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Cena da série documental ‘A Máfia dos Tigres’, da Netflix
Cena da série documental ‘A Máfia dos Tigres’, da Netflix| Foto: Divulgação - NETFLIX

“A Máfia dos Tigres” não se propõe a contar uma história sobre arquétipos americanos, mas foi bem isso que aconteceu. Assistir a um malandrão desavergonhado, que fala besteira e ignora regras, contra uma loira carola, santimonial e orgulhosa de sua própria hipocrisia é algo que nos soa bastante familiar. É como uma revanche entre Donald Trump e Hillary Clinton repetida em um cenário de grandes felinos em vez de eleitores. Coloque desta maneira: se o presidente tomar conhecimento desse programa e se aprofundar nele, não é difícil adivinhar de que lado ele ficaria.

Joe Exotic e Carole Baskin, as duas principais personagens da série documental da Netflix, representam muitas coisas que têm a ver com a guerra cultural americana atual. Essa é uma grande parte do que torna “A Máfia dos Tigres” tão insanamente irresistível, mas há muito mais. Pode ser a melhor coisa que a Netflix já fez e, como tal, marca um avanço para o serviço de streaming. (E não, para aqueles amantes de animais entre vocês: não é um programa sobre abuso de animais, a menos que você conte acariciar filhotes de tigres como maus-tratos, o que um de seus principais personagens aparentemente faz).

Até o momento, a Netflix moveu céus e terras - e gastou dinheiro suficiente para comprar os dois - para manter seus assinantes, mas sua marca se tornou sinônimo de entretenimento ruim e sem brilho e também entretenimento muito bom. “A Máfia dos Tigres” não é muito bom. É estelar, é de tirar o fôlego, é essencial. Seu queixo vai cair, cairá um pouco mais, cairá da boca, furará o chão e continuará caindo até que descanse no centro da terra. “A Máfia dos Tigres” pode ser a primeira série (cinco horas divididas em sete episódios, com mais uma em andamento) que a Netflix produziu e que você tem que ver se deseja se considerar culturalmente atualizado. É uma das coisas mais incríveis já produzidas para a televisão.

Lançada sem muita alarde em 20 de março, quando os Estados Unidos entraram em hibernação, “A Máfia dos Tigres” chegou ao mesmo tempo que uma inovação técnica crucial por parte da Netflix, que será essencial para sua sobrevivência, à medida que os principais estúdios de Hollywood retirarem seus programas da plataforma para colocá-los em seus próprios serviços de streaming. Em retrospecto, é incrível que a Netflix não tenha pensado nisso antes, mas agora ela dá ao espectador uma lista dos dez programas mais populares do momento.

Usar a Netflix não é mais uma busca solitária, isolada das tendências da sociedade. Assistir a filmes começou como uma atividade de grupo, e a televisão também. Mas, antes que a Netflix começasse a oferecer o ranking dos programas mais assistidos, percorrer o menu era uma experiência desanimadora e frustrante: como deveríamos saber quais dessas milhares de opções assistir? Agora que existe um sistema de classificação, sabemos o que está chamando a atenção das pessoas. Sabemos o que os outros estão pensando e falando. A Netflix agora nos colocou de volta em contato com nossos vizinhos.

A TV é mais uma vez uma experiência compartilhada, como foi naqueles 60 anos em que todo mundo assistia a “Seinfeld” ou “Os Sopranos” ao mesmo tempo. Lembramos mais uma vez que o homem é um animal social. Se um programa é o número 1 na Netflix por um período, automaticamente desperta interesse. Pode não ser bom, mas sua popularidade é uma informação útil.

