No Carnaval deste ano, Ninguém morreu. Ninguém atendia pelo nome de Deiglesson Santos Santiago. Como os sobrenomes dos brasileiros que não descendem de imigrantes são todos iguais, resta inventar um nome escalafobético para se distinguir da multidão de homônimos anônimos: Deiglesson. Mas são tantos Fulanisson Silva ou Santos que, morrendo um ou dois no Carnaval, ainda assim se diz que Ninguém morreu.
Os amigos de Ninguém bem tentaram fazer a imprensa acreditar que o homicídio tinha algo de anormal. Contaram que Deiglesson tinha três empregos: um formal, com CLT, e dois informais, de entregador de pizza e mototáxi. Morrer por causa de envolvimento com o tráfico é normalidade em nossas periferias. Daí os amigos insistirem que era um trabalhador com três empregos, que ainda sustentava mulher e enteada.
Além disso, para mostrar que Deiglesson estava na festa apenas se divertindo, mostram o vídeo que Deiglesson fizera de si mesmo pulando atrás do trio elétrico. Pouco depois disso, aconteceu o fato atípico, digno de interesse público e que deve atrair a atenção do jornalista: vieram cerca de 40 homens cantando músicas de facção narcotraficante e, sedentos de sangue, espancaram Deiglesson.
Ele passou 4 dias no hospital e morreu.
Morte espantosa, sem dúvida. Mas quem é Deiglesson? Ninguém. Se fosse um político, se fosse um artista, se fosse gente bonita de classe média, Deiglesson seria Alguém e não Ninguém. Quem morreu neste carnaval? Ninguém.
Sabem disso inclusive os traficantes que o atacaram. Afinal, ano passado um trouxa resolveu atacar e socar até a morte um rapaz branco, de boas condições financeiras. O trouxa atacou Alguém, o absurdo da morte de Alguém causou impacto na imprensa, e o culpado foi descoberto. Se o trouxa não fosse trouxa, teria atacado Ninguém.
Nem mesmo o fato espantoso de uma matilha narcotraficante sair à caça assim choca. Afinal, tráfico é um problema de pobre. Pobre, se não virar mascote de militante de esquerda, é tudo Ninguém.
Um parêntese
Seria impreciso dizer que Salvador é especialmente violenta. Antes da Copa do Mundo, o estádio de futebol mais popular da cidade não tinha nem barreira física entre as torcidas. Isso é coisa impensável para São Paulo, por exemplo, mas na Bahia os estádios passaram a separar todas as torcidas nos preparativos da Copa. O folclórico anão do Bahia passava trotes na torcida rival sem que escorresse sangue.
Nas festas, porém, encontramos já desde Jorge Amado a descrição de socos aleatórios em ringues surgidos do nada. É a intrigante violência festiva da Bahia.
O turista não vê essas coisas porque há um acordo tácito entre os machões de ir brigar na atrás de blocos que só são populares entre baianos. A tradição do sopapo carnavalesco é tão arraigada na periferia soteropolitana que deu ao Brasil sua medalha de ouro olímpica no boxe. Afinal, nosso campeão começou a lutar boxe para isso. Antigamente, eles se encontravam na pipoca de Bell Marques. Pipoca é a turba de foliões não pagantes que segue o trio elétrico, amiúde separada dos pagantes por uma corda carregada por cordeiros, que também devem ser bons boxeadores festivos. (Que o leitor sulista tenha paciência, pois juro que essa conversa de pipoca baiana tem conexão com Brasília).
Quem acompanha o noticiário local viu que, nos últimos anos, a coisa tinha mudado de figura. Paradoxalmente, a violência tinha caído: os traficantes não gostavam de levar sopapo aleatório e, por meios que não chegaram à imprensa, dissuadiram os brigões. É possível que, por isso, o brigão insensato tenha mirado num branco para descarregar sua vontade de violência: um branco caminhando num bairro nobre não devia ser traficante.
Este ano, porém, por uma série de razões que inclui mudança da forma de policiamento, a violência carnavalesca em Salvador cresceu.
Onde os Ninguéns estavam
Ninguém, ou melhor, Deiglesson estava no atual point dos brigões, a pipoca de Igor Kannário, que há anos manda os pugilistas não quebrarem os isopores dos ambulantes.
Igor Kannário, vulgo Príncipe do Gueto, é um cantor de pagodão muito popular e deputado federal pelo DEM, base de ACM Neto. Há anos Igor Kannário tem um trio elétrico sem cordas bancado pela prefeitura. Ano passado, Kannário se envolveu em uma “polêmica” com a polícia baiana ao sair fantasiado de policial com uma farda exótica: nela se lia “Comando da Paz”, nome de uma facção narcotraficante da Bahia.
O próprio Kannário tem problemas com a polícia, tendo sido preso pelo menos duas vezes com posse de drogas. Este ano, a prefeitura de Salvador, que não viu nada de mais no fato de ter bancado apologia ao tráfico, repetiu a dose. Neste ano, a “polêmica” de Kannário consistiu em fazer discurso antipolícia em cima do trio e mandar a turba vaiar a polícia.
Então ficamos assim: a prefeitura de Salvador banca um homem com problemas com a polícia para ficar em cima do trio elétrico trajando nome de facção narcotraficante e fazendo discurso antipolícia. Em seguida, um “cidadão” (na verdade, um Ninguém) é atacado por uma turba cantando músicas de facção e morre.
Alguém se importa?
É claro que os bem-pensantes da Bahia já se debruçaram sobre as festas públicas bancadas pela prefeitura. As feministas criaram uma lei natimorta chamada de Antibaixaria para coibir o fomento músicas que “desvalorizam a mulher”. Mas sair fantasiado de Comando da Paz pode. E o nosso Ministério Público trabalha? Trabalha. Para transformar as crianças em veganas (como bem mostrou a Gazeta do Povo) e para tirar da rua uma escultura da cow parade de vaca fantasiada de baiana de acarajé.
Ao menos temos intelectuais preocupados com o chavismo – embora sejam do tipo que acha que Chávez se fez sem urnas nem coação.
Igor Kannário se elegeu deputado federal. Qualquer um que tenha mais do que dois neurônios sabe que as facções narcotraficantes, do mesmíssimo jeito que as milícias, têm controle territorial e formam um governo paralelo. Se todos os jornalistas sabem que o Rio das Pedras votou em Flávio Bolsonaro, os milicianos também sabem, porque isso é informação pública.
Quantos deputados e vereadores não se elegem de maneira tão suspeita quanto? O coronel branco do Brasil rural tem, nas cidades, um gêmeo: o coronel preto das favelas. Por pura sorte nossa, este Brasil tão vasto tem coronéis demais para se organizarem e tomarem o executivo ou mais da metade de um Parlamento.
Enquanto isso, Ninguém morre e só seus amigos se importam. E fazem duas denúncias à imprensa no anonimato, porque sabem que têm o que temer.
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