Ícones antigos retratando a Natividade de Cristo| Foto: Wikimedia Commons
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Quais são as figuras indispensáveis no presépio? Certo, tirando o próprio Jesus, provavelmente responderíamos Maria e José – é assim, pelo menos, que boa parte dos conjuntos de peças é vendida. Magos, animais e pastores seriam participações especiais, não exatamente indispensáveis. No entanto, a história da representação da natividade de Jesus na arte cristã mostra uma perspectiva diferente.

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Nas representações mais antigas da cena, José, por exemplo, é uma ilustre ausência. Uma pintura nas Catacumbas de Priscila, em Roma, e um relevo em um sarcófago de Milão, ambos do século III, trazem protagonistas improváveis: na pintura, o destaque é a figura de Balaão, um profeta do Antigo Testamento; no relevo, os únicos a ladearem a manjedoura com o Menino são o boi e o burro.

Balaão aparece apontando para uma estrela, ao lado de Jesus, que está no colo de Maria – trata-se da mais antiga representação da Virgem que conhecemos. A referência é ao livro de Números 24:17: “Vê-lo-ei, mas não agora, contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela procederá de Jacó e um cetro subirá de Israel”. A tradição cristã identificou essa estrela vislumbrada por Balaão com aquela que guiou os magos até Belém. De fato, em outra pintura localizada nas mesmas catacumbas, os personagens em destaque são os três magos, trazendo presentes a Jesus, novamente representado no colo da mãe.

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Já o boi e o burro, personagens com presença constante na representação do nascimento de Jesus ao longo dos séculos, remetem ao terceiro versículo do livro de Isaías: “O boi conhece o seu possuidor, e o jumento a manjedoura do seu dono; mas Israel não tem conhecimento, o meu povo não entende”. A cena testemunha, assim, que mesmo que o povo de Israel não tenha compreendido a ação salvadora de Deus ao longo de sua história, e não tenha reconhecido no Menino o Messias, o boi e o burro, sim, reconhecem-no.

Outro objetivo 

Já se vê por esses exemplos da arte cristã mais antiga que o seu intuito não era o de representar uma cena do ponto de vista histórico, como se se quisesse fotografar a noite em que Maria deu à luz Jesus em um estábulo de Belém, como narra o Evangelho de Lucas. Os dois animais não pertencem à cena como figurantes óbvios para um curral, mas como referência à profecia veterotestamentária, que, na interpretação dos Pais da Igreja, representava no burro e no boi o povo judeu e o povo gentio, respectivamente.

“O ícone não é um retrato, mas um protótipo da futura humanidade transfigurada”, afirmou o filósofo russo Ievguêni Trubetskói. Ao longo do primeiro milênio do cristianismo, a representação artística era vista como prolongamento do mistério celebrado na liturgia, e por isso compartilhava de sua linguagem e de sua intenção. Do mesmo modo como na liturgia não há lugar para a simulação, na iconografia não havia qualquer pretensão de ilusão a respeito de uma representação naturalista dos mistérios da vida de Cristo. Seu intuito estava menos em mover os sentimentos – como quando, com ternura, admiramos um presépio delicado – e mais em comunicar o dogma da fé.

E isso não apenas no Oriente, como comumente se pensa, mas nas mais variadas tradições ocidentais e orientais, dos mosteiros celtas às tapeçarias etíopes, das capelas catalãs aos santuários constantinopolitanos, das basílicas romanas aos manuscritos persas. O exemplo mais significativo desse outro modo de enxergar as possibilidades da arte – que, no Ocidente, ficaria obscurecido do renascimento em diante – é a forma de representar o próprio Menino.

Teologia em hiperlink 

Na iconografia, nenhum elemento está fechado em si mesmo: as imagens formam uma grande teia de conexões. Desde aquele relevo em que aparece entre o boi e o burro, no século III, Jesus está “envolto em faixas”, como diz o evangelho (Lc 2:12), mas o interessante é que a cena não tem qualquer pretensão de nos enternecer com o retrato de um bebê: pelo contrário, o Menino é representado estático, rijo. Na manjedoura, não se vê o aconchego da palha: ela também é reta, firme – e, de fato, a partir do século V, será representada como uma pequena construção de tijolos.

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Os traços evocam outra cena, na outra extremidade do fio da vida terrena de Jesus: seu corpo morto, envolto no sudário e posto no túmulo. “Estamos longe da idílica imagem de uma criancinha. Esse já é o homem das dores de que fala Isaías (53:3)”, comentou o teólogo russo Pável Evdokímov. Maria gerou um filho que descerá até a escuridão da morte – já representada na gruta – para devolver a vida à humanidade. No esquema que se fixará para os ícones da natividade por volta do século V, Maria parece preocupada, pensativa – muitas vezes, sequer olha para o filho. Há todo um peso na cena.

Ao mesmo tempo, a gruta, a manjedoura-túmulo e as faixas já remetem ao fato de que o “sinal” da natividade será também o da ressurreição: ao entrarem no túmulo, escavado na rocha, discípulas e discípulos de Jesus encontrarão as faixas – diante delas, o discípulo que Jesus amava “viu e creu” (Jo 20:8). Ao mesmo tempo, os elementos remetem ao altar em que se celebra a liturgia, e em que Jesus se dá como alimento. Por isso, em muitas dessas representações, o boi e o burro parecem de fato se alimentar da manjedoura. Assim, como escreveu Cláudio Pastro, “o feno do cocho, o pão da ceia e a vítima da cruz se fundem, dando vida a um sinal de comovente profundidade teológica”.

Uma beleza diferente 

Evdokímov dizia que o ícone “é dogmático e, por isso, não é belo como obra de arte, mas como a própria verdade”; assim, “jamais poderá ser gracioso, mas belo, exigindo uma maturidade espiritual para ser reconhecido”. No ícone da natividade, por exemplo, toda a construção da cena deseja proclamar o mistério que a fé reconhece no nascimento de Jesus: de que o Verbo se fez carne (Jo 1:14), de que o Filho de Deus assumiu a natureza humana e, assim, inaugurou a obra da salvação.

Dessa maneira, José aparece refletindo – e, muitas vezes, tentado por satanás – sobre esse nascimento misterioso, enquanto ao lado representam-se doulas que dão banho no Menino: as cenas confessam a fé na divindade e na humanidade de Jesus, respectivamente. Os anjos aparecem anunciando aos pastores que o Salvador enfim nasceu – e dissuadindo os magos de subirem a montanha, porque já está claro que não somos nós que encontraremos Deus em um caminho de ascensão, mas é Ele que desceu e veio ao nosso encontro.

Esses elementos foram mantidos na representação da natividade até o século XV, inclusive no Ocidente. É nessa época que começa a prevalecer outro esquema figurativo, com Maria e José de joelhos diante do Menino, e com uma atmosfera que visa mais à comoção do que à comunicação da fé. Mas, na mentalidade da arte da tradição cristã, a representação da natividade teria falhado em seu propósito se não mostrasse que o Menino na manjedoura é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que é o Filho enviado ao mundo como Salvador e que tem em seu horizonte a cruz e a ressurreição. Na tradição iconográfica, tudo isso está presente.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]