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Uma mulher atravessa uma rua inundada depois que chuvas torrenciais inundaram várias regiões de São Paulo. (11 de março de 2019). – (Foto de Miguel SCHINCARIOL / AFP)
Uma mulher atravessa uma rua inundada depois que chuvas torrenciais inundaram várias regiões de São Paulo. (11 de março de 2019). – (Foto de Miguel SCHINCARIOL / AFP)| Foto:

Maior metrópole do Brasil e uma das maiores conurbações do planeta, com mais de 20 milhões de habitantes, São Paulo é conhecida como a cidade que nunca para. Basta chover, no entanto, para que as mazelas do subdesenvolvimento brasileiro — mesmo na capital do estado mais rico da federação — emerjam dos bueiros: enchentes, sujeira e a morte da população mais vulnerável.

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Cidades grandes têm problemas e questões semelhantes. Como diz a urbanista Regina Meyer, “a escala muda a natureza do problema”. Uma preocupação comum presente na gestão de metrópoles é o sistema hídrico de escoamento de água, desenvolvido para conter alagamentos e enchentes no período de chuvas.

A questão foi evidenciada nas chuvas do último domingo em São Paulo, com diversas regiões da capital ficando completamente alagadas, criando um cenário caótico que não é apenas obra da natureza, mas causado por negligências e imprudências orçamentárias. Os problemas da capital paulista revelam muito sobre como as coisas funcionam no Brasil. Abaixo, listamos quatro delas:

1) Em terra de farinha pouca, meu pirão primeiro

O gasto do Estado tende a ser alocado em favor de grupos de interesses específicos e de minorias organizadas com muita influência política. Cortar o investimento em obras de contenção de enchentes é um ato administrativo mais célere e mobiliza menos opositores politicamente influentes do que, por exemplo, alterar o regime previdenciário de servidores públicos, atualmente a maior fonte de despesa dos entes federativos. Como esse custo representa uma alta concentração de benefícios para aqueles que são funcionários, qualquer modificação gerará uma forte oposição, uma vez que são enormes os incentivos deste grupo para manifestar-se a fim de manter seus privilégios em detrimento da sociedade civil que os financia.

Como políticos geralmente estão interessados na capitalização da própria imagem, possuem um estímulo para envolverem-se em causas e obras que ganham manchetes e geram maior repercussão. Nesse sentido, os alvos preferidos de cortes são os investimentos preventivos, por não serem muito bem assimilados ou percebidos pela grande maioria do eleitorado. Outro fator que os leva à mira de tesouradas é a rigidez orçamentária típica no Brasil, em que gestores podem administrar apenas uma pequena fração do todo, fazendo com que áreas menos prioritárias sejam as primeiras a sofrerem reduções no orçamento.

Em meio à crise financeira, por exemplo, a prefeitura de São Paulo, ainda sob a gestão de João Dória, cortou 85% da verba para obras de contenção de enchentes. Na ocasião, o então prefeito exonerou o prefeito regional que reclamou da falta de verba antienchente.

Da mesma forma que drenagem é fundamental na agenda de segurança em chuvas, as ações de inteligência o são para a segurança pública. Contudo, pelos mesmos incentivos, não foram privilegiadas no orçamento. Enquanto a despesa com segurança aumentou de R$ 55,7 bilhões para R$ 68,5 bilhões entre 2014 e 2017, o orçamento do setor de inteligência recuou 42% no mesmo período, sendo reduzido para R$ 369,5 milhões. Os cortes foram motivados porque as despesas com previdência e pagamento de salários cresceram.

Quando alguma tragédia ocorre anos após cortes como esses, a população costuma não assimilar a causalidade entre a ação e seu resultado, facilitando essa postura por parte dos governantes.

No ponto de vista macro, a má alocação de recursos é consequência da desigualdade de poder político de diferentes grupos de interesses da sociedade brasileira. Levantamento do Banco Mundial estimou que, em 2016, o orçamento nacional destinou apenas 12,1% do PIB aos 40% mais pobres, beneficiando de forma desproporcional os cidadãos de maior renda. Isso ocorre porque há várias políticas do Estado brasileiro que, emboras vendidas com finalidade “social”, têm como resultado a concentração de renda. Quem pode gritar mais, ganha mais.

