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Panorama da Cidade Universitária da Universidade de São Paulo (USP).
Panorama da Cidade Universitária da Universidade de São Paulo (USP).| Foto: rvcroffi/Wikimedia Commons

Resolvi ler para resenhar Universidade Pública e Democracia (Boitempo, 2020), de João Carlos Salles. É o reitor da UFBA e presidente do sindicato dos reitores de federais.

Miguel Reale, a quem aludo no título, tem uma trajetória interessante: foi o principal teórico do integralismo (o fascismo brasileiro), abandonou o totalitarismo depois de ter provado a ditadura de Vargas, e se tornou reitor da USP em dois períodos diferentes. O integralismo era fortemente católico e contava com os batinas-verdes, os padres militantes entre os quais se incluía Hélder Câmara.

Tal como João, Reale é da área de filosofia. Tal como João, é reitor. Tal como João, tem um passado de militância totalitária ligada à Igreja católica. João era ligado à AP, o braço católico da esquerda, responsável pelo primeiro atentado terrorista da última ditadura, com vítimas fatais. A AP virou APML (Ação Popular Marxista-Leninista), à qual João se orgulha de ter pertencido, e a APML acabou sendo absorvida pelo PCdoB.

Em outro texto, mostrei como o extremismo católico universitário é um elo entre a esquerda e a direita. Uma senhora integralista, militante católica, teve uma filha convertida ao comunismo assim, pelo percurso JUC (Juventude Universitária Católica) – AP (Ação Popular) – PCdoB. Chauí parece ser outra esquerdista com berço integralista.

Partindo do pressuposto de que se trata de um nicho cultural que desliza entre a esquerda e a direita sem sofrer muitas alterações, fiz uma maldade: enquanto lia Universidade Pública e Democracia, de João Carlos Salles, providenciei Reforma Universitária (Convívio, 1985), de Miguel Reale, e dava umas espiadas.

A universidade de Reale, muito resumida

O livro Reforma Universitária (Subsídios para sua implantação) é uma coletânea de pronunciamentos e artigos de Miguel Reale acerca da universidade. Defende a tríade ensino, pesquisa e extensão, como a verdadeira essência da universidade nacional brasileira.

(A extensão são os serviços prestados diretamente à sociedade, tais como o antigo Projeto Rondon ou os hospitais universitários.)

Ao cabo, essa visão foi sacramentada pela Constituição de 88, de modo que todas as federais têm, em tese, professores que são pesquisadores e que tocam projetos de extensão, mas que na prática significa que todos os professores concursados ganham como tal, mesmo que alguns mal deem aula, e estejam mais pra saci pererê com artrite do que pra tripé.

Um cacoete integralista é o anseio pela unidade orgânica, que dissolve particularismos. Reale é contra a estrutura de departamentos porque eles “deviam ser células de um organismo vivo e se tornaram secções estanques de um frio mecanismo”.

A estrutura de departamentos substituíra as cátedras com todo o apoio de Anísio Teixeira, mas para Reale tratou-se de um equivocado “transplante do modelo universitário ianque”.

Quando integralista, Reale defendia os sindicatos como fonte de ética no país. Em 85, o coração da sociedade deixa de ser o Estado corporativo (composto por sindicatos pelegos) e passa a ser a Universidade, que deve como que planificar a cultura, e dar identidade nacional ao país:

“O dia em que a Universidade for mais que um encontro ocasional de acadêmicos ou um conglomerado de corpos administrativos; o dia em que a Universidade tiver ciência e consciência que lhe cumpre agir como centro autônomo de irradiação de ideias e ideais; o dia em que prevalecerem o espírito e o ordenamento universitários compatíveis com as exigências seletivas da cultura, a Universidade se projetará no cenário nacional.

E o que se lhe deve dar ser-lhe-á dado, pelos particulares e pelo Estado, não como dádiva ou favor, mas como justiça feita ao que há de elevado na paisagem moral do País, e ainda pela convicção de que ir ao encontro de seus planos de ação é atender às exigências fundamentais da comunidade. Somente assim poderemos adquirir consciência da identidade de nosso ser nacional.”

