• Carregando...
Hitler durante festival em Berlim, em 1941
Hitler durante festival em Berlim, em 1941: leis para coibir discurso de ódio na Alemanha não impediram a ascensão do nazismo| Foto: EFE

“ A imprensa construída pelo povo jamais será silenciada por vocês”

Johann August Wirth, Deutsche Tribüne, 1932)

Parece existir um certo consenso, entre a mídia, os formadores de opinião, e boa parte da população do mundo ocidental, da necessidade da existência de leis que regulem o chamado discurso de ódio, tanto para proteger os valores que formam as próprias bases dessa civilização quanto para proteger as minorias e parcelas mais vulneráveis da sociedade. Essa "censura do bem" já foi tentada antes. E deu muito errado.

Na Alemanha do século XIX, que ainda era uma confederação composta ainda por diversos Estados soberanos, criada após o fim do Sacro Império Romano-Germânico, por exemplo, algumas cidades independentes, como Frankfurt e Hamburgo, tinham uma imprensa relativamente livre, com leis que proibiam a interferência governamental no que era publicado. Isso aí diretamente de encontro aos Decretos de Carlsbad, promulgados em 1819 pela Assembleia Federal da Confederação, que bania uniões estudantis, regulava o papel dos professores nas universidades, impunha uma censura a toda publicação periódica com mais de 20 páginas, ameaçando punições a quem cometesse qualquer tipo de opinião que ameaçasse a honra de um dos Estados da Confederação ou a manutenção da paz na região. Essa relativa liberdade gozada por estas duas cidades acabou incomodando alguns de seus vizinhos, até que em 1866, usando o pretexto da Guerra Austro-Prussiana, a Prússia, um dos Estados que aplicavam com mais vigor essas leis repressivas, acabaram anexando Frankfurt.

Durante essa época de repressão, surgiu o fenômeno chamado de “salas de leitura” – locais onde a burguesia se reunia em segredo para ler e divulgar publicações dos mais diferentes cantos do país. As taxas de alfabetismo estavam alcançando níveis nunca antes atingidos, e o acesso à leitura por uma cada vez maior parte da população tornou esse processo de conscientização irreversível, e mudou completamente o panorama cultural e político da época.

Uma das publicações mais influentes da época, a Deutsche Tribüne, editada por Johann Georg August Wirth, chegou a ter uma barricada montada na frente de sua sede para invadir invasões da polícia. Mas acusações como “subversão” e “armar cidadãos contra a autoridade estatal” fez com que diversas páginas de suas publicações fossem simplesmente apagadas mesmo depois de impressas, deixando diversos artigos com apenas algumas linhas. Como o jornal tinha uma linha editorial claramente satírica, estes espaços em branco deixaram claro para os leitores o que estava acontecendo, e acabaram tendo justamente o efeito oposto.

Com a unificação definitiva da Alemanha e a formação do Império Alemão, o governo passou definitivamente a controlar boa parte da mídia em todo seu território, criando departamentos e delegando a burocratas o papel de controlar o que podia e o que não podia ser impresso. Diversos editores foram presos sob a alegação de publicar material que “insultava o monarca”. Teatros e salas de concerto estavam sujeitos ao controle estatal, e a polícia regulava constantemente estes lugares, na tentativa de prevenir qualquer tipo de atividade subversiva.

Lei Imperial de Imprensa

Tudo isso mudou radicalmente com a proclamação da Lei Imperial de Imprensa, em 7 de maio 1874. A pressão dos ativistas liberais fez com que, embora a Constituição alemã não fosse alterada, uma lei defendendo o direito de liberdade fosse posta em prática. Entre outras coisas, alguns de seus artigos diziam que: “A autorização de operar qualquer tipo de atividade relacionada à imprensa ou quaisquer meios independentes de publicar e distribuir materiais impressos não poderá ser revogada, nem por meios administrativos nem por judiciais.”

Ainda assim, o governo de Bismarck reteve o direito de processar editores e responsáveis por materiais que fossem considerados subversivos ou cometessem o crime de “lesa-majestade”. Em 1912 diversos centros de controle foram criados nas grandes cidades, com o propósito de controlar o que era publicado em todo tipo de atividade artística ou jornalística.