“A Máfia dos Tigres” tem liderado o ranking dos mais assistidos da Netflix de forma consistente. Não revelarei aqui nenhum dos acontecimentos surpreendentes que ocorrem durante as cinco horas de programa, mas basicamente é o seguinte: uma disputa de longa data entre dois expositores de grandes felinos que ficaram ricos vendendo acesso a tigres e outros animais exóticos. Um dos rivais, Joe Exotic (cujo sobrenome verdadeiro é Schreibvogel), de Oklahoma, é um caipira rei da autopromoção e de fala rápida que, francamente, reconhece que administra lucrativamente um zoológico privado, onde clientes ansiosos abraçam tigres bebês. A rival, Carole Baskin, de Tampa, na Flórida, exala simpatia pela natureza, veste-se como uma deusa pagã, usa uma coroa de flores e descreve seu negócio como um "santuário" onde a vida selvagem vive livremente (atrás de suas cercas). Ela começou comprando animais exóticos quando isso era legal.

Baskin (entendo que sem nenhuma evidência) acusou publicamente o Sr. Exotic de abusar de seus animais e lançou uma longa campanha de relações públicas, auxiliada pela PETA, para prejudicar sua reputação e seus negócios. A queixa de Baskin foi de que Joe Exotic cria grandes felinos (cobrando das pessoas para brincar com tigres bebês inofensivos), mas os maltratam ou até os matam quando eles crescem demais para brincar, momento em que custam tão caro para alimentar que se tornam descartáveis.

Carole não cria filhotes de tigre, então ela acredita estar acima de seus adversários, embora, em um momento de descuido, ela se mostra feliz com as dezenas de milhares de dólares que ganha com publicidade nas mídias sociais toda vez que publica um vídeo sobre seus animais. Ela usa roupas com estampas de animais o tempo todo; Joe usa uma pistola no quadril. Ele adverte que haverá outro Waco se alguém mexer com ele; ela usa uma arma mais sofisticada, que é o poder da retórica dos direitos dos animais. Um dos muitos momentos divertidos criados pelos diretores Eric Goode e Rebecca Chaiklin revela como Exotic paga pouco a seus funcionários, muitos dos quais têm antecedentes criminais. Então vem a piada: Baskin paga a seus trabalhadores… nada.

Os grandes felinos são os mamíferos menos exóticos da série. Um homem que encontramos não tem as duas pernas; uma mulher teve metade do braço esquerdo arrancado por um tigre, mas voltou a trabalhar no zoológico apenas alguns dias depois do acidente. Há metanfetamina, tatuagens, tiroteios e relações amorosas não convencionais. Quanto aos dois personagens principais, eles fazem os Hatfields e os McCoys parecerem amigos de longa data. No geral, os personagens são tão interessantes que eles seriam atraentes para a televisão mesmo que não fizessem muita coisa.

Não falarei mais sobre o que acontece no programa porque você merece descobrir todos os acontecimentos incríveis do jeito que fiz, completamente desprovido de qualquer conhecimento prévio. Mas são os diretores que merecem todos os elogios. Um documentário de sucesso precisa de três coisas: boa edição, acesso irrestrito e sorte. Os diretores e sua equipe de edição fizeram a primeira com uma habilidade incrível, embora os dois últimos episódios sejam um pouco mais longos do que os anteriores, de ritmo mais ágil.

O nível de acesso que eles garantiram também é uma maravilha: todos os personagens parecem felizes em conversar com eles em todas as etapas da história, sendo frequentemente sinceros a ponto de parecerem desprezíveis, enquanto tudo ainda estava se desenrolando. E, por pura sorte, os diretores quase nunca têm que recorrer àquelas encenações bregas de docudrama que estragam tantos documentários (como os recentes McMillions da HBO). Os cineastas obtiveram vídeos para quase todas as histórias. No final da série, presenciamos até um incidente espetacularmente horrível por meio de uma foto registrada em uma câmera de segurança.

“A Máfia dos Tigres” não é o que eu chamaria de programação sofisticada. A maioria das pessoas nela é horrível, embora você possa se sentir compelido (como eu) a torcer por um lado abominável sobre outro. Mas o show é fascinantemente americano. É impossível imaginar esse bufê de loucura em qualquer outro país. Quanto ao efeito durador de "A Máfia dos Tigres", pense na série como uma dose fortíssima de um uísque clandestino. Pode não ser bom para você, mas certamente lhe deixa bem alegrinho.

©2020 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês
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