Eric Zemmour antes de participar de um debate com Jean- Luc Melenchon, líder do movimento esquerdista La France Insoumise (LFI) e candidato presidencial, nos estúdios do canal francês de notícias 24 horas BFMTV, em Paris, no dia 23 de setembro de 2021| Foto: EFE / EPA / BERTRAND GUAY
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Há mais de uma década, a direita francesa, encarnada pelo clã Le Pen e pela sua Frente Nacional, causa muito estardalhaço nas eleições presidenciais, mas nunca alcança o sucesso predito. Cogita-se mesmo que paire sobre a eterna candidata Marine Le Pen uma maldição que a impede de ultrapassar a barreira dos 50% de votos; não por acaso, disputar um segundo turno contra a matriarca da FN é o sonho de todo candidato à presidência — que o diga Emmanuel Macron. Parece, no entanto, que as coisas estão mudando no país de Tocqueville, e que a corrida presidencial de 2022 trará, finalmente, alguma novidade, ao menos à direita.

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Em uma destas muitas e surpreendentes cambalhotas que o mundo dá, Marine Le Pen — hoje, mais do que nunca, moderada e palatável ao “establishment” francês — corre o sério risco de perder o seu trono para uma personagem infinitamente mais polêmica e com pautas muito mais radicais e contundentes. A personagem em questão é Eric Zemmour, um conhecido e respeitado escritor e polemista de origem judaica, que já há tempos causa furor e ódio nos meios progressistas do seu país, suscitando, entre os críticos mais ferozes, epítetos similares àqueles dispensados pela imprensa tradicional a Trump e a Bolsonaro: fascista, racista, machista, homofóbico, e por aí vai.

O seu mais recente livro, “A França ainda não deu a sua última palavra” (2021), um longo e contundente libelo contra os crescentes ataques promovidos pela ideologia progressista à cultura, à história e aos valores franceses, é uma excelente via para entender o que pensa esse francês controverso e porque a sua entrada na política tem causado tanto barulho, à esquerda e à direita.

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Zemmour relata aí que se deu conta dos perigos que corriam a cultura e a sociedade francesas, ao ler o norte-americano Samuel P. Huntington, no seu premonitório “Quem somos nós?” (2006), vaticinar: na difícil tarefa de reconstrução social que será necessário promover para conservar os valores fundamentais das sociedades ocidentais, a França, pelo andar da carruagem, pouco terá a contribuir, pois nada mais restará do país de outrora, um dos faróis da cultura ocidental. De lá para cá, constata Zemmour, os acontecimentos só deram razão ao arguto pensador americano: os ataques perpetrados pelos arautos da ideologia progressista aos valores franceses e ocidentais tornaram-se mais e mais frequentes e acintosos.

Aliados a uma elite cosmopolita e pouco interessada no bem comum ou no que pensam os franceses acerca da sociedade em que vivem, esses paladinos de uma sociedade desenraizada, transnacional e politicamente correta levaram o país à beira do abismo, às portas de uma guerra civil — que já ocorre no âmbito da cultura. A França, no entanto, adverte Zemmour, ainda não deu a sua última palavra, ainda não aceitou, e nem vai aceitar, como inevitável o seu apagamento cultural.

Zemmour, com ou sem razão, o tempo o dirá, anuncia-se como o representante dessa França profunda — e, segundo ele, majoritária —, dessa França que não quer se imolar no altar do globalismo, melhor, que ainda deseja ter uma palavra na tal reconstrução sociocultural mencionada por Huntington. Por enquanto, tudo o que se pode afirmar é que o combativo polemista tem ocupado um lugar imenso no debate cultural francês e, desde que anunciou sua intenção de concorrer à presidência, provocou uma confusão no mundo da política.

Gente que nem mesmo está de acordo com as suas contundentes afirmações, que o julga demasiado à direita para governar uma sociedade tão à esquerda como a francesa, não esconde o desejo de vê-lo num debate presencial proferindo, com a veemência que lhe é própria — e pode ser constatada em dezenas de vídeos disponíveis no YouTube —, frases do gênero: “É preciso parar a imigração muçulmana, fechar as mesquitas turcas, fechar as escolas turcas e aceitar o confronto”; “Quando se vai a Londres, não se reconhece mais uma cidade inglesa. A verdadeira razão do Brexit é a imigração”; “Sem o cristianismo, sem a Igreja, não existe França”; "A descristianização segue em paralelo à perda de respeito pela vida humana”; “Nossas elites despendem o seu o tempo a criticar a História da França”; “Mencionei que assistíamos a um retorno à Idade Média, mas, de fato, é muito pior. Na Idade Média confinava-se os doentes; hoje, confina-se todo mundo”.

Um Trump à francesa? Certamente que não, responderia um simpatizante do intelectualizado Zemmour; do mesmo modo que Bolsonaro não é um Trump à brasileira, complementaria eventualmente um bolsonarista. É, no entanto, inegável que esses e outros tipos assemelhados que têm surgido no cenário político contemporâneo, tipos por vezes denominados neopopulistas, por vezes iliberais, parecem, goste-se ou não, compartilhar um mesmo talento: dar voz àquelas parcelas da população que, como diz um ensaísta inglês contemporâneo, são de “algum lugar” ­­— têm família, empregos, amigos, região e pátria —, e não se sentem mais representadas por aquela minoria barulhenta (e poderosa) que não pertence e não quer pertencer a “nenhum lugar” — cosmopolita, conectada e engajada em causas e negócios globais.

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Qual o real alcance eleitoral de Zemmour ainda não se sabe, uma coisa, porém, é certa: em 2022 estaremos livres daqueles empenhados “bem pensantes” franceses que, nas eleições de 2018, atravessaram o Atlântico para assinar manifestos contra a ascensão da "extrema-direita" no Brasil. Por sorte, esses iluminados, que sempre sabem para onde o mundo dos outros deve ir, estarão ocupados, e muito, tentando deter o avanço do suposto “fascismo” em seu país e entre seus conterrâneos.

*Jean Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1999), “Visões do Rio de Janeiro Colonial” (José Olympio, 2000), “Mulheres Viajantes no Brasil” (José Olympio, 2008), “Andanças pelo Brasil colonial” (Editora da UNESP, 2009), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012), “Piratas no Brasil“ (Editora Globo, 2016) e “Ilustres Ordinários do Brasil” (Editora da UNESP, 2018).