Política externa adotada pelo chanceler Carlos Alberto França será usada como combustível para a campanha eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PL)| Foto: Marcos Corrêa/PR
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O presidente Jair Bolsonaro (PL) está confiante de que tem argumentos suficientes para rebater os críticos da política externa do Itamaraty antes e durante a corrida presidencial. Seus principais conselheiros para assuntos externos entendem que a reaproximação entre Brasil e Estados Unidos é um sinal de que mesmo a criticada posição brasileira sobre a Rússia em relação à guerra na Ucrânia está correta e ajuda a ampliar o capital político e diplomático do governo.

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Diplomatas defendem que, com o passar do tempo, a posição em relação à Rússia — classificada pelo Itamaraty como de "equilíbrio", não neutralidade — se mostrou acertada. O Brasil condenou os ataques russos na Assembleia-Geral e no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), mas se absteve pela suspensão russa no Conselho de Direitos Humanos e na cooperação entre Moscou e a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

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O entendimento no Itamaraty é de que o Brasil condenou a invasão russa nos fóruns cabíveis a fim de defender a paz e o diálogo, mas que não poderia alijar a Rússia. "Não faz sentido 'eliminar' quem quer que seja", sustenta um diplomata brasileiro. A reaproximação com os Estados Unidos, agora, mesmo após críticas ao posicionamento brasileiro, reforça a leitura interna de que a política externa acertou no tom e na execução, e abre caminho para o governo explorar isso.

A leitura feita por diplomatas é respaldada por militares em funções no governo, que defendem um estratégico uso político e eleitoral da política externa ao longo do ano. Militares das Forças Armadas também endossam a visão. O comandante da Marinha, Almir Garnier Santos, cumpriu uma agenda de viagens na Itália, Turquia e em Cabo Verde entre o fim de abril e o início de maio e, segundo afirmam interlocutores, a comitiva foi recebida com "tapete vermelho" nos países visitados.

Segundo apurou Gazeta do Povo com fontes da Marinha, o presidente da Turquia, Recep Erdogan, demonstrou, inclusive, o interesse em dialogar a inclusão do país no Brics, grupo de países que inclui o Brasil, a Rússia, Índia, China e África do Sul. O presidente turco, inclusive, tem adotado esforços para mediar um cessar-fogo e um acordo de paz no Leste Europeu.

Entre março e abril, Erdogan conversou com os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e o secretário-geral da ONU, António Guterres. "Ao contrário do que uma parte da imprensa tenta colocar, a gente é recebido fora do país com tapete vermelho. O desejo do Erdogan em colocar um país com uma posição estratégica como a Turquia no Brics só reforça nossa posição [sobre a guerra], que está certa", destaca um oficial militar.

Militares e diplomatas estimulam Bolsonaro a ir à Cúpula das Américas

Diplomatas e militares entendem que o Brasil deve manifestar sua ambição de participar da governança mundial. Interlocutores do Itamaraty preveem que a situação geopolítica seguirá ditando a agenda internacional e sustentam que a pasta manterá seu posicionamento atual. Eles ponderam, porém, que o país já tinha e continua a ter mais condições de exercer um papel de relevância.

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A fim de ampliar o capital político e diplomático brasileiro, militares e diplomatas mais próximos de Bolsonaro o estimulam a ir à 9ª edição da Cúpula das Américas, em junho, nos Estados Unidos, para consolidar a reaproximação com o governo norte-americano sob a presidência de Joe Biden. O ministro das Relações Exteriores, Carlos Alberto França, avalia que o discurso presidencial estará respaldado pela segurança que tem na valorização da política externa.

A análise do chanceler é apoiada por diplomatas brasileiros, ministros e assessores militares do Palácio do Planalto, como Braga Netto, ex-ministro da Defesa. A leitura feita é de que Bolsonaro pode usar a Cúpula das Américas como o pontapé que pode impulsionar a projeção internacional da política externa brasileira em sessões e reuniões nos demais fóruns internacionais ao longo do ano.

O objetivo do governo é transmitir nos mais diferentes organismos multilaterais a imagem de um Brasil "forte", "sereno", "prudente" e que dialoga com o mundo buscando atuar ativamente em uma política externa que valorize os laços com o mundo sem "fechar portas". Para isso, além da Cúpula das Américas, o Itamaraty deve enviar representantes em pelo menos outros sete fóruns, além de reuniões na área do Brics.

