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Cemitério militar de Wytschaete, na Bélgica, onde estão sepultados soldados mortos na Primeira Guerra Mundial | Pixabay
Cemitério militar de Wytschaete, na Bélgica, onde estão sepultados soldados mortos na Primeira Guerra Mundial| Foto: Pixabay

 e a memória assassinada 

tomba 

supina 

com o esqueleto desfolhado da sombra 

e o repentino passar do tempo 

de novo com o degelo sangra 

Jerzy Ficowski, A Leitura das Cinzas 

 

Como surgiu esta execução da memória que nos consome atualmente, tanto no Brasil como no resto do mundo? Talvez a questão fique melhor articulada neste trecho de ‘Submundo’ (“Underworld”, 1998), romance do escritor americano Don DeLillo, no qual ele narra as divagações de ninguém menos que J. Edgar Hoover, então todo poderoso do FBI. Ele precisava destruir as lembranças dos outros para manter-se no poder: 

“Ao longo daquele século conturbado de guerras mundiais e violência coletiva praticada de outras formas, sempre se ouvira uma voz subterrânea em meio ao trovão dos canhões e armas antiaéreas, uma voz que às vezes tornava-se forte o bastante para fundir-se com os ruídos da batalha. Era a luta entre o Estado e os grupos insurgentes de olhar desvairado – os anarquistas, terroristas, assassinos e revolucionários que tentavam realizar uma transformação apocalíptica. E que, é claro, conseguiam. A tarefa passional do Estado era aguentar firme, apertando cada vez mais forte e conservando-se na posição de força mais destruidora de todas. Com o advento das armas nucleares, esse poder identificou-se totalmente com o Estado. A nuvem em forma de cogumelo era o deus do Aniquilamento e da Ruína. O Estado controlava a possibilidade do apocalipse”. 

Suspeito que o Estado começou a ter esse controle do apocalipse nesta época longínqua que ficou marcada pelo advento da Primeira Guerra Mundial – ou a “Grande Guerra”, como foi apelidada posteriormente por seus participantes, que comemoram os cem anos do seu término neste final de 2018. Hoje, a única coisa “grande” que se pode chamar deste trágico acontecimento é o fato de que ele foi, sem dúvida nenhuma, um colossal erro histórico – e do qual ainda estamos sofrendo suas consequências inesperadas. 

Para entendermos adequadamente o que foi este erro, somos obrigados a encontrar novas classificações para a experiência que ele provocou por todo o século XX e no início do nosso. E aqui cometeremos uma ousadia; talvez o correto não seja chamar a “Grande Guerra” de “erro”, “equívoco”, “marcha da insensatez”, uma epidemia de “sonambulismo moral” – ou até mesmo de um “contágio”, como se fosse uma doença que, se curada, seria erradicada para sempre. Não é o caso. É provável que o modo mais adequado de catalogar a Primeira Guerra Mundial é pelo que ela de fato foi – um apocalipse político

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Na acepção de Ellis Sandoz, um “apocalipse político” é a experiência histórica que tem seu conteúdo de significado retirado daquilo que chamamos de “Livros da Revelação” na Bíblia. No Velho Testamento, temos o de Daniel; e no Novo, temos o que justamente dá o nome a este gênero literário – e que lida com o desvelamento das primeiras e das últimas coisas que estruturam a nossa realidade objetiva, em especial nas suas perspectivas metafísica e escatológica. 

A literatura deste tipo é abundante no curso da História – e foi uma das correntes principais de pensamento entre a Idade Média e o Renascimento, especialmente entre as polêmicas ocorridas por causa da Reforma Protestante. Um dos pensadores mais célebres desse período foi o teólogo Joaquim de Fiore (1131-1202), cujas preocupações apocalípticas permearam a sua interpretação de que a História teria um sentido definido. Este tipo de comportamento coincidiu com a imanência da escatologia cristã e também com a ascensão radical do secularismo na Civilização Ocidental. 

Dessa maneira, o apocalipse político encontrou expressões notáveis da sua perspectiva idiossincrática nos vários movimentos gnósticos que surgiram nos anos posteriores, chegando ao seu clímax depois da Revolução Francesa, com sua obsessão pelas ideologias do progressismo, do utopianismo e do ativismo revolucionário que foram incorporados nos ensinamentos dos séculos XIX e XX. 

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Para ser identificado como tal, o apocalipse deve ter os seguintes elementos. Em primeiro lugar, ele é geralmente percebido e articulado em tempos de extrema angústia e de tensão nervosa; é repleto de avisos de sofrimentos e maldades sem precedentes, e sempre encoraja os seus leitores a perseverarem na fé e na justiça divinas. 

Em segundo, ele cria uma especulação histórica que divide o curso dos eventos em uma sequencia de períodos temporais, representando-os como se fossem polos em um campo de batalha onde as forças agudas e duais do bem e do mal – a princípio, entre Deus e Belial e seus demônios – atuam simultaneamente no presente e no futuro. 

Em terceiro, é igualmente profético e escatológico em seu conteúdo; no contexto bíblico, pode ser distinguidos de outros relatos proféticos e escatológicos pelos seguintes fatores: (a) a profecia apocalíptica é dada em um alcance temporal que é extremamente amplo, com uma duração de séculos, em vez de se estender no futuro imediato, e também acontece em um escopo espacial que transcende as preocupações cotidianas para enfim atingir proporções cósmicas; (b) a escatologia apocalíptica não se preocupa somente com o fim derradeiro da História, mas, já que foi concebida com um senso mortal de que o curso das coisas está chegando ao seu término, ela lida em especial com os eventos e as evidencias de que, em breve, teremos um acontecimento esclarecedor. 

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E, finalmente, o apocalipse representa a dinâmica da História tanto como algo que permite ao ser humano exercer a sua liberdade plena como a possibilidade deste último se render à vontade de Deus, em um processo histórico que culminará na intervenção direta do Messias para alcançarmos a eternidade no Reino dos Céus. 

Contudo, a expressão “apocalipse político” parece ser muito abstrata quando lemos, rapidamente, a carnificina que foi a Primeira Guerra Mundial. Como bem descreveu o historiador Daniel Schönpflug em ‘A Era do Cometa – o fim da Primeira Guerra e o Limiar de um novo mundo’ (2017), “ao longo de 1914 a 1918, o conflito transformou-se de uma disputa entre as forças da [chamada] Entente – França, Grã-Bretanha e Rússia – e do triunvirato formato pelo Império Alemão, pelo Império Austro-Húngaro e pela Itália numa confrontação de caráter global. A guerra não foi travada não apenas na Europa, mas também no Oriente Médio, na África, no Extremo Oriente, assim como nos oceanos. Assim, entre os 16 milhões de soldados que perderam a vida durante a Primeira Guerra Mundial não havia apenas europeus: 800 mil turcos, 116 mil norte-americanos, 74 mil hindus, 65 mil canadenses, 62 mil australianos, 26 mil argelinos, 20 mil argelinos da colônia denominada África Oriental Alemã (Tanzânia), 18 mil neozelandeses, 12 mil indochineses, 10 mil africanos do Sudoeste Africano Alemão (Namíbia), 9 mil sul-africanos e 415 japoneses foram mortos”. 

