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Parque eólico
Parque eólico: não tão verde e renovável quanto parece| Foto: Pixabay

Renovables sí, però no així. A frase em catalão “Renováveis sim, mas não assim” é quase um grito de socorro. Ela é o slogan da campanha de diferentes organizações contra o boom de projetos de instalação de macro parques eólicos e fotovoltaicos concentrados em algumas áreas da Catalunha, comunidade autônoma (equivalente a unidade federativa) da Espanha. Muitas dessas zonas já contam com grandes infraestruturas de renováveis. Para evitar novas instalações, essas entidades alertam à população que a chamada “energia verde” pode acabar prejudicando mais o planeta e a sociedade que contribuindo para salvá-los, dependendo do modelo adotado. Já as empresas promotoras dos projetos acreditam que a economia de emissão de gases de efeito estufa e os benefícios econômicos para os municípios e população compensam o impacto ambiental.

A atual avalanche de projetos de parques eólicos e fotovoltaicos é consequência do decreto 16/2019, que o governo da Catalunha aprovou para agilizar os trâmites de instalações de geração renovável, reduzindo a participação do governo local. Desde então, foram apresentados 522 projetos de energias renováveis - 380 solares e 142 eólicos-, sobre os quais foi analisada a viabilidade de 392, 235 foram aprovados e quatro estão com a informação pública. As energias renováveis são o pilar da chamada transição energética, preconizada pela União Europeia para chegar a 2050 neutra em emissões de gases de efeito estufa.

No entanto, essa pressa em abandonar as fontes de energia fósseis para combater a emergência climática pode esconder outros interesses, segundo o matemático e físico Antonio Turiel, doutor em Física Teórica pela Universidade Autônoma de Madri e membro do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC), órgão do governo espanhol que cuida de pesquisas científicas e tecnológicas.  Baseado em relatórios da Agência Internacional de Energia, o cientista explica que a produção de petróleo chegou ao seu apogeu em 2018 (um dado corroborado pela gigante do petróleo Shell), está baixando, as grandes empresas são conscientes disso, mas querem continuar faturando. Segundo ele, a razão da urgência da transição energética é mais de negócio que ecológico. “É a manutenção de um sistema econômico baseado na depredação”. Turiel ressalta que já estamos vivendo escassez de cobre, prata e lítio, materiais fundamentais tanto para as infraestruturas renováveis, no caso dos dois primeiros, como para veículos elétricos.

Segurança alimentar

As entidades que lutam pela preservação alertam que boa parte dos novos projetos está em mãos de poucas e grandes empresas e defendem um modelo mais descentralizado, de menores dimensões e mais perto das áreas de consumo, que ocupem zonas já alteradas pela atividade humana, para preservar a ocupação de terrenos agrícolas e provocar menos impacto social e ambiental. “Centralizar a energia significa fossilizar as renováveis, porque o transporte do material para a construção e as máquinas de manutenção vem do diesel”, defende Antônio Turiel. “Em nome da soberania energética, estamos comprometendo a soberania alimentar”, acrescenta Jordi Buxonat, membro do Grupo de Estudo e Proteção dos Ecossistemas Catalães (Gepec).

O Ministério para a Transição Ecológica (Miteco) adverte que boa parte dos projetos apresentados às administrações não serão aprovados durante o período de tramitação. Alguns têm capacidade incompatível com a rede, outros provocam muito impacto ambiental, alguns porque estariam em solos instáveis, ou, inclusive, porque afetam sítios arqueológicos. “É preciso confiar nas instituições e nos seus filtros”, recomenda Heikki Willstedt, diretor de Políticas Energéticas e Cambio Climático da Associação Empresarial Eólica (AEE), que representa 240 empresas associadas, mais de 90% do setor na Espanha. Willstedt também é otimista com relação à falta de matérias-primas. “É conjuntural, por causa do COVID, e não estrutural”, defende.

Projetos e reivindicações de territórios afetados

Um dos projetos mais polêmicos da Catalunha é o Parc Tramuntanta, no nordeste da comunidade autônoma, apesar de seus promotores ainda não terem começado a tramitação oficial e de ter sofrido alterações depois de apresentado a diferentes atores implicados. A proposta prevê a instalação de 35 aerogeradores flutuantes - tecnologia que economiza cimento para a instalação no fundo do mar - a 24 Km da baía de Roses.  “O parque está sendo desenvolvido para ser plenamente integrado ao entorno natural, respeitando seus ecossistemas e sua biodiversidade”, garante Sergi Ametller, engenheiro e membro da equipe diretiva do Parc Tramuntana.