Ainda em maio, o Brasil terá representantes em um evento organizado nacionalmente em parceria entre os ministérios do Meio Ambiente e das Relações Exteriores sobre o mercado de créditos de carbono, que deve reunir líderes internacionais para discutir como seria a implementação de um mercado global. Os ministérios da Economia e de Minas e Energia também participarão.

Entre o fim de maio e início de junho, o Brasil participa de uma Reunião Ministerial do Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). No mesmo mês, também enviará representantes para a 12ª Reunião Ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), em Genebra, Suíça.

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Em julho, o Brasil assume a presidência rotativa mensal do Conselho de Segurança da ONU. No Itamaraty, é dito que o chanceler, Carlos França, participará de ao menos uma sessão. Entre agosto e setembro, o governo enviará representantes à Conferência da ONU de Biodiversidade (COP-15), onde defenderá um novo marco global sobre a biodiversidade. O evento está previsto para acontecer em Kunming, na China, mas devido ao novo surto de Covid-19 no país, é possível que seja transferido para o Canadá.

Em setembro, o governo comparecerá à Assembleia-Geral da ONU. É uma praxe diplomática o presidente da República sempre abrir oficialmente o evento com um discurso. Mesmo se tratando de um período eleitoral, é padrão o presidente comparecer. Em novembro, o governo também estará presente na Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP-27), em Sharm El-Sheikh, no Egito.

Como o governo planeja assumir protagonismo com sua política externa

A expectativa no governo é de que, com sua postura de equilíbrio na política externa, o Brasil possa atingir algum nível de protagonismo no debate internacional e usar seu capital político e diplomático "acumulado", como sustentam alguns diplomatas, para defender diferentes demandas.

O principal pleito para este ano é a ascensão à OCDE. Em janeiro deste ano, o chamado "clube dos países ricos" aprovou o convite para o Brasil negociar sua entrada. O governo tem adotado as medidas possíveis para avançar as tratativas. Em março, o ministro da Economia, Paulo Guedes, viajou a Paris para uma reunião com o secretário-geral da organização, Mathias Cormann, para tentar azeitar a aprovação de um "roteiro" que deve orientar a negociação de adesão, segundo informou o jornal Valor Econômico.

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A expectativa do governo é de que esse roteiro possa ser aprovado em junho na Reunião Ministerial da OCDE. Uma vez feito isso, o país precisará se posicionar sobre todas as recomendações feitas pelo clube dos países ricos. Quanto mais rápido o Brasil responder as recomendações contidas no roteiro, mais rápidas as negociações tomam corpo.

O Brasil está em uma posição mais avançada em relação a outros candidatos para negociar sua ascensão à OCDE. Mesmo Argentina e Peru, na América Latina, como Romênia, Bulgária e Croácia, estão em posições menos privilegiadas na mesa de negociações. Um compromisso que o país precisa firmar é o de proteção do meio ambiente e de ações em favor do clima, incluindo para desacelerar o desmatamento.

Diplomatas brasileiros entendem que a pressão ambiental é exercida principalmente por países da União Europeia, com quem o Brasil e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) tem tido dificuldades em selar o acordo de livre comércio entre os dois blocos. Entretanto, o Itamaraty tem explorado o apoio de diferentes países que compõem a OCDE, sejam do Ocidente, como os Estados Unidos e o Reino Unido, e do Oriente, especialmente os da Ásia.

Além da ascensão à OCDE, diplomatas brasileiros também entendem que o Brasil pode explorar seu capital diplomático para provocar debates sobre reformas do Conselho de Segurança da ONU, da OMC e da Organização Mundial da Saúde (OMS). São pautas já defendidas pela chancelaria e a ideia é reforçar os pleitos.

Na Assembleia-Geral da ONU no ano passado, o ministro Carlos França se reuniu com os chanceleres de Alemanha, Índia e Japão, que, junto com o Brasil, compõem o chamado G4, grupo formado por países que defendem a urgência da reforma do Conselho de Segurança. Os quatro países têm como objetivo comum alcançar um assento permanente no organismo multilateral.

