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Observando de fora, não é fácil entender o STF. Vendo mais de perto, também não. Ainda assim, vale a pena a tentativa.
Já que o Supremo Tribunal Federal se tornou o protagonista da política brasileira, preparamos um guia destinado aos estrangeiros que pretendem compreender o que acontece na maior democracia da América do Sul. Democraticamente, dentro do Estado democrático de direito e sem cometer crimes de ódio.
Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO)
Se o STF está impaciente com a falta de uma lei sobre algum assunto, a corte pode assumir o papel do Legislativo. Basta que um deputado (se for do PSOL, melhor) apresente uma ADO. Foi por meio de uma ADO (26, de 2019) que o STF equiparou a homofobia e a transfobia ao crime de racismo.
André do Rap
André não é cantor de rap. Antes fosse. Líder do PCC e um dos principais traficantes de cocaína do país, ele foi solto por decisão do ministro Marco Aurélio Mello, em 2020. André, que já havia sido condenado pela Justiça mas aguardava o julgamento de todos os recursos, nunca mais foi encontrado.
Apartamento funcional
Os ministros do Supremo Tribunal Federal podem morar em um dos apartamentos funcionais oferecidos pelo tribunal, na região da Asa Sul.
Prós: o bairro arborizado, a sala ampla e o acabamento requintado.
Contras: falta uma varanda, e a vizinhança não é das melhores.
Atos antidemocráticos
Um termo elástico, que vai desde duvidar das urnas eletrônicas e fazer piadas sobre o STF na internet.
Capinha
Nas sessões do STF, nada acontece sem os capinhas. São assessores encarregados de prestar auxílio às suas excelências. Cada ministro tem o seu. Se um deles faltar ao trabalho, o ministro não terá seus documentos sobre a mesa e possivelmente terá de permanecer em pé durante toda a sessão, por falta de alguém que lhe puxe a cadeira para que ele possa se sentar.
Carga de trabalho
As sessões acontecem de terças a quinta-feira. Sobra bastante tempo para estudar a Constituição.
Decisão monocrática
Um ministro do STF pode muito — inclusive prender ou soltar — graças ao poder da decisão monocrática. Só depois é que os colegas são convidados a opinar sobre o caso em questão. Às vezes o plenário vai na direção contrária e anula a decisão inicial, mas às vezes pode ser tarde demais (consultar o verbete “André do Rap”).
Discurso de ódio
O termo é presença frequente em decisões do ministro Alexandre de Moraes, e abarca uma lista infindável de coisas: dúvidas sobre urna eletrônica, homofobia, racismo, críticas ao STF etc. Talvez para compensar o fato de que "discurso de ódio" não aparece na Constituição ou em lei alguma, ele costuma usar o termo em frases enfáticas e acompanhadas por um ponto de exclamação. Assim: "Liberdade de expressão não é liberdade de propagação de discursos de ódio!".
Entrevistas
Um ministro do STF pode dar entrevistas à vontade. É possível falar sobre casos que foram julgados, casos que estão sendo julgados, casos que serão julgados e casos que nunca serão julgados. O contato em off com jornalistas da área política também é permitido.
Estado Democrático de Direito
A melhor forma de entender o Estado Democrático de Direito é pensar em uma religião, com seus dogmas e heresias. Para o STF, nada é mais importante que proteger o Estado Democrático de Direito. Desrespeitar os seus símbolos é muito mais grave que atacar uma igreja. Em nome do Estado Democrático de Direito, é possível até mesmo contornar algumas regras do Estado Democrático de Direito.
O Estado Democrático de Direito tem sua divindade: Artêmis (representada na estátua da Justiça, em frente ao STF). Vilipendiar a estátua dela é um crime gravíssimo, que pode levar a 14 anos de prisão num país onde a pena mínima por homicídio é de seis.
Férias
São 60 dias: 30 no inverno e 30 no verão.
Foro privilegiado
Deputados, senadores e o presidente da República são julgados diretamente pelo STF, e não nas instâncias inferiores. Alguns políticos afirmam que o foro privilegiado não é realmente um privilégio: não há ninguém a recorrer acima da Suprema Corte.
Por causa do foro privilegiado, o Congresso sabe que contrariar o STF é um risco: o mandato dos parlamentares está nas mãos de Luís Roberto Barroso e seus colegas.
Gleidson
Assessor do presidente do STF, Luís Roberto Barroso. Famoso por ter se distraído por alguns segundos durante uma sessão sonolenta na qual foi advertido pelo chefe com a frase “Ô Gleidson, tá trabalhando?"
