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Em “Sincerely Louis CK”, o comediante faz da filosofia popular escada para um humor assumidamente perverso.
Em “Sincerely Louis CK”, o comediante faz da filosofia popular escada para um humor assumidamente perverso.| Foto: Reprodução

Depois de um hiato de dois anos, o comediante Louis CK voltou aos palcos com o espetáculo “Sincerely Louis CK”. O monólogo está disponível naquela que parece ser a única plataforma de streaming disposta a produzir e distribuir algo de Louis CK: seu próprio site. Para quem não lembra, o comediante esteve envolvido no escândalo #MeToo, quando dezenas de celebridades tiveram seus comportamentos sexuais inapropriados expostos ao mundo.

Usando o figurino despojado de sempre e com aquele sorriso permanente de quem finge estar bastante constrangido pelo que acabou de dizer, Louis CK exibe no espetáculo todo o cansaço provocado pela batalha entre o humor socialmente engajado e o humor politicamente incorreto.

“Sincerely Louis CK” é, de certa forma, uma antítese do espetáculo “23 Hours to Kill”, de Jerry Seinfeld, lançado há pouco pela Netflix. E ilustra bem as duas visões de mundo predominantes no universo do humor, que nas últimas décadas vêm dominando o debate público, se passando às vezes por análise política e às vezes por filosofia pura. Enquanto Seinfeld tenta observar a trivialidade do mundo e dar a ela algum sentido engraçado, Louis CK quer que você sinta raiva de tudo o que ele está dizendo. E que essa mesma raiva dê origem a uma gargalhada.

E o pior é que, muitas vezes ao longo do espetáculo, ele consegue.

Filosofia popular com gargalhada

Curiosa essa aproximação entre a comédia stand-up e a filosofia popular. Logo no começo de “Sincerely Louis CK”, por exemplo, o humorista começa com aquele papo cansativo de que só o ateísmo faz sentido e há um quê de ridículo (e, portanto, cômico) em se acreditar em Deus. Nada que um Ricky Gervais não tenha dito com mais graça e escândalo há bons dez anos.

O detalhe é que ele faz piada simplesmente mencionando a famosa “Aposta de Pascal”, aquela que, resumidamente, diz que, se você acreditar em Deus e estiver certo, terá um ganho infinito. Mas se não acreditar em Deus (for ateu) e estiver errado, terá uma perda infinita. Sem conhecer a filosofia e contando com a ajuda das caras e bocas de Louis CK, a plateia ri.

Não é a única vez em “Sincerely” que Louis CK usa da filosofia popular para provocar risos na plateia. Adiante, já na parte mais pesada do espetáculo, o comediante ainda faz referências a enigmas morais como o Dilema do Bonde e, já no final, à velha e desgastada ideia da troca de corpos para salientar certo aspecto cômico da forma como vemos este ou aquele personagem.

A perda da ingenuidade

Louis CK é um artista progressista. E não dos mais sutis. Ele é daqueles capazes de comparar Donald Trump a Hitler, por exemplo. A priori, não há nada de mau nisso. A maioria dos artistas, sobretudo os de stand-up, são assumidamente progressistas. O problema é que o discurso progressista de Louis CK se viu, de repente, tragado para dentro de um redemoinho puritano/feminista que quase acabou com sua carreira.

Para quem não se lembra, no fim de 2017 Louis CK foi acusado por cinco mulheres de “faltar com o decoro” em suas relações íntimas. Era mais um episódio da série de horror no mundo real intitulada #MeToo, cujo episódio final culminou com a prisão do megaprodutor Harvey Weinstein. As consequências para Louis CK foram amenas. Além da humilhação pública, ele teve um filme cancelado.

Em “Sincerely”, portanto, esperava-se que Louis CK viesse a público falar da experiência pela qual passou, assim como fez seu colega Aziz Ansari. A ideia por trás disso é criar uma história de redenção. E, se calhar, fazer rir.

É o que Louis CK consegue de forma surpreendente em “Sincerely”. Já quase no fim do espetáculo, ele decide falar sobre o assunto. E quem espera um discurso emasculado como o de Ansari leva um baita susto ao ouvir do humorista um “conselho-piada” que tende mais ao estoicismo. Ele aconselha qualquer pessoa com alguma parafilia a, antes de qualquer coisa, pedir autorização à mulher. E, se ela der, mesmo assim não fazer absolutamente nada do que pretendia.

Para o otimista, o conselho-piada é o reconhecimento, por parte de um hedonista, de que há valor no sacrifício. Conter um impulso sexual num dia a fim de ter paz por toda a vida. Já para o pessimista ele é apenas um comentário que expressa a impossibilidade de um ser humano confiar no outro. O que, aliás, combina com o tom geral de “Sincerely”.

Perversidade

“Sincerely” garante boas gargalhadas com piadas agressivas, elaboradas com cuidado para semiofender todas os oprimidos possíveis. Louis CK, por exemplo, ri da aceitação dos homossexuais pela sociedade hoje em dia – porque a “transgressão” era mais gostosa quando proibida, diz ele. Depois, brinca com o Holocausto, destacando o absurdo da cobrança de ingresso para aqueles que querem visitar Auschwitz. E assim por diante.

Em determinado instante, contudo, Louis CK confessa que, desde criança, uma de suas grandes motivações para fazer as pessoas rirem é gostar de deixá-las com raiva. Ou seja, para ele, esse humor intencionalmente agressivo e que vê o mundo sob uma ótica impiedosa é uma via de expressão da própria perversidade.

Há, de fato, uma relação sadomasoquista no humor agressivo de Louis CK, que bebe na fonte de outros “grandes perversos”, entre eles George Carlin. O espectador tem de estar disposto a ser insultado e humilhado e a ver expostas suas falhas de caráter mais inconfessáveis em troca de uma risada e da sensação de que seus defeitos, no final das contas, são normais. O comediante, por sua vez, tem que estar disposto a insultar, humilhar e exibir suas falhas de caráter em troca de aplausos, dinheiro e, com alguma sorte, aceitação.

Em “Sincerely”, é impossível não sentir, logo no início, que Louis CK está de fato propondo essa troca. E, se você ri, é porque não vê nenhum problema em dar a ele toda essa raiva (que, no fundo, não tem sentido) para ser recompensado com risadas de assustar o gato do vizinho.

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