2) Omissão das autoridades

São Paulo possui um déficit de 358 mil moradias segundo o Plano Municipal de Habitação de 2016. O município constrói menos de 10% do considerado necessário para atender à demanda por moradias e zerar o déficit habitacional na cidade. Diante disso, aumenta-se o número de moradores em áreas de risco, os mais vulneráveis em meio a chuvas torrenciais.

“Muitas áreas de assentamentos estão consolidadas há décadas e, via de regra, deveriam ser regularizadas para que possam receber investimentos públicos e privados. Mas não há bala de prata para resolver essa questão, leva tempo e demanda-se muito trabalho", explica o urbanista e editor-chefe do site Caos Planejado, Anthony Ling.

Já o consultor Legislativo do Senado Federal na área de Desenvolvimento Urbano, Victor Carvalho Pinto, complementa que um dos fatores que contribuem para os alagamentos é a ocupação irregular do solo, como favelas, invasões e loteamentos clandestinos. “Esse tipo de ocupação remove a vegetação natural, que retém a terra. Com isso, a chuva retira sedimentos, provocando erosão na origem e assoreamento no destino. A grande quantidade de lama trazida pelas enchentes para áreas asfaltadas é um indício de que esse fenômeno está ocorrendo. A erosão provoca o deslizamento das encostas e o assoreamento dos rios provoca ampliação da área sujeita a alagamentos”.

O consultor critica ainda o fato de que programas como o Luz Para Todos, tendo como objetivo a universalização da energia elétrica, acabou por transformar ocupações irregulares temporárias em permanentes.

Vale ressaltar que um trabalho divulgado pelo Ministério das Cidades apontou que 13% dos mais de 24 milhões de domicílios brasileiros possuem algum tipo de precariedade. São cerca de cinco milhões de brasileiros vivendo em áreas de risco.

Autor do livro 'São Paulo nas Alturas', Raul Juste Lores, afirma que habitação nunca foi prioridade nos governos municipais e estaduais em São Paulo: “Mesmo em nível federal, quando feito o Minha Casa, Minha Vida, tratava-se de um projeto de recuperação econômica da construção civil, muito mais do que criar bons bairros e boas moradias. Há dezenas de prédios e terrenos em áreas centrais de São Paulo, muitos deles pertencentes à prefeitura, mas não se cria um sistema de locação social para fazer as pessoas saírem de áreas de risco. Já há know-how para urbanizar favelas, a fim de blindar essas áreas, mas nunca houve essa prioridade”.

A despeito da promessa de reduzir o déficit habitacional, mesmo programas como o Minha Casa, Minha Vida não podem ser considerados bem sucedidos. Isso pode ter se dado pela geração de outros problemas — como o encarecimento do preço dos imóveis e a demanda por maiores investimentos em transporte — ou pelo custo de oportunidade, mediante os valores alocados no programa. Especialistas defendem que deveria-se investir na reforma de imóveis já existentes.

Seja por omissão ou má formatação de políticas públicas eficientes, tanto São Paulo quanto o Brasil sofrem dos mesmos males por estarem presentes em ambos cenários os mesmos incentivos políticos.

3) Falta de saneamento básico e outras medidas

Em boa parte da capital paulista não há tratamento de esgoto e saneamento básico, o que agrava a situação nas chuvas torrenciais. “Esse tipo de obra leva tempo, e o normal é os governantes priorizarem obras que sejam de curtíssima execução e entrega para que possam ser bem sucedidos nas próximas eleições”, diz Juste Lores.