Há uma mistura de misticismo com elitismo: uma elite tem uma conexão mística com o país, e forma-o de cima para baixo. Sem meias palavras, diz que “toda Universidade pressupõe um ideal social e devemos ter a coragem de defini-lo. […] Trata-se […] de traduzir o espírito com que a elite se propõe a ordenar democraticamente o País.”

Essa influência dar-se-ia na cultura como um todo, “num sistema planejado de atividades artísticas ou literárias, com espetáculos de música, crítica, poesia etc.”; quanto aos valores, a universidade tem a “tarefa cultural de integração do indivíduo na comunidade, em seus valores coletivos, mas de tal forma que cada membro da família universitária não seja um destinatário, mas um protagonista do processo dos sentimentos e das ideias.”

Trocando em miúdos, uma vez que alguém entra numa universidade, torna-se membro de uma elite espiritual comunitária que deve ser uma espécie de Rainha Sol irradiando a sociedade com os seus valores.

De minha parte, lendo essas coisas eu penso que, se houve um período áureo da ciência e técnica brasileira, foi anterior à fusão de institutos em universidades. Santos Dumont era autodidata. Os sanitaristas do Império não tinham universidade. Rondon era um gênio formado pelo Exército. Importantíssima para o enriquecimento do país, a Embrapa nunca foi universidade.

Quanto às artes, Cartola é um gênio pedreiro que vale mais do que mil doutores em letras. Na alta cultura, Carlos Gomes e Villa-Lobos tinham aulas particulares. Este último tirava a inspiração de viagens, e até da Expedição Rondon, pois incluiu melodias indígenas gravadas por Roquette-Pinto. Muita cultura, sem universidade. Um amigo diz que o adjetivo “universitário” está para “pensamento” como está para “sertanejo”. Estraga. Dado o estado de coisas, tendo a concordar com ele.

Voltemos a Reale. Escaldado pelo varguismo, em 85 estava muito longe de idealizar sindicato. Ele traçava uma crítica pertinente do sistema de departamentos; dizia que surgiam “oligarquias departamentais, às vezes de caráter personalista, outras de cunho ideológico”, porque a supressão das cátedras gerou um poder sem responsabilidade.

Dentre as oligarquias ideológicas, havia grupos classistas que proclamavam ser “só a luta de classes ‘a mola autêntica’ da cultura.” Uma vez estabelecido esse estado de coisas, os sindicalistas vão para os conselhos, e o resultado é este: “Temos, assim, comunidades culturais aparentes, porque fundadas sobre a desconfiança recíproca, na medida de competições corporativas, que lá fora, no meio do corpo discente, ressoam como conflitos sindicais.”

A autonomia universitária defendida por ele se dá perante governos, partidos e sindicatos. Reale rechaça a oposição entre uma universidade útil ao mercado e uma universidade voltada ao conhecimento, e acha uma ótima ideia que as empresas ajudem no financiamento da universidade.

Sua cosmovisão foi transcrita no chão da USP, em círculo, na Praça do Relógio a seu mando: “No Universo da Cultura o centro está em toda parte.”

Segundo ele, a despeito de toda a sua concepção que merece ser chamada de elitista, a frase ilustra que “devemos, ainda, lutar no Brasil contra resistências aristocráticas que privilegiam certos campos do saber em detrimento de outros.” Fica portanto a igualdade interna à universidade, sendo mantida entretanto a sua superioridade perante o resto da sociedade.

Universidade mística

Vamos enfim ao livro de João Carlos Salles (Boitempo, 2020). Um verdadeiro esquerdista de matriz soviética é um materialista, interessado no que a universidade pode produzir.

João, tal qual Reale e os fascistas, prima por uma concepção espiritualística. E isso a tal ponto que chega a fazer da universidade um objeto místico de adoração: “Querem nos roubar o sopro, o brilho, a aura. Ela parece trincada. Mas, não, ela se recompõe a cada instante. Olhem à volta. Sintam! Talvez não percebamos logo, mas, se olharmos com atenção, nós que amamos a UFBA perceberemos com muita clareza um brilho, uma natural iridescência à nossa volta”.

