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Crianças e movimento LGBT
Crianças observam parada LGBT em Copenhague, Dinamarca, em 2021. A defesa do “tratamento afirmativo” para crianças que sofrem de disforia foi uma das estratégias mais contenciosas adotadas por parte desse movimento na última década. Estudos sugerem que a maioria das crianças disfóricas não se tornam transexuais quando crescem.| Foto: EFE/EPA/Olafur Steinar Gestsson

Crenças de pouca base científica parecem orientar o ativismo que invadiu a prática médica no tratamento de crianças que manifestam uma persistente vontade de ser do sexo oposto, chamada de incongruência ou disforia de gênero. Entre elas está a crença de que essas crianças nascem no “corpo errado”, que isso seria um sinal de uma “identidade de gênero” espontânea injustiçada pela imposição cultural de um “sexo atribuído ao nascer”, e que o curso de ação adequado para isso seria uma “terapia afirmativa de gênero”, que aceita o que a criança disfórica afirma sobre si mesma e aplica tratamentos sociais, medicamentosos (incluindo bloqueio da puberdade) e, quando elas atingirem certa idade, até cirurgias para corrigir o problema. Essas crenças são defendidas com fervor por ativistas e pesquisadores aliados, ao ponto de lançarem difamação e calúnia contra pesquisadores que levantem dúvidas.

No meio do caminho dessas crenças há um obstáculo. É a descoberta recorrente de que a maioria dessas crianças disfóricas se desenvolve sem necessidade dessa “afirmação” e desiste de transicionar para outro sexo. Um dos principais pesquisadores dessa linha de pesquisa é o psicólogo canadense Kenneth Zucker, professor de psiquiatria na Universidade de Toronto. Em um dos estudos liderados por ele, 88% dos meninos disfóricos acompanhados por mais de uma década desistiram da transição e se desenvolveram de modo a ficarem confortáveis com seu próprio sexo.

Esses resultados “são bem representativos de estudos de acompanhamento similares”, disse Zucker em entrevista à Gazeta do Povo. Interessantemente, o estudo descobriu que, entre os 12% de jovens que persistiram na disforia e se tornaram trans, era mais comum que fossem de classes socioeconômicas mais baixas. Zucker e colegas não sabem a razão exata disso, mas especulam que pode ter a ver com “a noção de que a aceitação de uma identidade gay ou homossexual é menor na subcultura da ‘classe trabalhadora’”. A intolerância contra homossexuais tem relação com a privação de recursos educacionais e outros — entre os 88% desistentes, a maioria dos meninos (65%) se desenvolveu como homossexual ou bissexual. É como se, para os grupos sociais com maior dificuldade de aceitação das minorias sexuais, fosse mais fácil para os meninos disfóricos “se tornar mulher” do que se desenvolver como homossexual, replicando o que acontece na cultura intolerante da teocracia iraniana, em que gays são forçados a mudar de sexo.

Chefe de ambulatório que faz bloqueio de puberdade na USP repete inverdades contra pesquisador

No Brasil, o Conselho Federal de Medicina estabeleceu diretrizes para crianças e adolescentes disfóricos que permitem o tratamento com hormônio do sexo oposto a partir dos 16 anos, mediante autorização de pais e responsáveis. O bloqueio da puberdade, antes disso, só é autorizado em caráter experimental. Há um ano, o Ambulatório de Transtorno de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, revelou que estava oferecendo bloqueio da puberdade para cerca de 100 crianças disfóricas entre quatro e 12 anos.

Preocupados com a notícia, deputados estaduais estabeleceram uma Comissão Parlamentar de Inquérito em que Alexandre Saadeh, médico psiquiatra que coordena o Amtigos, foi ouvido no dia 22 de agosto de 2023. A sessão na Assembleia Legislativa (Alesp) durou quatro horas.