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Diplomatas brasileiros entendem que o Conselho de Segurança tende a uma postura de inércia diplomática e que se move à base de "abalos sísmicos", mais externos do que internos. Há, portanto, o entendimento de que a guerra na Ucrânia propicia a discussão de uma reforma e que o Brasil possa assumir um protagonismo no debate.

A análise é de que a política externa adotada durante a guerra reforça as relações com membros permanentes do Conselho de Segurança, como Rússia e China, sem fechar as portas para Estados Unidos e Reino Unido. A França, porém, que reelegeu o presidente Emmanuel Macron, desafeto do governo, pode oferecer maior resistência. Diplomatas analisam, no entanto, que essa discussão pode ficar para um segundo momento, quando "abaixar a poeira" no Leste Europeu.

Já as reformas da OMS e da OMC são vistas como mais tangíveis em um curto prazo por diplomatas. Na OMC, uma defesa é a de redução de subsídios para bens agrícolas. O Brasil tem buscado protagonismo no debate sobre a crise alimentar e, inclusive, propôs a adoção de corredores alimentares e de insumos para fluir produtos agrícolas nos mercados globais, a despeito de sanções à Rússia. Na OMS, a defesa é por respostas mais ágeis para surtos de doenças e pela universalização das vacinas, de insumos e equipamentos médico-hospitalares.

Quais as chances de o governo assumir o protagonismo almejado

O especialista em relações internacionais Ricardo Mendes, sócio-diretor da consultoria Prospectiva, entende que o governo queira mostrar os resultados de sua política externa durante a campanha eleitoral e tente obter um protagonismo internacional maior. Sobretudo após o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltar a ser reconhecido como importante líder mundial pela revista americana Time, ainda que a agenda exterior não tenha muito peso eleitoral.

Porém, o consultor avalia que falta um pouco de capital político para o Itamaraty conduzir a agenda com a robustez almejada. "Não é que esteja com o capital queimado, mas isso é um pouco de movimentação eleitoral para criar narrativa para a torcida interna, o Brasil não tem, nem agrupou capital político para ser visto como liderança e discutir grandes temas", analisa.

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Sobretudo em se tratando de uma reforma do Conselho de Segurança da ONU, Mendes entende que o Brasil não tenha "ressonância" para discutir como uma liderança internacional de destaque. "Vai tentar levar a discussão, mas falta um pouco de aderência dessa proposta no contexto internacional e o capital político, a distribuição de poder é outra", reforça.

O sócio-diretor da Prospectiva entende que, para as reformas da OMS e da OMC, o Brasil possa, sim, ser ouvido como um player importante no cenário internacional, mas não com um papel de protagonista. "Temos respeito de um grupo grande de países, talvez a maior parte dos países do mundo, mas liderar é complicado", analisa. Para ele, a ascensão à OCDE é uma missão mais factível, sobretudo com a possibilidade de Lula ganhar a eleição e se distanciar dos países do Ocidente.

"Vejo bastante movimentação em torno disso. É um tema que ganha tração e mobiliza muitos grupos de interesse fora do Brasil, Washington, Europa, pois veem oportunidade de exigir mudanças em algumas regulamentações no Brasil não só para alinhar com a OCDE, mas usar como moeda de barganha uma demanda por mudanças na política ambiental, por exemplo", pondera Mendes.

Já o especialista em relações internacionais Welber Barral, sócio-fundador da BMJ Consultores Associados, concorda parcialmente com as defesas feitas por militares e diplomatas sobre a política externa do governo por entender que, de fato, há uma mudança no cenário internacional e o Brasil tem papel relevante. Porém, ele entende que o ritmo dessa mudança não é rápido.

Para Barral, mesmo a aproximação com os Estados Unidos não se consolida em um ano eleitoral. "Você tem uma mudança, mas o ritmo de implementação depende de fatores e falamos de uma mudança institucional. Muito provavelmente os EUA vão esperar para saber com que governo vão negociar no ano que vem", destaca.

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O sócio-fundador da BMJ Consultores aponta, ainda, que a reaproximação com os Estados Unidos não é exclusiva do Brasil, e que há uma preocupação e mudança de postura da gestão Biden em relação à América Latina em geral, inclusive com a Venezuela.