A plataforma “Stop Macro Parc Eòlic Marí” (Stop Macro Parque Eólico Marinho), que reúne 30 entidades de diferentes setores não vê a proposta da mesma maneira. Para começar, a altura dos aerogeradores, de 258 metros (quase o triplo da estátua da liberdade, que mede 93m) assusta, mesmo que vistos da costa seja percebido só um terço desse tamanho. Além disso, o projeto passa por três parques naturais, a área é de migração de aves, concentra uma importante atividade pesqueira e têm elevada afluência de turistas, devido em grande parte à sua paisagem que combina montanhas e praias e à proximidade da fronteira francesa. A organização também teme que o ruído emitido pelos aparelhos possa afetar a população de cetáceos (baleias e golfinhos) e já conseguiu que 100 cientistas assinassem um abaixo-assinado  expondo a fragilidade ambiental da região.

Na costa sul da Catalunha, o movimento Trenquem L’Ametlló (Rompamos “L’Ametlló”, nome do projeto) tenta impedir a instalação de um parque eólico de 10 aerogeradores de 180 metros (mais de quatro vezes a altura do Cristo Redendor, de 38m), sete deles no município L’Ametlla de Mar e três na cidade vizinha de El Perelló, que já conta com três parques com 72 aerogeradores. “Por quê precisa vir alguém de fora e vir dizer o que devemos fazer”, questiona Jordi Gasseni, prefeito da Ametlla de Mar, que desde o princípio expressou o desacordo da localidade com aerogeradores.

Para além de alterar a paisagem de alto valor natural, que combina montanhas e praias de água cristalina, o parque colocaria em perigo a águia-perdigueira (Aquila fasciata) - em risco de extinção -, destruiria oliveiras e amendoeiras centenárias e caminhos feitos com a técnica tradicional da pedra seca –, prejudicaria o turismo, entre outros impactos. Apesar disso, a prefeitura da L’Ametlla de Mar, que é consciente da necessidade da instalação de energias renováveis, suspendeu a licença para novos projetos e está atualmente fazendo um novo estudo para alterar o Plano de Ordenação Urbanística Municipal (POUM) e poder definir onde poderão ser instalados parques fotovoltaicos. “Não queremos renunciar ao nosso futuro”, justifica-se.

Como exemplo de transição energética mais sustentável, os movimentos contrários à instalação de grandes projetos citam o estudo de Sergi Saladié, professor associado de Geografia da Universitat Rovira i Virgili. Ele mostrou que o modelo de geração distribuída de Wildpoldsried, na Alemanha, conseguia obter 4,5 milhões de euros anuais, repartidos entre moradores e prefeitura. Já Batea, ao sul da Catalunha, com 42 aerogeradores, arrecada 250 mil euros ao ano, que vão para a prefeitura e para os bolsos dos donos das terras onde os aparelhos estão instalados.

Impactos ambientais e sociais mais comuns

A delegada na Catalunha da Sociedade Espanhola de Ornitologia (SEO/BirdLife), Cristina Sánchez, explica que para além das colisões com aerogeradores e eletrificações com a rede elétrica, algumas aves e animais sofrem o chamado efeito barreira. “O habitat dessas espécies fica reduzido a um dos lados da instalação, já que deixam de ir ao outro lado”, detalha. No caso das fotovoltaicas, pode haver redução ou destruição do habitat da fauna e flora, além da ocupação de solo agrícola que, na maioria das vezes, deixa de ser utilizado para cultivo. “É uma loucura o que está ocorrendo”, diz. “É renovável, mas não é sustentável”, resume Cristina. “Estamos substituindo as fontes, mas não estamos mudando o modelo.”

Jordi Buxonat, do Gepec, ressalta ainda outros impactos, como o transporte para a produção e a instalação das infraestruturas, que às vezes precisa destruir edifícios e patrimônio histórico para que os enormes aparelhos possam passar; a abertura de novas estradas e redes de alta tensão para escoamento de energia; ou a contaminação luminosa à noite devido as luzes instaladas para sinalizar as instalações para a aviação civil. Houve casos, inclusive, de alguns incêndios florestais provocados por peças de aerogeradores que pegaram fogo.

O final do ciclo de vida desses aparelhos – que oscila entre 20 e 30 anos – também preocupa os ecologistas, apesar de ainda não ter ocorrido a desmontagem de nenhum parque eólico na Catalunha. As pás de aerogeradores que precisaram ser trocadas acabaram sendo fragmentadas e descartadas em lixo comum. Segundo a AEE, o aço das torres já pode ser 100% reciclado e para 2025, com ou aumento da demanda de desmontagem de aerogeradores, a indústria promete que as pás, produzidas com fibra de carbono, também serão recicladas.