E apesar do fim da Guerra ter sido determinado em uma simples assinatura de contrato, feita no dia 11 de novembro de 1918, às 5h20 da manhã, num vagão de trem, mesmo assim esse acordo foi “apenas o primeiro passo para as verdadeiras negociações de paz, até que uma série de acordos, dos quais o último foi firmado só em 1923, encerrasse definitivamente a guerra; até então, as ações militares e os conflitos prosseguiram em muitos lugares: no front ocidental, o cessar-fogo foi seguido pelo avanço das tropas aliadas até o Reno e pela ocupação de sua margem direita. Nos Balcãs, a Hungria e a Romênia se confrontavam. No Báltico, a Letônia lutava por sua independência da jovem União Soviética. Além disso, a morte continuava a assolar o mundo por causa de uma epidemia mundial, a gripe espanhola, que custou a vida de um número de pessoas maior do que o das vítimas somadas de todas as batalhas da guerra”. 

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Como se não bastasse tudo isso descrito acima, “os conflitos entre a Irlanda e a Inglaterra, entre a Polônia e a Lituânia, entre a Turquia e a República Armênia, assim como entre a Turquia e a Grécia acenderiam as chamas de novas guerras. Ao mesmo tempo, a Revolução Russa de 1917 desencadeou guerras civis sangrentas entre seguidores e inimigos dos bolcheviques na Europa do Leste e no continente asiático, que se estenderiam até 1922”. 

A grandiosidade da desgraça impressiona porque é nítido, ao ler os números dos mortos envolvidos nessas matanças, que, como diria Niall Ferguson, a Primeira Guerra Mundial foi o evento que destruiu completamente qualquer esperança de existir uma globalização saudável no mundo moderno. 

Neste clima de “o mundo é a minha ostra”, um cidadão normal que vivia, por exemplo, em Londres, possuía, segundo a descrição feita por ninguém menos que o economista John Maynard Keynes, “condições de conseguir na mesma hora, se assim o desejar, meios baratos e confortáveis de viajar para qualquer país ou clima sem passaporte ou outra formalidade, tinha condições de enviar seu empregado à agência bancária mais próxima para obter um suprimento de metais preciosos que parecesse adequado, e tinha então condições de ir para o estrangeiro, sem ter conhecimento da religião, da língua ou dos costumes gerais, levando pessoalmente dinheiro em espécie; e se consideraria muito ofendido e muito surpreendido com a menor interferência”. 

Essa globalização “idílica” ainda não era o território da burocratização e da perícia técnica – e dava a impressão de ser algo que surgia espontaneamente. Claro que não era nada disso. Ferguson explica, em seu fundamental ‘A Guerra do Mundo – A Era do Ódio na História’ (2006), que “tais níveis de integração econômica” e política só se desenvolveram porque os respectivos impérios envolvidos nos conflitos não se ausentaram sob hipótese nenhuma, mas que, pelo contrário, as “possessões” territoriais de todos eles – “o austríaco, o belga, o britânico, o holandês, o alemão, o italiano, o português, o espanhol e o russo – cobriam mais da metade da superfície terrestre e governavam aproximadamente a mesma proporção de sua população. 

Essa era uma globalização política nunca vista antes, ou depois. Quando esses impérios agiam em conjunto, como fizeram na África a partir da década de 1870 e na China a partir da década de 1890, não admitiam nenhuma oposição”. 

Este mundo imperial pré-Primeira Guerra já era um melting pot racial e, ao mesmo tempo, a sua razão última sempre foi a força, a ser usada por meios indiretos. 

Ferguson não hesita em ressaltar que os impérios só duraram tanto tempo porque, felizmente, não dependeram tanto assim da coerção, uma vez que “seu fundamento mais forte era a habilidade de criar múltiplos modelos de si mesmos em escala por meio de assentimento colonial e colaboração com povos nativos, dando origem a um tipo de ‘geometria fractal do império’. 

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Isso significa que um respeitável viajante inglês poderia antecipar com certa confiança a disponibilidade do chá da tarde ou de um gim com tônica no clube dos cavalheiros da localidade, quer estivesse em Durban, em Darwin ou em Darjeeling. 

Isso significava que poderia se esperar de um funcionário britânico do fim da era vitoriana que tivesse um conhecimento instrumental das línguas e das leis locais, quer estivesse em São Cristóvão, na Serra Leoa ou em Cingapura. Com certeza, cada território encontrava seu equilíbrio particular entre os europeus e as elites locais, dependendo em primeiro lugar e acima de tudo dos atrativos do clima local e dos recursos disponibilizados aos imigrantes europeus”. 

Este delicado equilíbrio foi estilhaçado com a Grande Guerra. Graças a ela (ou por causa dela), aquilo que era conhecido como a “velha ordem” perdeu a sua certeza existencial – e passou a viver o seu apocalipse político sem nenhuma ajuda de qualquer espécie de intermediário. 

Expansão imperial 

Existiram várias razões para que os dois lados principais do combate – a Inglaterra e a Alemanha – se jogassem em uma guerra que parecia improvável aos olhos de muitos intelectuais e especialistas que sequer percebiam o que acontecia diante deles. Todavia, não seria um exagero afirmar que o principal motivo de cada um era nada mais, nada menos que a própria sobrevivência dos seus ideais. 

Para Modris Eksteins, em ‘Rites of Spring – The Great War and the birth of the Modern Age’ (1989), a característica fundamental da cultura alemã antes de 1914 era o fato de que a Alemanha acreditava, em sua maioria, que a vida só podia alcançar alguma transcendência se ela fosse radicalmente estetizada, com um ar inevitável de escândalo e novidade. 

A existência terrena era um grande e perfeito Gesamtkunstwerk, uma obra-de-arte total, na acepção do compositor Richard Wagner, na qual as preocupações materiais e todos os assuntos mundanos eram superados por uma incrível força espiritual. A própria unificação do Estado Alemão era a perfeita representação deste tipo de fenômeno – e, aqui, a experiência de se adquirir alguma espécie de liberdade interior vinha graças à herança luterana, que a aplicava com uma férrea disciplina, tornando-a semelhante a uma prática exata e técnica. 

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Não por acaso que, no início do século XX, a Alemanha era um dos países mais modernos e urbanizados da Europa, onde a concentração das indústrias e da população nas cidades levou ao crescimento vertiginoso de uma classe administrativa, de serviços e de pequenos setores burocráticos, tanto no âmbito federal como estadual. 

Pouco a pouco, a sociedade (Gesellschaft) se sobrepunha ao sentido de comunidade (Gemeinschaft), assim que a rapidez e o gigantismo tecnológico se tornaram os fatos predominantes da vida cotidiana, com as questões trabalhistas e sociais, o prazer no trabalho e a ambição pessoal se transformando em noções abstratas, que existiam além do indivíduo e do seu ponto de referência pessoal, numa preferência da teoria e da intuição mecanizada em detrimento da aquisição do conhecimento e da experiência prática. 