"Para muitos países, inclusive os EUA, o Brasil não é visto como uma entidade sozinha, mas parte de uma política para a América Latina. Então, Washington provavelmente vai criar iniciativa de mais investimentos, mas para a região. O quanto o Brasil vai se aproveitar disso vai depender dos esforços da política externa", sustenta.

A lógica apontada por Barral também vale para as demandas do Brasil nos organismos multilaterais. Para o especialista, o Brasil seguirá sendo cobrado por mudanças na área ambiental, pelos EUA e Europa, e precisará honrar os compromissos acordados. Só assim, na opinião do especialista, poderá ampliar seu capital político e sua relevância no cenário internacional para pleitear suas demandas.

O conselheiro da BMJ aponta, porém, que mesmo pautas como reformas da OMC e OMS não são rápidas. "Uma reforma da OMC vai levar até 5 anos, estamos falando de algo a médio prazo. A do Conselho de Segurança talvez mais ainda", alerta. "Reformas institucionais são lentas, são longos processos de negociação. Vão ter cobranças, vai precisar de articulação não só do Itamaraty, mas do governo, da sociedade civil e do setor privado para que tenha postura internacional de melhorar a imagem internacional", acrescenta.

Lideranças do Congresso defendem política, mas pedem mais avanços

O deputado federal Cláudio Cajado (PP-BA), presidente nacional em exercício do partido e presidente do Grupo Parlamentar Brasil-Ucrânia, elogia a política externa adotada pelo Brasil e acredita que há avanços que respaldam o otimismo do Itamaraty em relação à agenda internacional.

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"Penso que a nossa posição, nossa dimensão e a nossa tradição são, sim, atrativos para que possamos estar cada vez mais envolvido em posições como a do convite da OCDE, que acho ser fundamental para o Brasil, importantíssimo para que consigamos cada vez mais aprimorar nossa governança em termos de gestão pública", analisa.

Membro titular da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN) da Câmara, Cajado entende que, tão logo surjam as oportunidades para avançar nas negociações por reformas dos organismos multilaterais, o Brasil irá discutir com um papel relevante. "E se forem medidas que aprimorem e melhorem o funcionamento [dos organismos], não tenho dúvidas de que poderemos, sim, nos aliar aos países que desejam fazê-lo", pondera.

O parlamentar defende, ainda, a política externa feita pelo chanceler e entende que a posição de equilíbrio e imparcialidade do Brasil permite a construção de relações políticas e comerciais de "boa vizinhança" com outros países no plano "mais elevado" possível. "O Itamaraty com o ministro Carlos França está indo muito bem, bem melhor do que antes", destaca.

O deputado federal Fausto Pinato (PP-SP), presidente das frentes parlamentares Brasil-China e do Brics, classifica França como um "craque" da política externa. "De certa forma, ele vem tentando reparar alguns erros mortais que foram feitos pela linha 'terra plana' do ex-ministro das Relações Exteriores [Ernesto Araújo]", declara.

Embora entenda que os impactos, declarações e ações na gestão anterior estejam minimizadas, Pinato avalia, porém, a gestão de França ainda não fez acenos mais significativos à China. "Que gesto efetivo foi feito em relação à China depois de tantos ataques da gestão anterior? Inclusive, não vimos um gerenciamento para tentar, de certa forma, buscar a nomeação do novo embaixador da China", critica.

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A embaixada da China está sem um representante oficial desde que o ex-embaixador, o diplomata Yang Wanming, deixou o cargo em 5 de março. Pinato defende que o Brasil tenha atenção com o governo chinês e dialogue com a representação chinesa um sucessor. "Falta racionalidade e pragmatismo para fazer negócios, melhorar a exportação e, consequentemente, gerar empregos e elevar a arrecadação", destaca.

Pinato pondera que a prioridade para o país é combater a inflação com medidas para diminuir o valor do combustível, do botijão de gás e dos alimentos, e e entende que a política externa do Itamaraty pode ter um papel preponderante para auxiliar os esforços do governo nessa missão. "Discutir política externa também é discutir combustível e insumos para o agronegócio", justifica.