Iluminismo
Termo usado pelo ministro Luís Roberto Barroso para definir o que é aceitável e o que não é. Iluminismo inclui a democracia, o combate ao "ódio" e a legalização da maconha. Não-iluminismo é tudo o que parecer atrasado e cafona. John Locke, um dos pais do Iluminismo (que era cristão e defendia a pena de morte), provavelmente não passaria no teste de Barroso.
Internet
Se um crime acontece na internet, ele acontece no STF. Graças a uma interpretação criativa do regimento interno, o STF passou a tratar como crimes acontecidos dentro da corte quaisquer publicações que possam ser interpretadas como ameaças ao tribunal ou ataques ao Judiciário. Isso permite que o tribunal arrogue para si quaisquer investigações criminais desse tipo, mesmo que não envolvam acusados com foro privilegiado.
Juiz
Embora seja o mais alto poder (e, para alguns, o órgão mais poderoso da República), o STF é formado por uma maioria de não-juízes.
Juiz tradicional, que tenha feito concurso e nunca exerceu cargo político, existe apenas um: Luiz Fux.
A lista de integrantes da corte inclui figuras como Flávio Dino, que foi governador do Maranhão, senador e ministro da Justiça pelo Partido Comunista do Brasil. Ele até foi juiz antes de ingressar na política, mas não está claro se Dino se lembra de alguma coisa daquela época.
Mostarda
Sabe-se lá o que a equipe de Oscar Niemeyer estava pensando quando decidiu que o chão e as paredes do plenário do STF seriam cobertos por um carpete cor-de-mostarda.
Porta dos Fundos
Uma trupe de humoristas acionada pelo STF para emprestar um pouco de credibilidade ao tribunal.
Regimento interno
Ele pode não ter o charme da Constituição, mas às vezes é tão importante quanto. Foi com base no regimento que o então presidente Dias Toffoli determinou a abertura de inquérito no caso das “fake news”, em 2019. Não houve pedido do Ministério Público. Mas quem é que vai julgar a constitucionalidade de um ato tomado pelo presidente da corte constitucional?
Réu e investigador
No STF, é possível ser juiz, investigador e vítima ao mesmo tempo. Como? É uma longa história. Melhor perguntar a Alexandre de Moraes.
Salário
Os ministros recebem R$ 46 mil por mês, ou aproximadamente US$ 105 mil por ano. São 30 salários-mínimos mensais. Ainda é possível economizar com passagens aéreas, carro, gasolina e moradia.
Seminários
Os ministros do STF são frequentemente vistos em seminários e congressos no exterior. O mais famoso é o de Lisboa, onde as principais figuras do Direito brasileiro se reúnem com outros brasileiros para falar sobre a Justiça no Brasil. Por quê? Provavelmente porque "Fórum Jurídico de Lisboa" soa melhor do que "Fórum Jurídico de Brasília". O conclave em Portugal é organizado por um instituto que tem como sócio o ministro Gilmar Mendes.
Separação dos Poderes
Montesquieu não ficaria feliz em saber que, no Brasil, a separação dos poderes só funciona de vez em quando.
Ministros do STF participam de reuniões privadas com membros do Executivo e do Legislativo, e se intrometem nos outros dois poderes sempre que acreditam que o Estado Democrático de Direito ou o Iluminismo estão sob risco. É o que o ministro Dias Toffoli chama de “poder moderador” — que existia na Constituição monárquica de 1824, mas não na atual.
Sino
Quando os ministros adentram o plenário, um sinal sonoro avisa aos presentes no plenário — advogados e curiosos — que é preciso ficar de pé. Desobedecer à ordem é garantia de bronca de um dos muitos seguranças. Tampouco é permitido filmar ou tirar fotos. A TV Justiça tem exclusividade.
Súmula vinculante
Esse mecanismo serve para que o STF decida como a Justiça (em todas as instâncias) deve decidir sobre certos casos. A regra foi criada em 2004 pelo Congresso Nacional, com o objetivo de agilizar a tramitação de processos e reduzir a sobrecarga do STF. Ao mesmo tempo, a ferramenta deu mais poder à Suprema Corte.
Sustentação oral
É quando um advogado vai à tribuna defender o seu cliente e tentar mudar os votos dos ministros (que estão prontos há uma semana).
TV Justiça
No Brasil, os julgamentos da Suprema Corte são transmitidos ao vivo pela TV Justiça, inclusive no YouTube. A vantagem é a transparência. A desvantagem é o incentivo à vaidade dos julgadores. Não que algum deles seja, de forma alguma, vaidoso.