O culto alemão à Technik, com sua ênfase no cientificismo, na eficiência e na administração dos assuntos individuais, teve seu contraponto perfeito com o common sense do homem inglês. Era a Kultur germânica contra a Zivilisation britânica, segundo a classificação polarizada de Thomas Mann, com nítida preferência pela primeira, é claro. No fundo, não era apenas um mero conflito entre os ideais dos dois países. Era mais do que isso: tratava-se de uma “necessidade espiritual”, eine innere Notwendigkeit

Para os alemães, a Kultur tinha de vencer a qualquer custo, pois era uma busca por autenticidade, pela verdade, pela auto-realização do espírito acima de tudo. Segundo esse ponto de vista, os ingleses eram “bárbaros”, com seu pragmatismo, seu materialismo e a sua hipocrisia plena de banalidade e monotonia. A guerra seria um expurgo da vulgaridade, das convenções e dos limites impostos pelo império britânico. 

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Não era uma novidade que a entrada da Alemanha na guerra foi defendida de forma vibrante por intelectuais e artistas, que produziam textos a favor da “batalha” movida pelo “furor teutonicus”, num “combate sagrado” que punha em risco as noções futuras do que seriam a libertação e a liberdade da raça humana – e, com o fim da calamidade, por mais dolorida que parecesse ao povo, existiria somente uma “bela, livre e feliz Germânia”. 

Já para a Inglaterra, o verdadeiro motivo nunca foi querer eliminar a Kultur alemã, como esta chegou a divulgar entre a população, muito menos negar à Alemanha qualquer espécie de superioridade econômica ou colonial, apesar da sua nítida expansão imperial em relação a estes tópicos. Era algo muito mais simples, por incrível que pareça – e também mais amplo: ela estava na guerra para preservar um sistema de ordem especificamente britânica, tanto no âmbito internacional como nacional.

Aos olhos dos ingleses, a Alemanha substituíra o papel da França como a encarnação do fluxo e da irresponsabilidade jacobinas no mundo, após os eventos da Revolução Francesa e do surgimento de Napoleão Bonaparte. O papel da Inglaterra era nada mais, nada menos que manter a estabilidade e a responsabilidade do que ainda restava no globo terrestre. O que estava em risco com a ascensão da Kultur germânica era todo o fundamento moral da Pax Britannica, a mesma que deu, segundo seus defensores, mais de um século de paz na Europa, algo que não acontecia desde o Império Romano. 

A missão inglesa consistia em educar o resto do mundo sobre o que significava ter uma “virtude cívica” – e isto era o que sustentava tanto o Ocidente como a aplicação da lei. No fim, ambas eram a mesma coisa, pois ser civilizado só era possível se alguém aceitasse o jogo, se soubesse e participasse de acordo com suas regras bem específicas, todas definidas por anos de costumes, tradições e eventos históricos sedimentados na memória da espécie humana. Era uma questão de ser completamente objetivo, de praticar uma forma externa, de se comportar adequadamente nos eventos sociais em vez de ser escravo dos sentimentos, de realizar o seu dever e não apenas a sua vontade. 

A diferença entre os alemães e os ingleses era brutal: os primeiros viam a guerra como um conflito espiritual, enquanto os segundos a percebiam como uma luta intensa para preservar valores que mantinham a sociedade em uma frágil ordem – no caso, justiça, civilidade, controle de si mesmo e, quase acima de todas as anteriores, o “progresso”, sempre governados por um respeito absoluto pela lei. 

Esta crescente tensão imperial só poderia convergir para um conflito de proporções globais – ou, mais precisamente, em um apocalipse político no qual cada país tinha sua peculiar retórica milenarista, mas que contaminou o resto do planeta. Em outro livro essencial que escreveu sobre este período, O Horror da Guerra (1998), Niall Ferguson mostra que a Primeira Guerra foi, para vários soldados, uma verdadeira experiência religiosa, semelhante a uma revelação

Vejamos o exemplo do futuro filósofo Ludwig Wittgenstein que, ao se alistar no Exército austríaco em 7 de agosto de 1914, escreveu que “agora tenho a chance de ser um ser humano decente, pois estou cara a cara com a morte [...] Talvez a proximidade com a morte traga luz à vida. Que Deus me ilumine”. Seu maior desejo era ter o contato com uma “espécie de experiência religiosa que me transformasse em uma pessoa diferente”. 

Sua expectativa era praticamente a mesma de todos os países combatentes. Ferguson narra que “numa missa ecumênica em frente ao Reichstag em Berlim, uma congregação cantou hinos católicos e protestantes na semana em que a guerra foi declarada. 

Mesmo em Hamburgo – talvez a menos religiosa das cidades alemãs nesse período –, as pessoas foram tomadas de fervor religioso: [uma manifestante] afirmou, exultante, que ‘nosso povo veio ao encontro de Deus’. 

Na França, onde o anticlericalismo era predominante na política há anos (e, certamente, não desapareceu durante a guerra), a Igreja Católica saudou ‘o grande retorno a Deus [que se observava] nas massas e entre os combatentes’. O culto do Sacré-Coeur floresceu – a ponto de alguns clérigos militantes pedirem a sobreposição da imagem à bandeira tricolor –, e houve um aumento acentuado no número de peregrinações a Lourdes, Pontmain e La Salette”. 

Na Inglaterra, o bispo de Londres, A.F.Winnington-Ingram, não teve nenhum pudor de proferir as seguintes palavras no seu sermão do advento, pregado em 1915, em que a guerra era, segundo sua visão, “uma grande cruzada – não podemos negar – para matar os alemães: matá-los não por matar, mas para salvar o mundo; matar os bons e os maus, matar os jovens e os velhos, matar os que mostraram gentileza para com nossos feridos e os que crucificaram o sargento canadense, os que dirigiram os massacres armênios, os que afundaram o Lusitania, os que apontaram as metralhadoras para os civis de Aershott e Louvain – e matá-los para que a civilização do mundo não seja morta”. 

Na “guerra cultural” (Kulturkampf) para saber quem seria o verdadeiro vencedor, o deus deste apocalipse político nunca foi o Deus cristão, mas sim o da morte e da destruição – o do poder sem limites que, no fim, é o mesmo que sustenta a carnificina a qual o Império sempre foi seu ardoroso defensor. 

Pois é disso que se trata, afinal de contas: a violência do século XX só se torna passível de ser minimamente compreendida se ela for vista em seu contexto imperial – e também foi este tipo de cegueira que levou ao declínio e à queda dos grandes impérios multiétnicos que dominaram o mundo a partir de 1900. 

Ferguson argumenta que “o que praticamente todos os principais combatentes nas guerras mundiais tinham em comum era o fato de eles ou serem impérios ou tencionaram se tornar impérios. Além do mais, muitas das grandes organizações políticas do período que alegavam ser Estados-nações ou federações, se vistas mais detalhadamente, mostravam que tinham sido impérios também. Isso era certamente verdade em relação à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas; continua sendo verdade em relação à atual Federação Russa. 

O Reino Unido da Grã-Bretanha e da Irlanda (depois de 1922, só a Irlanda da Norte) era, e é em todos os sentidos e propósitos, um império inglês; por amor à brevidade, a referência a ele ainda é feita como Inglaterra. 