Salles continua: “[…] Imanta-se este salão da sabedoria das comunidades tradicionais e de grandes conferencistas internacionais. Ele guarda a mística dos movimentos sociais e o brilho de medalhas de ouro […] Quem tem a universidade pública no coração tudo pode.”

Repitamos: o marxismo era criticado pelos fascistas por ser materialista. O planejamento comunista era focado no econômico, e, se bem que o esforço de destruir particularismos fosse voltado a fomentar o estatismo, isso era desprovido de significado espiritual ou místico.

Na retórica fascista, a unidade orgânica, em vez de mecânica, é um passo para fundir todos no mesmo espírito. Com João, vemos a UFBa descrita assim: “A UFBA tem aura. É vida. Não tem a organização e a fixidez dos cristais nem é volátil como a fumaça. Entre o cristal e a fumaça, é organismo – e, mais que organismo, é espírito.”

Neste quesito, João está mais próximo do fascismo do que Reale! O uspiano não galgou os píncaros do misticismo.

No mais, até a imagem do círculo se repete. Segundo ele, a aura “sagrada e laica, terrena e divina” da UFBa “mostra-se semelhante a uma esfera infinita, estando cada um de nós, em todo canto, estando em toda parte seu centro, e a circunferência em nenhuma.”

É possível que a JUC tenha incorporado à política algum misticismo grego antigo da esfera. Se eu descobrir, conto para vocês.

Mas é possível que ele seja mais um esquerdista com berço integralista, e tenha crescido ouvindo a história de Miguel de Unamuno em sua versão mais elogiosa, reproduzida no livro.

Miguel de Unamuno, tal como os integralistas, era um defensor de golpe fascista de Estado. Tal como os integralistas, Unamuno teve o desprazer de ver o seu sonho realizado, e se tornou um dissidente. Tal como os integralistas, passou a rechaçar o ditador. Daí a ter sua história recontada para se afastar dele, é um pulo.

O caso exemplar contado por João é o de quando Unamuno, reitor, teria bradado às hostes fascistas: “Vencereis, mas não convencereis!”, mostrando assim que a inteligência está muito acima da força bruta que supostamente caracterizaria os fascistas. A história é tão controvertida que os espanhóis fizeram um artigo na Wikipédia só sobre o assunto.

Uma gota de racionalidade

Em meio a tamanho misticismo, há uma gota de racionalidade no texto que versa sobre lógica. Enfim aparecem leves pitadas de esquerdismo, pois os marxistas se pretenderam herdeiros da racionalidade iluminista, e as ditas “condições de diálogo” são coisa de Habermas, que é da Nova Esquerda.

A racionalidade é posta a serviço de uma finalidade nobre: eliminar as falácias dos pós-modernos. Mas, nessa curiosa salada mista, o percurso consiste em usar o jargão de Habermas para burocratizar o diálogo, e em seguida acusar (sem citar) os pós-modernos de falaciosos.

Destaquemos que o livro tem textos de várias épocas, todos contra o governo, inclusive o de Lula. Um deles era da época do Reuni, o programa que condicionou um substancial aumento de verbas a um grande aumento de vagas e a cotas raciais.

(Na UFBa, como mostrei alhures, isso causou uma evasão elevadíssima!)

Daí resulta que muita gente hoje entra na UFBa sem escolarização satisfatória. Em função desse cenário, o reitor fala no “estabelecimento de uma comunicação legítima e desimpedida” para favorecer um “espírito democrático”.

Basta falar livremente? Não: “a dificuldade não começa com a argumentação em si, mas surge primeiro no direito mesmo de argumentar, na demarcação inicial de quem tem direito à cidadania”. Sem passar pelos trâmites burocráticos, nada de direito à argumentação.

