federal, incluindo o INSS. O Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e áreas vinculadas que dependem amplamente desses recursos para seu próprio financiamento – como o setor imobiliário, por exemplo – também poderiam ser impactados.

Decisão do STF pode limitar Justiça do Trabalho, mas trazer segurança jurídica

Na visão de Pedro Maciel, advogado trabalhista e sócio da Advocacia Maciel, a decisão do STF pode trazer segurança institucional para que empresas possam firmar ou não a contratação de trabalhadores como pessoa jurídica. No entanto, ele lembra que está em vigor, no Tribunal Superior do Trabalho, um julgamento em sede de Incidente de Recursos Repetitivos sobre o mesmo assunto.

Nesse sentido, Maciel avalia que a decisão do ministro Gilmar Mendes acaba por se tornar uma tentativa de esvaziar a competência da Justiça Trabalhista ao se sobrepor a qualquer decisão da corte superior dessa instância. Além disso, ignoraria a redação do artigo 114 da Constituição Federal, que determina a competência da Justiça do Trabalho para julgar as causas vinculadas a relações empregatícias.

Para Elisa Alonso, a decisão representa um marco relevante na forma como o Poder Judiciário brasileiro enfrentará, daqui em diante, as controvérsias sobre modelos contratuais alternativos ao vínculo celetista.

“Mais do que uma medida processual, trata-se de um gesto político-jurídico que busca conter a fragmentação jurisprudencial e consequente insegurança jurídica, ao mesmo tempo em que reafirma a necessidade de observância do entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito das teses de repercussão geral", afirmou.

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