Com o advento da Primeira Guerra a situação só piorou, e os militares assumiram o comando do controle de mídia. O governo mobilizou 57 comandantes militares, com controle sob as policiais locais, apenas para executar essa função. Berlim contava com 11 censores somente para fiscalizar peças musicais e teatrais; os manuscritos de tudo que seria encenado tinham que ser enviados com duas semanas de antecedência, e muitas vezes eram devolvidos com alterações feitas pelos burocratas, e um policial que, segundo um relato da época, era “o espectador mais atento do recinto”, fiscalizava se essas alterações estavam sendo seguidas à risca. Já em relação à mídia impressa, alguns dos argumentos variavam desde ameaças à soberania nacional, associações com países inimigos, ou simplesmente “material inapropriado” ou que o artigo era uma “perda de tempo”.

A derrota alemã na I Guerra fez com que o imperador Wilhelm perdesse o apoio tanto dos militares quanto do povo, o que provocou a queda da monarquia e a fundação da chamada República de Weimar. Com a eleição de Friedrich Ebert como presidente da recém-fundada república, uma nova constituição foi elaborada, que tinha entre seus artigos a garantia de liberdade de expressão, o direito à liberdade de reunião e manifestação, e a liberdade de culto, abolindo qualquer tipo de religião nacional. Os direitos de cada indivíduo passaram a ser invioláveis, assim como a privacidade de qualquer tipo de correio ou ligação telefônica. O artigo 118 dizia especificamente: “os alemães têm direito à liberdade de expressão, seja na palavra escrita, impressa, e na divulgação de imagens. (...) A censura está proibida”.

A indústria cinematográfica, no entanto, ainda era submetida a um grande escrutínio, especialmente pelo temor das autoridades no que dizia respeito a conteúdos pornográficos ou considerados “indecentes”. A liberdade religiosa de todos os alemães também era protegida, assim como sua prática, e qualquer cidadão, independentemente de sua origem ou afiliação, tinha direito a ocupar um cargo público. A comunidade judaica alemã era talvez uma das maiores da Europa da época – senão a maior – e sua influência, tanto no meio artístico e científico quando no político era cada vez maior.

A ascensão do Der Stürmer

Diversas leis visando combater o discurso de ódio foram introduzidas nessa época. Durante a década de 1920, diversos militantes do recém-surgido movimento Nacional Socialista, como Joseph Goebbels, Theodor Fritsch e Julius Streicher foram processados por antissemitismo. Streicher era fundador e editor do jornal Der Stürmer, que com sua incessante e vil propaganda antissemita se tornou vital na futura implementação do futuro governo nazista, no qual viria a ter um papel de grande importância (e pelo qual seria executado depois dos julgamentos de Nuremberg).

À época, no entanto, Streicher foi preso duas vezes e teve seu jornal confiscado, e seus editores processados criminalmente, por pelo menos 37 vezes. Mas a cada prisão sua popularidade parecia aumentar entre essa crescente parcela da população alemã que se identificava com o discurso demagógico, nacionalista e racista dos nacionais-socialistas. Os tribunais acabaram por se tornar uma espécie de palanque para Streicher e seus discursos racistas. O Der Stürmer – que não atacava só os judeus, como também católicos, comunistas e monarquistas – acabaria por se tornar um sucesso tão grande que transformou Streicher num milionário, e tinha uma circulação imensa não só dentro do próprio território alemão, como em comunidades de imigrantes ao redor do mundo – inclusive no Brasil.

Com o surgimento e a popularização do rádio na década de 1920, os políticos e burocratas perceberam a influência que esta nova mídia teria perante a opinião pública. O país vivia uma crise terrível depois da I Guerra e a crescente impopularidade do governo da República de Weimar criou um cenário político fervilhante, com o surgimento de diversas facções políticas, entre os quais comunistas e nazistas.

Hans Bredow, considerado o “pai da difusão alemã”, que deixou de ser Secretário de Estado para Telecomunicações para assumir o cargo de diretor da recém-criada Corporação Nacional de Radiodifusão, decidiu implementar uma série de regras que controlariam o que poderia ir ao ar. Para ele, a mídia, especialmente o rádio, devia se focar em conteúdo educativo e em entretenimento, e não em notícias políticas, para não exacerbar o clima político cada vez mais conflituoso que tomava conta do país. Em 1926 ele implementou reformas que permitiam ao governo controlar diretamente tudo que ia ao ar pelas emissoras de rádio. Na cabeça de Bredow, isso impediria que a República de Weimar ruísse. Ledo engano.

