Em contraste com o cenário econômico positivo que deve encerrar este ano, quem for eleito para a Presidência da República em outubro vai se deparar inevitavelmente com um quadro de desajuste fiscal em 2023.
Resultado da necessidade de renovação de despesas temporárias, reajuste de servidores, perdas de arrecadação, contas adiadas, além de outros riscos, a chamada “bomba fiscal” pode render ao novo governo um rombo de até R$ 430 bilhões no Orçamento, segundo cálculos de pesquisadores do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV).
A projeção é dos economistas Braulio Borges e Manoel Pires, que dividiram a fatura em quatro categorias. “O mais correto, na verdade, é falar em bombas fiscais, no plural”, diz Borges. A conta começa com despesas que não estão previstas no Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA), enviado ao Congresso nesta quarta-feira (31), e que podem chegar a R$ 120 bilhões.
Só a manutenção do piso do Auxílio Brasil em R$ 600, promessa dos principais candidatos à presidência, deve gerar uma despesa adicional de R$ 60 bilhões no ano. No PLOA, o valor médio do benefício previsto para 2023 é de R$ 405, mas o governo de Jair Bolsonaro (PL) afirma no texto que buscará meios de comportar no Orçamento o valor atual do benefício, que, conforme emenda constitucional promulgada em julho, vigora apenas até dezembro.
Concorrentes de Bolsonaro na disputa presidencial, Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Simone Tebet (MDB) também prometem tornar permanente o valor de R$ 600 para o auxílio, enquanto Ciro Gomes (PDT) pretende elevá-lo para R$ 1 mil e ampliar o programa ao fundi-lo com outros benefícios sociais em um programa de renda mínima.
Recentemente Lula falou em pagar um adicional de R$ 150 por criança de até 6 anos, e Bolsonaro prometeu um adicional de R$ 200 para o beneficiário que conseguir emprego com carteira assinada. Esse benefício já está previsto na estrutura do programa desde sua criação, mas não tem sido pago.
Em outra frente, cresce a pressão por um reajuste do funcionalismo público em meio à inflação dos últimos dois anos. A peça orçamentária reserva um montante de R$ 14,2 bilhões para a atualização dos salários, sendo R$ 11,6 bilhões para os servidores do Executivo, o que permitirá um aumento de menos de 5%, bem abaixo dos 20% que pedem os funcionários públicos.
Outra bomba vem de medidas que, embora não aumentem despesas, vão afetar negativamente a receita do ano que vem. Entram nessa categoria desonerações aprovadas este ano, além da atualização da tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), que, embora prometida por Bolsonaro, não entrou no PLOA 2023. Em conjunto, os itens podem superar os R$ 25 bilhões em bases permanentes.
“Se considerarmos a normalização da arrecadação do setor de petróleo, estimada em R$ 62 bilhões, o total [em perda de arrecadação] chega a R$ 86 bilhões”, explicam Borges e Pires.
Além disso, há ainda eventos com impactos financeiros negativos como a elevação da taxa de juros e a suspensão do pagamento das dívidas dos estados, que podem produzir um custo da ordem de mais R$ 77 bilhões. Segundo os economistas, apesar de não afetarem o resultado primário, são fatores que agravam o déficit nominal porque elevam o pagamento de juros líquidos.
Finalmente, há riscos fiscais que podem ou não se materializar, como a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal (STF) determinar o pagamento de precatórios atrasados e de compensações a estados e municípios em razão da fixação do teto do ICMS sobre combustíveis, energia elétrica, transportes e telecomunicações. Somados, esses itens têm o potencial de acrescentar outros R$ 144 bilhões à conta.
Não entraram na conta outras medidas de menor impacto, como o adiamento para 2023 de repasses a estados e municípios das leis de auxílio à cultura Paulo Gustavo e Aldir Blanc, e a antecipação de dividendos que seriam pagos por estatais à União em 2023 e que o governo pediu que fossem distribuídos já em 2022.
Mercado financeiro já cobra preço por desajuste fiscal no ano que vem
“Há outros itens de menor relevância, mas a gente tem esses grandes riscos que, somados, dão um montante potencial nada desprezível do ponto de vista de impacto fiscal, seja sobre o resultado primário, seja sobre a dívida pública. Não quer dizer necessariamente que tudo isso vai acontecer”, afirma Borges.
O problema, segundo ele, é que, durante o período de campanha eleitoral, não há incentivo para que os candidatos tratem desses problemas, uma vez que a solução, conforme estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), passa necessariamente por corte de despesas em outras áreas ou por aumento de carga tributária.
“Isso obviamente alimenta incerteza, fazendo com que o mercado financeiro cobre juros cada vez mais altos para o governo financiar sua dívida”, diz o economista.