Lendo isso, eu penso que argumentação é uma coisa essencial ao animal social que somos. Pescadores analfabetos argumentam sobre o seu trabalho, decidem horários, linhas, estratégias. A argumentação é mais velha que a filosofia. Também existe independentemente do regime político; as pessoas argumentam em monarquias e em aldeias.

Mas, para ele, “argumentar bem, segundo padrões elevados de justificação racional, é algo que se aprende concretamente no interior de cada disciplina científica”.

Quem não argumentar direito e usar falácias, “agride o contexto da argumentação, dificultando as condições para um processo coletivo e democrático de formação de opiniões”.

Como entrou muita gente despreparada na universidade, é preciso criar essa burocracia da argumentação – mas nem assim tem jeito!: “A universidade atual começa sua ação constitutiva partido de distâncias bem maiores, algumas das quais talvez intransponíveis.”

E falácia é problema de pobre: “A ausência de letramento […] faz incorrer em falácias de ambiguidade; uma educação científica insipiente […] torna falácias quase óbvias de falsa causa”.

Falácia de ambiguidade é quando se usa um termo com mais de um significado como se tivesse um só. Isso, pra mim, é típico mal de letrado, que vive falando de liberdade e democracia de maneira ambígua para tirar conclusões inaceitáveis.

Falsa causa é quando se toma uma conjunção de eventos por relação causal. Isso pobre faz, mas mestre mesmo é quem atribui todo evento maligno ao capitalismo e a opressões estruturais.

Ao cabo, há uma crítica discreta ao lugar de fala: “é preciso evitar a saída fácil de matar o debate em seu início, separando quem está autorizado a tratar de qualquer questão – o que assume a forma de ad hominem, por um lado, e de um ad verecudiam (apelo à autoridade), por outro.”

No “ad hominem […] circunstancial, uma suspeita é lançada por causa do interesse de corporação, classe, raça”; e o apelo à autoridade “vemos na autorização plena da fala daqueles que, mais que opinião, pretendem ser os donos antigos ou os novos proprietários do espaço público.”

Mas e os argumentos dele?

Nas 159 páginas, podemos descobrir que ele é contra o Future-se por razões jurídicas, morais e ideológicas; que é contra “as elites” (nunca descritas de maneira que possamos identificar); que acredita que parte da universidade é uma elite espiritual do país; que (ao contrário de Reale) é radicalmente contra a aproximação entre universidade e mercado; que a cobrança de mensalidades é um absurdo; que a “paciência do conceito” (sic), que ele nunca explica o que é, é uma coisa chique.

Mas ele não argumenta! Sabemos que é contra apenas por causa do repúdio enfático. Um exemplo: “em feição mais refinada, mas não menos agressiva, os pontos citados têm comparecido em editoriais dos meios de comunicação – com frequência, ao lado da recorrente defesa do fim da gratuidade”.

Editorial de jornal argumentativo é agressão! De resto, tudo fica como está, em termos administrativos. A tríade é indiscutível, na estrutura não se fala.

As mudanças propostas são: garantia legal de eleição de reitor e expansão indefinida (o que na prática significa aumento de orçamento). Muito dogma de aceitação religiosa, muita despreocupação com o futuro dos estudantes.

É tudo muito difuso. Não fica claro para que, exatamente, serve a Universidade, além de ser uma sede espiritual e mística da Inteligência.

Eu chutaria que ele pretende mais ou menos o mesmo que Reale, uma Rainha Sol a irradiar a sociedade, já que para João “não se trata de uma instituição qualquer, não podendo ser definida apenas pela produção de conhecimento.”

Mas creio menos na conversão de João à democracia do que na de Reale. Eu tenho certeza de que Reale, vítima da ditadura varguista, não admitiria que alunos fossem intimidados fisicamente por razões políticas.

Quando a questão da liberdade de expressão foi posta, João já teve oportunidade de demonstrar seu procedimento relativo a expressões não passam pela sua burocracia da fala.

Fica certo somente que há inimigos. A universidade tem ameaças internas e externas, e precisa de uma luta incessante dos bons para combater os maus. Uma cosmovisão dessas é um castigo!

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