Tomada do poder

Apesar de seus méritos, a constituição de República de Weimar tinha muitas falhas, que acabaram por causar sua derrocada. O historiador e jornalista William L. Shirer, que cobriu a invasão da Alemanha pelos Aliados, a descreveu como: “no papel, um dos documentos mais liberais e democráticos já vistos no século XX”. Mas tanto ela como o governo de Weimar tinham, no fundo, problemas que acabaram por permitir que seus rivais a usassem para tomar o poder.

Ela permitia que o presidente da República demitisse o primeiro-ministro sem consultar o Parlamento, escolhesse outro primeiro-ministro sem consultar ninguém, transformando-o basicamente numa nova forma de Imperador. Além disso, ela tinha o infame artigo 48, decretasse determinadas “medidas de emergência” que davam ao governo o poder de revogar diversos outros artigos da mesma Constituição – entre eles, todos os que garantiam as liberdades individuais, religiosas e de expressão.

O país estava fragmentado politicamente, com pelo menos 40 partidos diferentes representados no Parlamento. Ao contrário do que se esperava, as leis de discurso de ódio não conseguiram impedir o crescimento desse ódio e ressentimento por parte da população média alemã. Pelo contrário, cada vez mais um bode expiatório era necessário, e, como foi costumeiro ao longo de toda a história europeia, os judeus foram eleitos.

Com seus discursos populista e nacionalista, Adolf Hitler, que tinha acabado de se tornar líder do Partido Nacional Socialista, que conseguiu conquistar uma maioria sobre essa miríade de partidos, e acabou se tornando primeiro-ministro. Em 1933, um incêndio no prédio do Reichstag, sede do Parlamento, foi a desculpa que Hitler precisava para apelar ao artigo 48 e revogar boa parte das liberdades garantidas pela Constituição de Weimar ao povo alemão.

Diversos jornalistas, inclusive muitos que trabalhavam para as empresas do governo, foram presos. Hans Bredow, provavelmente arrependido de sua ingenuidade ao achar que restringir a mídia poderia ser uma maneira de impedir a ascensão de regimes autoritários, viu o que a Alemanha estava se tornando e enviou um telegrama tentando intervir por seus colegas e tentando manter algum tipo de liberdade de expressão; acabou ele próprio sendo preso, acusado de corrupção.

E foi exatamente o que os nazistas fizeram: se aproveitaram das leis decretadas nos últimos anos da República de Weimar, que tinham como meta excluir a política da mídia, e a utilizaram à sua maneira: permitindo apenas opiniões políticas que concordassem com as suas. Um dia antes da morte do presidente Hindenburg – que, velho e doente, já praticamente não tinha qualquer influência no governo, Hitler promulgou uma lei que revogava o artigo da Constituição que garantia que “os direitos do Presidente devem permanecer intactos”, e assumiu o cargo, sem qualquer oposição por parte do Parlamento.

O que aconteceu depois disso, todos sabem. E, ainda assim, todas as leis que tentaram impedir discursos de ódio, e de prisões de quem era condenado por isso, não foram capazes de evitar que o regime mais perverso de todos os tempos assumisse o poder e fizesse o que fez. Até que ponto proibir o discurso de ódio serve para banir o ódio, ou apenas para transformar quem propaga esse ódio em uma espécie de mártir para seus seguidores?  Não pode ser melhor deixar a pessoa que defende determinadas ideias mostrar quem é de verdade?  Devemos tolerar os intolerantes? É uma discussão aparentemente insolúvel.

Pós-Guerra

Depois da derrota alemã na II Guerra, Hans Bredow recebeu alguns cargos políticos durante o governo dos Aliados, e acabou participando da reestruturação da rede de telecomunicações da Alemanha. Alemanha, hoje em dia, é um dos países que tem uma das leis mais rigorosas no que diz respeito ao discurso de ódio; até hoje a exposição pública da suástica é banida, e tem leis severas contra negacionistas do Holocausto – mas ainda assim está presenciando um aumento no número de militantes neonazistas e vendo partidos extremistas conquistarem votações expressivas.

Uma característica que une todos os regimes opressivos é o fato de silenciarem todas opiniões contrárias. Já uma das características da liberdade de expressão é a capacidade de tolerar opiniões diametralmente opostas às suas. É uma discussão aparentemente interminável, e que desperta ódios em todos os espectros políticos e ideológicos. Mas não podemos nos esquecer de como a legislação que visava proteger contra discursos de ódio acabou sendo usada justamente para implementar esse ódio da maneira mais vil na história da humanidade.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]