Os movimentos de defesa do território também vêm com receio o repowering ou repotenciação, nome dado à troca de aerogeradores antigos por outros mais modernos, mais eficientes e mais altos, em média 150-180 metros (incluindo a torre e a pá na vertical), com pás de entre 60 e 130 metros, enquanto os antigos medem entre 60 e 110 metros de altura. Com a troca, os parques ocuparão menos espaço na horizontal, oferecendo mais espaço para pastagem ou outras atividades, porque serão necessários menos aparelhos. No entanto, os ecologistas e moradores não confiam muito que as empresas retirarão a base de aerogeradores velhos, espécie de piscina de cimento, para poder entregar o terreno como estava antes dos aparelhos, cláusula normalmente prevista nos contratos.

Entre as principais repercussões sociais, está o despovoamento, ocorrido em 80% dos municípios do sul catalão que acolheram renováveis, segundo o geógrafo Sergi Saladié, que pesquisa o impacto da eólica no sul da Catalunha. A prometida geração de muitos empregos nem sempre ocorre. Em Almatret, município de 397 habitantes no centro-oeste da Cataluna, a 146 km de Barcelona e 42 aerogeradores que geram 108 MW, para um município que consome 0,5 MW, apenas três dos 30 trabalhadores das instalações são moradores, de acordo com o prefeito, Jordi Tarragó. Ele também prevê despovoamento por não conseguir atrair famílias jovens à cidade e porque alguns proprietários de terrenos com instalações de renováveis acabam comprando imóveis fora com o dinheiro arrecadado do aluguel das terras.

Além disso, as infraestruturas de Almatret, somadas a fotovoltaicas, ocupam terreno para atividades agropecuárias, numa cidade onde a principal atividade é a criação de porcos. “Em nome da soberania energética, estamos comprometendo a soberania alimentar”, resume Jordi Buxonat, do Gepec. Ele comenta que em alguns casos de contrato de aluguel para a montagem de instalações fotovoltaicas, o proprietário precisa se inscrever na previdência e pagar imposto correspondente à atividade industrial e o valor recebido pela terra, que parecia inicialmente uma boa oferta, nem sempre é tão boa assim. Para evitar sustos, a prefeitura de Almatret montou um serviço de assessoria jurídica para que os moradores não evitem problemas futuros e entendam os detalhes dos contratos.

Possíveis futuros

O futuro da transição energética depende de vários fatores e do entendimento entre vários atores. Por um lado, um componente que com certeza continuará ganhando terreno é o autoconsumo (empresas que produzem sua própria energia), que cresceu na 30% no ano com relação a 2019, segundo a União Espanhola de Fotovoltaica (UNEF).

Pelo menos na Catalunha, as manifestações da cidadania parecem estar fazendo efeito. Além de não haver recebido nenhum novo parque eólico este ano, as reivindicações populares conseguiram no início deste mês a promessa da revogação do decreto 16/2019 por parte da secretária de Ação Climática, Alimentação e Agenda Rural da Catalunha, Teresa Jordà. A pasta assegura que criará um novo decreto para que haja participação do território; distribuição do número de instalações para evitar a concentração e impedir a utilização de campos de cultivo.

Já as grandes indústrias transmitem discurso de otimismo, buscam mercados receptivos para receber grandes infraestruturas de renováveis e investem na pesquisa de novas tecnologias. Entre elas, uma das grandes promessas é produção de hidrogênio verde, candidato a substituir os combustíveis derivados do petróleo, mas criticado por necessitar muita energia elétrica renovável para ser obtido a partir de água, através do processo de eletrólise. As empresas investem, também, em projetos de economia circular e pilotos de instalações mais respeitosas com o meio ambiente , como a agrivoltaica que combina placas fotovoltaicas e cultivo agropecuário.

Em sua linha de alertar para a iminente catástrofe, o cientista Antonio Turiel, do CSIC, alerta para a falta de recursos e de que pode haver uma queda de entre 20 e 50% na produção de petróleo já em 2025. Para preparar-se para esse cenário, ele recomenda priorizar a produção de alimentos e extração de água e que haja um processo de relocalização da produção para otimizar a logística e o consumo de energia.

Mesmo que a tecnologia possa contribuir para uma transição energética pouco traumática, seja desenvolvendo materiais mais eficientes ou novas formas de geração de renováveis e outras formas de energias limpas, existe um ponto em que praticamente todas as pessoas entrevistadas coincidem: é preciso diminuir o consumo.

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