A Itália criada nas décadas de 1850 e 1860 era um império piemontês; o Império Alemão de 1871, em grande parte, um império prussiano. Os dois Estados-nação mais populosos do mundo atualmente são ambos resultantes de integração imperial. A Índia moderna é herdeira do Império Mongol e do Raj Britânico. As fronteiras da República Popular da China são essencialmente aquelas estabelecidas pelos imperadores da dinastia Qing. É possível argumentar que até mesmo os Estados Unidos são uma ‘república imperial’; alguns diriam que sempre foi assim”. 

A ideia motriz de “Império Mundial” é o verdadeiro nome que deve ser dado a este eufemismo de diplomacia política, a tal da “globalização” – ou, na cabeça dos mais fracos, o tal de “globalismo”. A Primeira Guerra foi o evento crucial no qual o Império passa a se expandir de tal forma em sua mentalidade totalitária e, ao deixar de lado qualquer preocupação com os indivíduos que compunham as suas respectivas sociedades, passa a vê-los somente meras estatísticas, meras abstrações, meros instrumentos para a exata contagem de cadáveres. 

Contudo, com a expansão da guerra no decorrer do século – e o fim da pretensão imperial para cada país combatente como se fosse a representação única da humanidade –, os governantes foram obrigados a exterminar outra coisa além dos seres humanos concretos, de carne e osso. Eles exterminaram o passado de cada um de nós e, como se isso não bastasse, a memória que temos dele. 

A queda dos intelectuais 

A execução da memória, seja da humanidade, seja de cada um de nós, só conseguiu ter uma eficácia completa porque, antes de tudo, ela foi definida, planejada e manobrada por uma casta que se julgava especial. Estamos falando, é claro, dos intelectuais, estes parasitas do espírito. 

Foram eles que deformaram, antes de tudo, a linguagem com a qual nos expressamos nos nossos dias – e foram também os responsáveis para que a memória da Grande Guerra fosse substituída por atos de imaginação desenfreada, transformando o conflito global na reviravolta psicológica (e pneumopatológica) para a Alemanha, a Inglaterra, a Europa e o modernismo como um todo, em uma nova espécie de império – o império do “círculo dos sábios” –, que criaria e destruiria todos os lugares do planeta. 

Posteriormente, ficou nítido que esse desejo de destruir superou os demais – e o de criar se tornou cada vez mais obsoleto e abstrato, tão abstrato que, no fim, revelou-se como insanidade nua e crua, numa destruição antevista pelo “crepúsculo dos deuses”, o Götterdämmerung da mitologia germânica, musicada em melodias paradoxalmente sublimes por Richard Wagner. 

Talvez não tenha sido por acaso que, conforme nos mostra Ferguson em ‘A Guerra do Mundo’, foram os “alemães academicamente educados” que estavam mais “estranhamente prontos a se prostrar perante um líder carismático” – como foi o caso de Adolf Hitler, um soldado fracassado da Primeira Guerra que, por ser resultado direto dos traumas provocados por ela, chegou ao poder sem ter nenhum obstáculo contra a sua aura. 

Se não fosse pelos intelectuais alemães, representados pelos “profissionais liberais” que “demonstraram ser muito suscetíveis ao apelo de Hitler” ou então por “advogados e médicos” os quais “tinham uma representação substancial” dentro do Partido Nacional-Socialista, “assim como os estudantes universitários” ou os “gordos advogados de meia-idade”, ele jamais teria sido visto, segundo estes últimos, como “o herdeiro de Bismarck”. 

Este clima de euforia apocalíptica em torno de um grande líder foi justificado, anos depois, pelo célebre historiador Friedrich Meinecke, com o argumento de que a “catástrofe alemã” poderia ter sido explicada apenas por causa da “especialidade técnica” do povo e que fez “com que alguns alemães cultos [entre eles, o próprio Meinecke] perdessem de vista os valores humanistas de Goethe e de Schiller”. 

Era uma desculpa esfarrapada, é claro, pois sabemos que foi esta mesma Kultur humanista – uma Kultur de guerra espiritual, é bom lembrar – que os motivou a serem “incapazes de resistir ao ‘maquiavelismo de massas’ de Hitler”, ao mesmo tempo em que um “Thomas Mann se destacou ao ser capaz de reconhecer mesmo na época que, no ‘Irmão Hitler’, toda a ‘classe média educada’ [Bildungsbürgertum] tinha um irmão mais novo monstruoso que personificava algumas de suas aspirações mais profundamente enraizadas”. 

Portanto, “uma educação acadêmica, longe de inocular as pessoas contra o nazismo, fez com que tivessem mais probabilidade de adotá-lo. [Assim foi] o fim da grandeza das universidades alemãs. Sua queda da graça foi personificada pela prontidão de Martin Heidegger, o maior filósofo alemão de sua geração, a adotar a moda nazista, com um broche com a suástica na lapela”. 

Esta “barbárie do pensamento”, combinada com o “contágio da guerra”, também atingiu aqueles que defendiam outro filhote do apocalipse político que infestou a Europa – no caso, a tirania soviética. Em 1931, já com Stalin no poder, o dramaturgo George Bernard Shaw visitou a Rússia comunista por cerca de nove dias. 

“O que viu – ou achou ter visto – foi o paraíso dos trabalhadores sendo construído”, escreve Ferguson. “Entre os locais por ele inspecionados estava o futuro canal Moscou-Volga. O canal deveria ligar a capital soviética ao rio Volga, não apenas para facilitar a navegação fluvial, mas também para aumentar o suprimento de água da cidade que se expandia rapidamente. Em um contraste gritante com as filas de auxílio desemprego do Ocidente, o local logo estaria fervilhando de trabalhadores. Ali estava um símbolo do aparentemente realizável sonho do socialismo estatal, e visitantes ocidentes como Shaw reagiam em êxtase. Eles tinham visto o futuro, e – comparado com o aparentemente defunto sistema capitalista – ele parecia funcionar”. 

Ao conversar depois com o próprio Stalin, Shaw não hesitou afirmar que ele foi “conquistado por um sorriso em que não existe maldade, mas tampouco credulidade. Stalin poderia se passar por um líder georgiano com olhos romanticamente escuros”. 

Quando estava em Leningrado, o dramaturgo inglês proferiu um outro discurso entusiasmado: “Se este grande experimento comunista se expandir por todo o mundo, teremos uma nova era na história. Se o futuro é o futuro assim como Lenin o previu, então nós todos temos condições de sorrir e esperar pelo futuro sem medo”. E, na volta para a Inglaterra, assim que desembarcou, ele disse a jornalistas que, se pudesse, “me instalaria em Moscou amanhã”, escrevendo anos depois que “Stalin levou a situação a um ponto que parecia impossível dez anos atrás”, pois sua certeza era que “Jesus Cristo voltou à Terra. Ele não é mais um ídolo. As pessoas estão começando a ter uma ideia do que acontecia se Ele estivesse vivendo agora”. 

Todo este uso sublime da retórica apocalíptica – com seus sorrisos e referências ao Cristo – escondia, na verdade, um país dentro do país, os gulags, um sistema tecnicamente perfeito, concebido com a mão de ferro típica de Stalin (que só expandiu o que já existia na mente de Lenin), cujo total de “476 campos espalhados por toda a União Soviética”, registra Ferguson, era “composto por centenas de [pequenos] campos individuais. No total, cerca de 18 milhões de homens, mulheres e crianças passaram [por este] sistema. Levando em consideração os 6 ou 7 milhões de cidadãos soviéticos que foram mandados para o exílio, a porcentagem total da população que passou por algum tipo de servidão penal sob Stalin se aproximava de 15%”. 