No entanto, não se pode colocar a culpa apenas nos governantes quando há comprometimento da responsabilidade individual:

“houve um curso intensivo de Brasil quando verificamos toneladas de lixo jogadas em qualquer lugar nos bloquinhos de carnaval. A noite da super enchente aconteceu horas após passar nas ruas uma multidão de paulistanos que acham natural fazer isso. As pessoas podem até ter um discurso supostamente engajado para falar de canudinho plástico, mas no dia a dia não estão nem aí para limpeza urbana e meio ambiente”.

Já Carvalho expõe que há outras medidas eficazes para inibir as consequências das chuvas torrenciais: “há aspectos preventivos e com efeitos de longo prazo que poderiam ser melhor adotados, como a exigência ou o incentivo tributário para que edificações instalem reservatórios capazes de reter a água da chuva e planos diretores que exijam uma taxa de permeabilidade para que uma parte do solo não seja coberta pela edificação, permitindo que uma parte da água seja absorvida pela terra”.

Ling argumenta que o foco em recuperação de mananciais, áreas verdes e áreas de retenção de água em terrenos privados pode ajudar, mas a eficácia é limitada. “Um sistema de drenagem e esgotamento pluvial com uma infraestrutura bem executada costuma ser a regra em metrópoles de países desenvolvidos. Tóquio e Nova York não são conhecidas como cidades com amplas áreas verdes para retenção de água,e raramente as vemos alagadas, salvo em exceções como durante o furacão Sandy em Nova York”.

O problema não se trata de uma exclusividade de São Paulo: metade dos domicílios brasileiros não possuem saneamento básico e mais de um terço dos municípios do país registram epidemias relacionadas à falta dele. Mesmo com o poder público sem dinheiro para investir no setor, e havendo evidência de cidades com concessões operadas pela iniciativa privada estarem melhores em saneamento básico, há forte oposição contrária à mudança de rumos.

4) Desconhecimento sobre os responsáveis

A falta de continuidade em um projeto pode ser verificada em São Paulo: desde 2012 passaram pela secretaria do verde e meio ambiente dez nomes diferentes. Ao longo dos quatro anos de Fernando Haddad foram cinco secretários, sendo outros 3 com João Dória. Tudo isso compromete o desenvolvimento de qualquer trabalho.

Outro exemplo pode ser visto na liderança municipal. Os paulistas votaram em João Dória para governar a cidade, mas diante da projeção, a exemplo de antecessores, o empresário alçou voos maiores rumo ao Palácio dos Bandeirantes, deixando seu projeto na mão de Bruno Covas. Desde o começo da atual gestão, porém, este ficou um total de 108 dias afastado da cidade, entre licenças particulares e viagens nacionais e internacionais. Isso inclui, vale ressaltar, a participação em reuniões e eventos como representante da cidade.

Em meio às chuvas, no entanto, ele estava em Lisboa para viagem pessoal, tendo tirado 7 dias de licença não remunerada sem justificativa. Foi sem sua liderança que criou-se o Comitê de Crise. Covas não estava presente para visitar os pontos críticos e dar satisfação à população.

O efeito simbólico de uma liderança no local da tragédia é essencial, como atesta Lores: “quando Nova York sofreu com o Furacão Sandy, Michael Bloomberg teve uma postura exemplar. Dava entrevistas coletivas a cada hora, buscava acalmar as pessoas e pedia sacrifícios da população em prol do bem comum. Ele exerceu de fato seu papel de líder. Já aqui no Brasil é comum a omissão das lideranças em tragédias. Vimos isso com Sérgio Cabral nos alagamentos do Rio de Janeiro e com Dilma Rousseff em Mariana, por exemplo”.

A renúncia a cargos é uma prática corriqueira entre a classe política brasileira, especialmente em colégios eleitorais maiores, como São Paulo. O resultado foi que, quando acordaram com a cidade embaixo d'água, os paulistanos estavam com um prefeito em exercício chamado Eduardo Tuma, presidente da Câmara de Vereadores da cidade, e que desconheciam. Ao assumir o mandato, Bruno Covas, por exemplo, era desconhecido por 70% dos paulistanos. Suas atitudes como prefeito não o credenciam a se tornar mais conhecido. Pelo menos, não por sua liderança.

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