Lavrenti Beria (à esquerda) e Joseph Stalin: assassinos de milhões| Foto: Reprodução
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Em 23 de dezembro de 1953, Lavrenti Beria foi submetido ao mesmo ritual pelo qual milhares de pessoas já haviam passado por ordens suas. Julgado traidor, sem direito a defesa, se viu diante de um pelotão de fuzilamento. Beria não demonstrou a coragem que muitas das pessoas que ele mandara matar demonstraram neste momento.

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Ajoelhou-se, implorando por sua vida. Depois deitou-se no chão, gemendo. E nessa posição foi alvejado na cabeça pelo general Pavel Batitsky. No dia seguinte, a imprensa oficial soviética divulgou uma nota: “O tribunal determinou que o réu Beria, depois de trair a pátria e agindo nos interesses do capital estrangeiro, organizou um grupo traidor de conspiradores, inimigos do Estado Soviético”.

O texto prosseguia: “Os conspiradores tinham como seu objetivo criminoso utilizarem os órgãos do Ministério dos Assuntos Internos contra o Partido Comunista e o Governo da URSS, colocarem o Ministério dos Assuntos Internos acima do Partido e do Governo para tomarem o poder, liquidarem o regime operário-camponês soviético, restaurarem o capitalismo e restabelecerem o domínio da burguesia”.

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Assim terminava a trajetória do homem mais temido da União Soviética desde meados da década de 30. Como chefe da NKVD, o serviço de espionagem que antecedeu a KGB, ele havia cuidado de toda a rede de opressão do regime soviético. Gerenciava os expurgos de etnias inteiras e a investigação e prisão de opositores. Mantinha funcionando os gulags, como eram conhecidos os campos de trabalho forçado.

Projeto atômico

Mas seu poder ia muito além: era ele o responsável por deslocar detentos para as fábricas e as minas. Dessa forma, alimentou a máquina de guerra russa e chegou a alcançar a patente de general. Foi ele também que gerenciou todos os aspectos da fundação do programa nuclear soviético, desde o uso de espiões para roubar detalhes do projeto americano até a mineração de plutônio e a arregimentação de especialistas para desenvolver bombas atômicas.

Beria foi bem-sucedido nesse projeto: em poucos anos, a URSS tirou o atraso em relação ao Ocidente e, em 1949, detonava seu primeiro artefato nuclear. Mas o sucesso inicial, assim como a continuidade do programa, se deu ao custo de vidas humanas.

“Trabalhei como motorista sem escolta, com o número 3-2-989’, relata Piotr Khmelnitzki, antigo motorista numa mina em Kolyma, no nordeste da URSS, em depoimento que consta do livro Laventri Béria - O Carrasco ao Serviço de Stalin, de José Milhazes. “Só durante o inverno de 1952, das mil pessoas que transportei, sobreviveram 36. Morriam de fome, de frio, dos trabalhos forçados, da radioatividade”.

Khmelnitzki prossegue: “Se se atravessar a passagem com o nome simbólico de Pensa, na cadeia montanhosa Chaitan, encontra-se o maior cemitério do campo de concentração, de onde os restos mortais são arrastados por feras. Em certos lugares do caminho, abundam crânios humanos como cascas de ovos”.

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Erro de avaliação

O sucesso fez do político uma figura muito próxima de Stalin. Os dois, aliás, eram nativos da Geórgia. Beria nasceu em 1899. Sabe-se pouco de sua infância, mas suas atividades no início da década de 1920, durante a consolidação da União Soviética na região, despertariam suspeitas ao longo de muitos anos — ele teria atuado como agente duplo.

Ainda na Geórgia, ele subiu na hierarquia soviética aproveitando-se de características que no futuro fariam dele conhecido como o homem certo para fazer o serviço sujo em nome de Stalin. Eliminou toda a intelectualidade da república e, em diferentes ocasiões, mostrou-se capaz de reprimir revoltas com severidade e não ter escrúpulos para eliminar grupos étnicos inteiros.

Em 1938, durante o Grande Expurgo conduzido a partir de Moscou, Nikolai Yezhov, então chefe da NKVD, denunciaria Beria, que ainda vivia na Geórgia. Antes mesmo de ser preso, ele soube da decisão, pegou às pressas um avião e encontrou-se com Stalin. Não só escapou da prisão certa como conseguiu ser levado para a capital, onde acabaria assumindo a agência de espionagem. Conseguiu inverter a situação a ponto de mandar prender Yezhov — que, assim com Beria faria em 1954, ajoelhou-se chorando e implorou pela vida segundos antes de ser executado, em 1940.

Influente, Beria acabaria participando de um erro grosseiro de avaliação militar durante a Segunda Guerra. Na medida em que Adolf Hitler se preparava para romper o pacto de não-agressão firmado com Stalin, no início de 1941, o chefe do serviço secreto criticava os informantes e garantia ao ditador que nada aconteceria naquele momento.

“Beria tentava agradar ao seu chefe”, relata Milhazes em seu livro. “Numa nota escrita a Stalin a 21 de junho de 1941, o responsável pelos serviços secretos soviéticos comentava assim as informações que chegavam da Embaixada da URSS em Berlim: ‘Insisto na chamada e no castigo de Dekanozov, nosso embaixador em Berlim, que continua a bombardear-me com desinformação sobre a alegada preparação de Hitler de um ataque contra a URSS. Este general estúpido afirma que três grupos de exércitos da Wehrmacht irão avançar na direção de Moscovo, Leningrado e Kiev, baseando-se na rede de agentes berlinense’.” Acontece que Dekanozov tinha razão.

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Predador sexual

Em março de 1953, quando Stalin estava a poucos dias de morrer, imobilizado em uma cama, Beria permaneceu próximo. Barrou o acesso aos poucos médicos autorizados a atender ao ditador — muitos já haviam sido torturados e mortos simplesmente por informar que o estado de saúde do comandante supremo era crítico. Era visto chorando e abraçando Stalin, sempre que ele recobrava consciência, para depois se afastar assim que voltavam os delírios.

Com a morte do ditador, teve então início uma disputa por poder entre Beria, Nikita Khrushchev, Gueorgui Malenkov e Vyacheslav Molotov. Khrushchev assumiria o poder e Beria seria preso e condenado à morte.

Durante o processo, vieram à tona acusações há muito conhecidas contra o antigo homem forte de Stalin: o de que ele tinha o hábito de atacar mulheres, que muitas vezes eram depois presas ou torturadas. O caso mais conhecido é o da atriz Tatiana Okunevskaia. Convocada para uma festa em que estaria Stalin, e que acabou não acontecendo, ela se viu atacada por Beria.

“Levantei-me para regressar a casa. Ele disse que agora podíamos beber e que, se eu me recusasse a beber um cálice, ele não me deixaria sair. Bebi de pé. Ele abraçou-me pela cintura e empurrou-me para uma porta, mas não para aquela por onde ele saíra, nem para a porta por que tínhamos entrado. Ofegando de forma nojenta ao meu ouvido, disse em voz baixa que já era tarde, que era preciso descansar um pouco e que depois me levaria a casa. E foi tudo, perdi os sentidos”.

Acordou sabendo que tinha sido estuprada. Acabaria vivendo em três diferentes gulags por seis anos.

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