O gulag tinha um método que era, ao mesmo tempo, colonial e penal. Por exemplo: 

“os prisioneiros mais fracos morriam em trânsito, já que os vagões fechados e os caminhões de gado usados para o transporte não eram aquecidos e eram insalubres. As instalações do campo eram primitivas ao máximo; os zeki [habitantes dos gulags] nos novos campos eram obrigados a construir sua própria barraca, que era pouco mais que barracões de madeira nos quais eram amontoados como sardinhas. E a prática de dar uma alimentação melhor para os prisioneiros mais fortes que para os mais fracos garantiria que, literalmente, apenas os fortes sobreviviam. Os campos não tinham o objetivo primordial de matar as pessoas (Stalin tinha para isso os pelotões), mas eram administrados de tal modo que as taxas de mortalidade estavam destinadas a ser realmente muito altas. A comida era inadequada, as condições sanitárias, rudimentares, e o abrigo mal era suficiente. Além disso, os castigos sadistas aplicados por guardas do campo, com frequência envolvendo a exposição de prisioneiros nus às temperaturas congelantes, garantiam um alto índice de mortalidade. O castigo era tão arbitrário quando brutal; os guardas, cujo quinhão de qualquer modo estava longe de ser bom, eram encorajados a tratar os prisioneiros como ‘vermes’, ‘sujeira’ e ‘ervas daninhas’”. 

George Bernard Shaw não viu (ou não quis ver) nada disso – assim como vários intelectuais que, conforme a expansão do poder crescia em proporção direta com a extinção da memória humana, manipularam a linguagem e a própria consciência para que o resto dos homens permanecesse em uma espécie de “servidão voluntária”. 

Seja na Alemanha, na União Soviética, nos EUA ou no Brasil (com os modernistas de 1922 sendo cooptados pelo esquema patrimonialista do Estado Novo de Getúlio Vargas e Gustavo Capanema), a Primeira Guerra Mundial foi o estopim para uma nova paisagem visionária, o eixo no qual o mundo moderno passaria pela sua revolução derradeira, em que a característica principal seria o fortalecimento do Estado na vida de cada indivíduo, por meio de intervenções no trabalho, na economia, nos impostos, no mercado internacional, na criação de passaportes, na racionalização da comida e até mesmo no mecenato artístico. 

Finalmente, após séculos de lenta transformação, como percebeu Modris Eksteins, “o Leviatã vislumbrado por Thomas Hobbes tornou-se uma realidade”. 

Desarticulação da linguagem 

Esta nova paisagem visionária só se tornou um fato histórico graças à reviravolta que a cultura europeia provocou no modo como ela lidou com a linguagem humana. 

Neste ponto, um dos únicos que percebeu esta transformação foi Eugen Rosenstock-Huessy (1888-1973), um pensador pouco ortodoxo em relação aos seus métodos de análise e ao seu estilo, uma vez que era mais próximo da retórica exaltada de um visionário ou de um pregador. Em alguns aspectos, ele é, de fato, um visionário, como Otto Maria Carpeaux percebeu no ensaio dedicado ao livro ‘Revoluções Europeias’, lançado pela primeira vez numa Alemanha já dominada pelo nazismo em 1938, e depois reformulado para a edição americana de 1968 com o título de ‘Out of Revolution – Autobiography of a Western Man’. 

A prova da sua profecia está, como o leitor pode perceber, nas duas datas em que este livro fundamental, mas esquecido, foi publicado (e republicado), no qual a história do mundo parecia querer mostrar, de maneira pueril, como as revoluções trariam benefícios para uma sociedade mais justa e igualitária. Rosenstock anteviu que tudo isso – ocorrido antes, durante e depois da Primeira Guerra Mundial –, era uma patologia do espírito porque possuía, antes de tudo, a dimensão vertical da eternidade, que orientava constantemente as suas análises filosóficas – especialmente, as que eram relacionadas com a filosofia da linguagem. 

É desnecessário dizer que as ideias de Rosenstock jamais teriam muito sucesso na maioria das universidades ocidentais, empanturradas em ideologias estruturalistas, semióticas e marxistas. Aliás, a grande ironia disso tudo é que os grandes temas que obcecam esses acadêmicos são os mesmos temas que o próprio Rosenstock-Huessy previu e trabalhou com uma dedicação impressionante: o multiculturalismo, o debate entre gêneros e a alteridade de culturas primitivas e civilizadas – variações infinitas do apocalipse político que foi o combate entre a Kultur alemã e a Zivilization inglesa. 

Contudo, a diferença está no fato de que Rosenstock via esses assuntos não como uma forma de superioridade de uma determinada minoria sobre o curso inteiro da civilização, dando ensejo às affirmative actions que invadem o nosso meio cultural, mas como vários estágios da peregrinação espiritual do ser humano, especialmente quando este último conseguiu articular e tornar cada vez mais sofisticado este milagre chamado linguagem. 

Neste ponto, fica claro que sua filosofia é a de um pensador religioso que não hesita revelar o que seria a beleza do Verbo aos seus leitores. Assim, muitas das ideias de Rosenstock podem parecer tresloucadas por não terem o aparente método acadêmico, mas talvez o seu método seja justamente criar uma nova maneira de ver as coisas deste mundo – e ela talvez só possa ser compreendida, se tivermos a perspectiva religiosa da vida entre o homem e sua ligação mais profunda com a linguagem, identificada com o conceito de Deus. 

Esta flexibilidade – um espanto para muitos pesquisadores enclausurados em normas positivistas e meramente horizontais, pesadas como o chumbo (outro resultado do conflito entre a Alemanha e a Inglaterra) – permite a Rosenstock desenvolver com graça e vigor alguns dos insights mais fascinantes já feitos sobre o tema – e assim nos dar uma compreensão correta do que foi o apocalipse político que ocorreu na nossa cultura logo depois da Grande Guerra. 

Um desses momentos na obra de Rosenstock é o motivo pelo qual ele dá para que a linguagem seja vista como um milagre. Segundo sua explicação no livro ‘A Origem da Linguagem’, “a linguagem criou um campo de força entre os que tinham vivido e os que iriam morrer. É comum expressarmos esse fato pela admissão de que há uma relação entre os mortos e os vivos. Explicamos ritos funerários dizendo que os mortos eram considerados ainda viventes. Esta não é a verdadeira fé da humanidade. A fé da humanidade inverteu a relação entre a morte e a vida: os mortos eram adorados por terem vivido aqui como ‘predecessores’; os vivos eram emancipados por estarem prontos para morrer como sucessores.” 

Portanto, “a paz e a ordem dependiam dessa inversão da suposta ordem natural de nascimento e morte. Para a sofisticada e moderna mente científica, o nascimento precede a morte. ‘O menino é pai do homem’, dizemos desde esse ponto de vista puramente individualista. O indivíduo, considerado unidade do nascimento à morte, teria permanecido mudo. Os animais não falam, com efeito, pela simples razão de não serem predecessores nem sucessores de ninguém. A constituição da humanidade consiste na constituição da sepultura como útero. 