“Não é só um problema que vai surgir no ano que vem e que, por isso, podemos esperar; há um impacto imediato dessa incerteza”, explica. “No mercado brasileiro de títulos públicos, hoje o governo, para vender um papel com vencimento em dez anos, tem de pagar juros reais em torno de 5,8%. O governo americano está pagando juro real de 1% para um título semelhante.”
Cenário exigirá novo arcabouço de regras fiscais
Silvio Campos Neto, economista sênior e sócio da Tendências Consultoria, explica que não há como cobrir toda essa conta com o Orçamento previsto para 2023, levando em conta a LRF e a regra do teto de gastos, que limita o crescimento anual de despesas à correção pela inflação.
“Certamente não é um valor que vai caber no teto de gastos”, diz. “O que o novo governo vai ter de fazer é negociar junto ao Congresso para obter um 'waiver', uma espécie de licença, para conseguir cumprir os custos e mostrar uma economia sustentável”, afirma.
O waiver seria uma autorização para o governo descumprir as atuais regras, temporariamente e dentro de determinados limites. A ideia, defendida por diversos economistas, é que a licença seja concedida por um período de seis meses para que, durante esse período, o presidente eleito possa discutir um redesenho do arcabouço fiscal, uma vez que o teto de gastos seria insuficiente para garantir a sustentabilidade das finanças públicas na atual conjuntura.
O mecanismo consta, por exemplo, de um documento com sugestões para o próximo governo produzido pelos economistas Bernard Appy, Carlos Ari Sundfeld, Francisco Gaetani, Marcelo Medeiros, Pérsio Arida e Sérgio Fausto. Eles propõem um programa especial de gastos, que não seria incluído no teto constitucional de gastos, limitado a 1% do PIB.
Do lado do governo Bolsonaro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, já falou sobre a necessidade de um waiver para a manutenção de gastos sociais. Na campanha do ex-presidente Lula, o ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa, que assessora o candidato, também é favorável à medida.
Ambas as equipes falam também em mudanças no regime fiscal. Uma das ideias em estudo no governo é uma regra que atrele a restrição ao aumento de despesas a outro indicador, como o da dívida pública. Se a dívida estiver acima de determinado patamar, a correção continuaria a ser feita basicamente pela inflação, como é hoje. Caso a dívida caia abaixo da linha de corte, a atualização do teto poderia ter um aumento real, permitindo despesas maiores.
Mais recentemente, Paulo Guedes apresentou outra alternativa para continuar pagando R$ 600 de Auxílio Brasil por família. Disse que, se a guerra na Ucrânia continuar, o governo pode tentar prorrogar o estado de emergência que permitiu, neste segundo semestre, a elevação dos gastos com benefícios.
“Há várias propostas em discussão, mas para substituir o teto de gastos, a gente vai ter que pensar em um novo arcabouço de regras fiscais que seja mais resiliente, que vá durar muito anos. Por isso, seria interessante ter um tempo um pouco maior, não só para o debate técnico, mas também em razão do tempo político, de se levar a discussão para o Congresso, que volta do recesso apenas em fevereiro e ainda terá de eleger as novas lideranças das Casas”, diz Braulio Borges, da FGV.
“O waiver surge nesse contexto, como uma transição orçamentária para acomodar parte dessas questões que não estão equacionadas no ano que vem e enquanto se discute o que colocar no lugar do teto de gastos”, afirma.
O economista defende, no entanto, que a licença seja limitada a cerca de seis meses e a, no máximo 1,5% do PIB, uma vez que a dívida pública do país ainda está em um patamar considerado elevado, com previsão de encerrar o ano em 78,5% do PIB.
Tiago Sbardelotto, analista de macroeconomia da XP Investimentos, defende a adoção de um teto fiscal “ajustado” para incorporar as novas despesas, com a possibilidade de uma nova regra de correção, porém sem a necessidade de um waiver.
“A instituição de uma licença temporária para aumentar os gastos no curto prazo não resolve o problema. Assim, a solução é incorporá-las à nova regra de despesas e investir em reformas para reduzir estruturalmente o custo do setor público para que novos represamentos não ocorram adiante”, afirma.
Para Campos Neto, é possível reajustar as contas já no próximo ano, desde que o governo adote uma postura mais austera, diferente da adotada nos últimos meses. “O que se espera é que isso seja uma direção mais de campanha eleitoral e que, a partir do ano que vem, o novo governo assuma tendo ciência do tamanho do problema, equilibrando as demandas, mas também a necessidade de ajuste, e consiga criar um ambiente que demonstre essa viabilidade fiscal no médio e longo prazo”, diz.
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