Respondendo a uma pergunta da deputada estadual Beth Sahão (PT) a respeito do trabalho do psicólogo canadense, Saadeh disse que Zucker “foi acusado de abuso sexual, teve todo um... algumas questões aí. Ele entrou em descrédito, mas ele continua publicando, ele tem uma maneira de encarar o trabalho com identidade de gênero de uma maneira muito específica, que é interessante. No ambulatório, a gente não segue nem a escola canadense [de Zucker], nem a escola holandesa, e muito menos a escola americana (...), que é afirmativa. A gente faz uma antropofagia dessas três formas”. A “escola holandesa” foi a criadora do protocolo de transição de gênero mediante bloqueio da puberdade, contudo.

A Gazeta do Povo levou essas afirmações a Kenneth Zucker. “Se o Dr. Saadeh morasse no Canadá, eu o processaria por difamação”, comentou o pesquisador. “Que ele tenha feito essa afirmação sobre mim é pouco profissional e execrável”. Ele explicou que a acusação de abuso sexual mencionada foi feita “não por um paciente, mas por alguém que nunca conheci na minha vida, que nem sequer estava morando no Canadá e presumivelmente estava ‘representando’ um paciente que não existia”. O Conselho de Psicólogos do Canadá investigou a denúncia e a rejeitou.

A respeito da alegação de que estaria em “descrédito”, Zucker respondeu “descrédito a respeito de quê? Há diferentes perspectivas sobre as melhores práticas para atender às crianças. Qualquer pessoa que alegue que há apenas uma ‘verdade’ é um ideólogo”. Uma métrica popular para medir o impacto de cada pesquisador é quantas vezes ele é citado por outros nas publicações científicas. Enquanto Zucker foi citado mais de 16 mil vezes, segundo a rede social acadêmica Research Gate, Saadeh acumula 374 citações.

A Gazeta do Povo perguntou a Alexandre Saadeh quais são suas fontes para as afirmações que fez a respeito do pesquisador canadense na Alesp. O psiquiatra pediu que entrássemos em contato com a assessoria de imprensa do HC e nos bloqueou em um aplicativo de mensagens.

Força-tarefa da difamação

A acusadora de Zucker foi a ativista Lynn Conway, professora de engenharia da computação na Universidade de Michigan. Ela é citada junto a outra colega de ativismo trans, Andrea James, no livro de 2015 “Galileo’s Middle Finger” (“O dedo médio de Galileu”, em trad. livre, sem edição no Brasil), da historiadora e bioeticista Alice Dreger. Juntas, James e Conway formam uma força-tarefa de difamação contra pesquisadores e jornalistas que ousem desafiar seus dogmas. Dreger teve acesso a e-mails em que as duas ativistas coordenaram, por exemplo, ataques ao sexólogo J. Michael Bailey, quando ele publicou um livro no começo do milênio divulgando uma teoria que desafia a ideia do “corpo errado”. A própria autora foi convidada por Conway para ajudar no assassinato de reputação contra Bailey, mas se recusou. Entre as acusações falsas das ativistas, James publicou fotos dos filhos menores de idade de Bailey e insinuou que ele os sodomizava. Dreger também virou alvo de e-mails ameaçadores de James, com menções a seu filho pequeno, quando investigou e denunciou o mau comportamento das duas ativistas.

James e Conway continuam em atividade. Um de seus alvos mais recentes foi o jornalista Jesse Singal, que em 2018 cobriu a questão das crianças disfóricas na revista Atlantic de uma forma não muito simpática à “terapia afirmativa”. Há três meses, em seu podcast, Singal levantou a suspeita de que Lynn Conway usa o próprio website dentro da universidade para artificialmente elevar o impacto de um site de Andrea James dedicado à difamação na busca do Google. Alguns dos difamados, ou seus parentes que jamais se engajaram na polêmica, têm como primeiro resultado para seus nomes as páginas difamatórias mantidas por James. A ativista é tão diligente em apurar a vida de seus alvos que descobriu informações não divulgadas por Singal em público, como a data da morte de sua mãe. Ela também pagou a um artista para fazer caricaturas dos alvos de difamação.

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