As tribos, os impérios, as igrejas não discordam a esse respeito”, mas, 

“se o homem concebe a vida entre nascimento e morte, não há progresso. O progresso depende da qualidade interseccionadora da morte como útero do tempo. Entre a sepultura e o berço, o homem civilizado torna-se articulado, educado, e encontra orientação e direção. As pressões resultantes da sepultura produzem a vertente por onde as águas da vida podem atingir as alturas de um novo nascimento. O animal cresce, mas não pode penetrar o tempo que antecede o seu próprio nascimento. Uma densa cortina impede-lhe o conhecimento de seus antecedentes. Ninguém diz ao animal qual é a sua origem. Mas nós, as igrejas e tribos de tempos imemoriais, elevamos toda a humanidade acima da dependência do mero nascimento. Abrimos-lhe os olhos para suas origens e predecessores. Transformamos-lhe os meros nascimentos de modo que se mudassem numa sucessão de antecedentes bem conhecida e estabelecida. E transformamos as simples mortes em precedente para a emancipação dos sucessores. Fizemos com que o homem conhecesse a sua origem, elaborando-lhe uma língua”. 

No fim, “a origem da fala humana é a fala da origem humana. Falando uma língua, o homem tornou-se e continua a tornar-se humano”. Sendo este milagre que ninguém consegue perceber, “a origem da linguagem permite superar a relação ‘natural’ entre nascimento e morte. O ímpeto de nosso encadeamento de linguagem é o mesmo de todas as formas já referidas, de todas as canções cantadas, de todas as leis promulgadas, de todas as orações rezadas, de todos os livros escritos – todas apontam para a direção que faz da morte a predecessora do nascimento”. 

Os trechos são longos, mas iluminam os princípios pelos quais Rosenstock se guiará em sua investigação. Como a origem da linguagem é “uma das questões mais debatidas, ridicularizadas e desesperadoras da história humana”, ele quer hierarquizar qual tipo de linguagem que será analisada. 

Antes de tudo, não se pode confundir a linguagem informal com a formal, ou seja, da linguagem que informa onde é o caminho para uma determinada cidade daquela que forma as palavras da oração ou as sentenças das leis. É a linguagem formal que deve ser analisada, pois seus componentes mostram como está o estado espiritual não só de um único indivíduo, como também da sociedade como um todo – ou, se quisermos ir além, de uma civilização

Entretanto, não é apenas no aspecto sociológico que a linguagem formal é importante. Ela foi a articulação de uma fala, que se cristalizou num ritual que simbolizava a passagem (ou seria o progresso?) de um mundo para o outro, dos mortos para os vivos, daqueles que não estão mais aqui para aqueles que em breve estarão, do passado para o presente, a preparar o homem para o futuro. Eis aí o milagre de facto: a origem da linguagem dá a possibilidade do ser humano conhecer sua própria origem, como mostra o início do Evangelho de São João (“No princípio era o Verbo”). 

corpus de Rosenstock tem uma preocupação intensa com o problema da ordem divina e humana. São assuntos, aliás, de especial importância tratando-se da origem da linguagem, já que, como o ser humano começou a falar na linguagem formal, e seu aspecto informal é considerado uma perversão do Verbo, seria lógico concluir que a ordem bem articulada só pode ser expressada de forma clara e cristalina, com uma linguagem que tenha as mesmas características. 

Dessa forma, o problema da ordem e da desordem na sociedade e no indivíduo se intersecciona com a questão do tempo. Rosenstock não afirma em nenhuma parte do livro, mas deixa implícito que quem cria o tempo é a própria linguagem e o uso que fazemos dela – no qual o resultado influirá diretamente na estrutura social do mundo onde o indivíduo vive. 

Porém, o tempo, de acordo com as sutilezas da linguagem, não é um tempo ágil, de causa-e-efeito imediatos: tudo faz parte de um lentíssimo esquema em que, muitas vezes, a resposta dar-se-á anos e anos depois que o primeiro mandamento – no caso, o ato de dar (ou dizer) um imperativo ou de mudar a natureza de um substantivo, p.ex: um nome – inicia um fenômeno que Rosenstock, num lance digno de poeta, chamou de “taça do tempo”. 

A imagem da “taça do tempo” não me parece ser uma escolha aleatória, como se pode prever de um homem que conhecia os símbolos de forma minuciosa. A imagem que ele usa e abusa em seus escritos representa um mistério que poucos tiveram coragem de responder: Como as mais diferentes vidas podem ser unificadas por meio de uma palavra que atravessou anos, às vezes séculos? Para aqueles que acreditam ser essa uma pergunta inútil, este ceticismo é esmigalhado em questão de segundos se o leitor se perguntar sobre a natureza de seu próprio nome e sobrenome que, de alguma forma, ecoa anos de história particular e coletiva, sem que se saiba ou tente imaginar. 

Um dos exemplos mais didáticos de como funciona o fenômeno da “taça de tempo” de Rosenstock pode ser encontrado no cinema, no filme ‘Sunshine – O Esplendor de um Século’ (2000), dirigido por István Szabo e com Ralph Fiennes no papel principal (no caso, três papéis principais). A história cobre as três gerações de uma família, os Sonnenschein, judeus-húngaros que tiveram sua fortuna graças a um licor chamado “Sunshine” (a tradução em inglês do sobrenome europeu, que significa “aurora”). O patriarca é um homem muito religioso, chamado Emmanuel, que, ao descobrir que seu filho, Ignatz, quer casar com Valerie, uma menina que criaram como filha, afirma que isso seria contra as leis de Deus, pois a moça seria como parte da própria família. 

Mesmo assim, o filho consuma a sua paixão pela garota e ambos se tornam amantes, sem o conhecimento dos pais. Formado em Direito, Ignatz é um caloroso defensor da monarquia austro-húngara que existia antes da Primeira Guerra Mundial, que ele considera “liberal”, mesmo que, para entrar como juiz na Suprema Corte, seja “sugerido” que mude o seu sobrenome, devido ao “tom” judeu. Ignatz não hesita e, até o próprio pai, já enfraquecido pela velhice, compreende a intenção do filho, que muda o nome de Sonnenschein para Sörs (“destino” em húngaro). 

A mudança do substantivo, no caso um nome, é o início da “taça do tempo” que vai se estender por toda a história do século XX. Houve o rompimento de um ritual – e também de um ritual moral, que é o incesto entre irmãos, mesmo que eles não sejam do mesmo sangue, mas criados como se fossem da mesma família. A quebra do ritual, a fala cristalizada, só pode implicar na quebra de um símbolo, que é o próprio nome. Poucas pessoas, hoje em dia, dão importância ao nome que escolhem para si mesmos ou para seus descendentes, mas o fato é que o nome é o que nos identifica como indivíduos e, não à toa que, no Direito, o nome é nada mais, nada menos que “o elemento fundamental na individualização da personalidade jurídica”. É o nosso nome que nos define, de certa maneira, e que nos deixa com um passado para sermos arremessados ao futuro. Como diria o velho adágio: nomen est omen (“o nome é destino”). 

Os agora Sörs (já que Valerie e o resto de sua família também fizeram o mesmo que Ignatz, pressionados pelo constante anti-semitismo do império austro-húngaro) conseguem, com o perdão do trocadilho, um lugar ao sol no Estado. Ignatz é um juiz brilhante, mas que não hesita em reafirmar sua admiração pelo Imperador. Quando eclode a Primeira Guerra Mundial e o império desaba, Ignatz se vê numa prisão de desilusão que não pode compreender. Para piorar, os comunistas tomam o poder (e entre eles, está o irmão de Ignatz, Gustave) e o antes tão prestigiado juiz da Corte é condenado a prisão domiciliar, além de sofrer de problemas cardiovasculares que acarretarão em uma morte dolorosa. 

O filho de Ignatz e Valerie, Adam, vira um virtuose da esgrima, mas também um alienado político, pois defende o regime austro-húngaro que foi anexado ao nazismo. Dessa vez, a mudança não será apenas na questão do nome: Adam se converte ao catolicismo e, numa das aulas de eucaristia, conhece sua esposa, uma judia na mesma situação constrangedora sobre sua religião. 

Uma série de circunstâncias mudam radicalmente a vida da família Sörs: apesar de ter ganhado a medalha de ouro nas Olímpiadas de Berlim em 1938, Adam, sua esposa, seu filho Ivan, a cunhada Greta (com quem tem um caso), seu irmão Istvan e sua mãe Valerie, vão para os pogroms e depois para os campos de concentração, onde Adam é torturado até a morte, afirmando sem parar que seu nome é “Adam Sörs, campeão mundial de esgrima”, e sem proferir uma palavra sobre sua origem judaica. 

Os únicos sobreviventes da tragédia são Valerie e seu neto Ivan. Amargurado pelo fato de que os nazistas foram os responsáveis pela morte de seu pai, Ivan, aconselhado por seu tio Gustave, se alia aos comunistas que ficaram com a Hungria, ajudando no expurgo de possíveis traidores do Partido Comunista. Contudo, gradualmente, Ivan vai tomando consciência da loucura que é o comunismo, tão ou quanto pior que o nazismo, e decide se tornar um opositor do Partido, acabando por ser preso e condenado por seis anos. 

Ivan é libertado justamente quando o regime comunista está acabando, mas ainda mostra os sinais de sua irredimível burocracia. Vai morar com a avó na antiga casa da família e quando Valerie tem um derrame, Ivan procura a receita do bisavô do licor “Sunshine”, que desaparecera misteriosamente anos atrás. No hospital, a última palavra que Valerie diz ao neto é justamente o antigo sobrenome judeu: Sonnenschein

Ivan nunca soube que este era o verdadeiro nome da família; ao descobrir isto, no meio de uma mudança de residência, encontra uma carta de Emmanuel dirigida a Ignatz que o aconselhava a seguir as leis de Deus durante a sua vida. A primeira coisa que Ivan faz logo depois desta descoberta é usar de novo o nome Sonnenschein. Curiosamente, é também a época que o regime comunista acaba na Hungria. 

Esta longa exposição da história de ‘Sunshine’ é feita aqui para que o leitor perceba o que é a “taça do tempo” sobre a qual Rosenstock tanto fala. “A linguagem precisa de tempo para repletar-se de significado”, escreve ele, “Ninguém esperava que um hino, um juramento ou um feitiço fosse mais que promessa de compreensão mútua. Os nomes não são generalizações, como pensam nossos filósofos. Nossos ancestrais consideravam a generalização coisa do demônio. Teriam considerado uma blasfêmia tratar a educação como capacidade de fazer generalizações. Os nomes eram para o adolescente iniciado promessas de vagarosa ascensão ao entendimento. Eram rodeados de mistério, e não porque fossem verdadeiros, mas porque deviam tornar-se verdadeiros”. 

Ao não compreender que a recusa de um nome é a quebra de um espírito, Ignatz Sonnenschein amaldiçoa o resto de sua família – e muitos fizeram o mesmo na vida real, antes ou depois da Primeira Guerra Mundial, sempre por causa de alguma causa política que, obviamente, contrariava a verdadeira lei divina. 

Para Rosenstock, “o espírito da linguagem e a linguagem do espírito são vida vivida condensada em nomes”. E continua, num outro trecho esclarecedor: “‘Espírito’ é como geralmente se chama o poder de um nome de conter o passado e amplos conjuntos de vida realmente vivida, de modo que aqueles que o invocam possam experimentá-los. Quando comparamos os números dez, cinco ou três com os nomes de deuses e de homens, os números podem ajudar-nos a definir os nomes por meio de contraste. Os números são entendidos sem espaço de tempo. Por isso inventamos uma escrita especial para 1, 2, 3, 4, etc. A matemática é a ciência dos fatos que não exigem vivência temporal real para serem entendidos. Mas os nomes estão no pólo oposto. Todos os homens de todos os tempos têm de ter vivido antes de conhecer a Deus. Deus não é um número nem uma palavra. Ele tem um nome. Todos os nomes, salvo o de Deus, têm existência curta. Mas todos demandam ser preenchidos de significado por longos períodos de tempo”. 

Este longo período de tempo em que a linguagem se comunica com os vivos e os mortos é o milagre que Rosenstock admira como poucos. E o que mantém a unidade desse fenômeno é justamente a linguagem formal, que é a bebida na qual a “taça do tempo” é preenchida. “A linguagem formal é um processo físico, compreendido no universo de nossos cinco sentidos, pelo qual uma taça de tempo é formada e desfeita. Dentro dessa taça de tempo, ou espaço de tempo, ou campo de correspondência, os seres humanos dividem o seu trabalho. Eles não podem dividir o trabalho se não se tiveram internado no campo comum da linguagem formal. E não podem partir para novas divisões do trabalho até que o velho campo esteja dissolvido. Precedentemente a todos os atos sociais, deve-se constituir o campo de correspondência em que se ordenarão e cumprirão os atos, após cujo cumprimento deverá desaparecer o campo”. 

A “taça do tempo” é um fenômeno complexo e, por isso mesmo, capaz de abuso e incompreensão, porque necessita de continuidade. A verdadeira função da linguagem é unificar uma sociedade ou uma civilização, senão ambos perecerão. Daí seu caráter miraculoso e, paradoxalmente, corriqueiro. Entretanto, Rosenstock avisa que a linguagem é um território fértil para que o pai da mentira – o demônio – possa criar suas estripulias e perverter não só as sementes, como também o solo, onde ela será frutificada a contento. O resultado disso seria a desarticulação da linguagem, criando suas quatro doenças: a guerra, a crise, a revolução e a tirania

Como Rosenstock-Huessy acredita piamente que a linguagem é um dom divino, por isso justifica o seu ataque aos intelectuais modernos, alegando que eles seriam responsáveis pelas quatro doenças citadas acima, uma vez que eles não acreditam mais na existência do pai da mentira e, assim, usam a linguagem como um mero exemplo lógico, destituída de qualquer relação com a realidade concreta, a mesma realidade na qual ela se baseou para se cristalizar e se prolongar através do tempo no seu modelo formal. 

A ausência de uma formalidade na linguagem do cotidiano, que não crie um equilíbrio entre o passado e o presente, pode dissolver a realidade num outro tipo de ordem – a ordem pervertida. Este é o aspecto trágico que está latente na questão da origem da linguagem – e que permeia todo o apocalipse político que emoldurou a Primeira Guerra Mundial: em qualquer momento, a palavra pode transformar a verdade em mentira e é neste abismo que se revela, paradoxalmente, a falta que faz uma linguagem articulada. 

É aqui que entram as quatro doenças já mencionadas: guerra, crise, revolução e tirania (também denominada degeneração). Sem o conhecimento delas, nunca poderemos saber a benção que é a linguagem e como ela verdadeiramente estrutura a vida do espírito. “A medicina não se torna ciência senão quando penetra os mistérios das doenças. A sociologia não se torna científica senão quando pode explicar guerras e revoluções. A ausência da devida ordem, ou seja, a presença do indevido, é que serve para explicar a ‘origem’ da ordem devida. Quando descobrimos por que determinado estado de coisas é negativo e ruim, começamos a entender a origem do bom. A biologia será a ciência da vida no exato dia em que a morte for inteiramente compreendida. No mesmo sentido, teremos uma ciência da fala ou da linguagem assim que penetrarmos o inferno da não-linguagem”. 

Rosenstock não brinca em serviço ao querer diagnosticar minuciosamente as doenças da linguagem. Mas, antes de tudo, ele deve estabelecer um princípio, como todo bom cientista: “Nossa maneira de formular a questão da origem da linguagem desloca o terreno da questão para o da política e da história. Aqui, a questão ‘Quando o homem deve começar a falar?’ é feita como a pergunta a que deveriam responder outras autoridades que não os professores de inglês, árabe ou sânscrito. Estes tratam as línguas como fatos. Aqui, todavia, as línguas são apresentadas como pontos de interrogação da história política. Queremos, aliás, sugerir aos leitores puramente literários ou gramaticais que nos deixem agora mesmo, sob pena de ficarem desapontados ao descobrir que a nova linguagem não é criada pelos pensadores ou pelos poetas, mas pelas grandes calamidades políticas ou levantes religiosos” (itálico nosso). 

O que se segue é uma explicação originalíssima da relação que há entre a linguagem e os eventos da ordem e da desordem. Em primeiro lugar, temos a guerra, que é quando um país não escuta a linguagem de outro país e ambos entram em conflito, para que a harmonia possa um dia se restabelecer e um poder ouvir o que o outro fala. Depois, temos a revolução, uma ruptura mais profunda ainda, pois o que é inaudível são os sons da tradição e do passado, escolhendo a energia desenfreada do presente, não havendo espaço para reflexão, apenas “hipersensibilidade aos gritos da juventude”. 

Em contrapartida, temos a tirania (ou a degeneração), em que os sons do futuro não são ouvidos, e assim privilegia-se a excessiva temperança do passado que, um dia a mais, um dia a menos, só tende a morrer, através de uma entropia ou então da própria violência revolucionária.

Por fim, há a crise que Rosenstock nos explica dessa maneira inusitada, aliás com um exemplo perfeito para nossos tempos democráticos: “Quando um desempregado bate à minha porta e eu digo ‘não há trabalho para ti!’, isso parece não implicar nenhum problema linguístico. Mas implica, sim. O desempregado que pede ‘trabalho’ está na verdade pedindo que lhe digam o que fazer. Tendo a pensar que nossos economistas não percebem, além da dificuldade financeira que há em tal reivindicação, a reivindicação de que falem com ele! Queremos que nos digam o que fazer na sociedade. A crise interna de uma sociedade em desintegração resulta de que ninguém diz a muitas pessoas dessa sociedade o que devem fazer”. 

crise (ou anarquia) vem da ausência de ordem dada ou expressa, uma ordem que, para ser cristalizada em palavras de lei, precisa ser articulada em termos formais. Quando um não escuta o outro ou alguém não sabe falar com o próximo, este é o aviso de que a linguagem cairá no reino do pai da mentira. 

É o que atualmente acontece no Brasil e no mundo, onde a linguagem se tornou um repositório de jargões publicitários e clichês ideológicos – tudo fruto, direto ou indireto, deste colossal erro histórico que foi a Primeira Guerra Mundial. 

Mas, ao mesmo tempo que se pende para a mentira, há também a ira escandalosa da verdade, apesar de estar encoberta pela retórica do apocalipse político que parece ter transformado o globo terrestre em um gigantesco “estado de exceção”, sem nenhuma ambivalência moral, semelhante a um gulag administrado pelo governo de Stalin. 

Se, em ‘Sunshine’, a mudança de um nome amaldiçoava uma família na história trágica de um país e de um século, na segunda década deste século XXI temos um novo fenômeno: as quatro doenças da linguagem amalgamadas em algo ainda inexplicável, mas que podemos traduzir apenas numa única e assombrosa imagem – a dos aviões atravessando as Torres Gêmeas do World Trade Center no dia 11 de setembro de 2001. 

Parece um raciocínio sem nexo, mas o símbolo da torre é de grande importância para a questão da origem da linguagem – como foi articulado nesta grande imagem que é o famoso quadro de Pieter Brueghel, o Velho, a respeito da Torre de Babel, o episódio do Gênesis em que se conta o castigo de Deus de confundir o homem, que queria construir uma torre gigantesca para chegar a Ele. 

A torre é também um dos símbolos da alma e, de uma certa maneira, se seguirmos Rosenstock, a linguagem é a alma de uma sociedade. Portanto, não seria lógico pensar que, assim como aconteceu com a Grande Guerra, a queda das Torres Gêmeas foi o marco de uma nova “taça do tempo” que só veremos o resultado daqui a alguns anos, se ainda estivermos vivos? 

Não seria o fato da guerra, da revolução, da degeneração e da crise se unirem, como numa espécie de punição em que o homem, já confuso por ter que lidar com cada um desses problemas, tenha que decifrar o enigma que o fará voltar à ordem? 

Essas questões não são inúteis se colhermos com afeição as sementes que Rosenstock plantou em seus escritos – e percebermos que elas lidam com aquela execução da memória humana que, coberta pela crosta do gelo da história, esquece-se do “esqueleto desfolhado da sombra”, sempre alimentado pelo “repentino passar do tempo” que, de novo, “com o degelo sangra” e revela todos os milhões de cadáveres enterrados no solo desta “guerra do mundo”. 

No submundo da história, narrada pela voz subterrânea de uma realidade que se recusa a ser abandonada, a administração do apocalipse pelo Estado impediu que percebêssemos novas maneiras de ver o mundo e que poderiam fazer parte daquela tradição de homens que, movidos pelo senso de dever, investigaram o real para se chegar à verdade. 

Agora que o Estado não sabe mais o que fazer com o apocalipse político criado e gerenciado por ele próprio durante todos esses anos – graças ao “círculo dos sábios” que praticou detalhadamente a traição da democracia –, devemos nos perguntar se não é tarde demais para descobrirmos que a verdade objetiva sempre esteve no coração da linguagem. Mais do que nunca, a única coisa que o homem pode fazer ao deparar-se com ela é se curvar e calar completamente a fala que ainda não foi cristalizada nas lembranças que nos abençoam, guardadas na memória do Verbo original. 

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pesquisador pela FGV-EAESP.

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