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“Oi, meus machos lindos!”, diz a personagem Juju antes de apresentar seu colega de cena, o boneco Senhor Topzeirinho. Os dois são os protagonistas de um vídeo do grupo de humor Porta dos Fundos lançado no último sábado (8), para marcar o Dia Internacional da Mulher.
O roteiro brinca com a linguagem dos programas infantis de tevê para “conscientizar” os homens, tratados no esquete como crianças, sobre o feminicídio e outras formas de agressão contra suas companheiras. Qualidades cômicas (ou a falta delas) à parte, o material chama a atenção por uma informação que não consta de sua descrição no YouTube: é fruto de uma parceria entre os comediantes e o Supremo Tribunal Federal.
No entanto, ainda no sábado, o STF explicou o projeto em seu site oficial. Trata-se de uma campanha para “ampliar o acesso à informação sobre direitos femininos” — e produzida sem “o pagamento de cachês nem qualquer outro tipo de contrapartida financeira”. Segundo o comunicado, os dois vídeos (um segundo conteúdo foi lançado nesta segunda-feira, 10) traduzem para o grande público decisões anteriores da Corte que protegeram as mulheres.
“As decisões citadas nos vídeos já estão mudando a vida de muitas mulheres. É importante comunicar esses entendimentos assim, de maneira ilustrativa e popular”, afirmou o ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo.
Desde sua posse no cargo, em setembro de 2023, Barroso faz questão de enfatizar que um de seus objetivos é “aproximar o STF da sociedade”. Para isso, ele defendeu um “Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples” e sugeriu a criação de parcerias com universidades, veículos de mídia e até influenciadores digitais.
Mas essa estratégia vem sendo cada vez mais criticada por juristas, políticos e grupos preocupados com a extrapolação dos limites institucionais da mais alta corte do país. Afinal, é função do Supremo promover esse tipo de campanha? Ainda mais em parceria com um grupo como o Porta dos Fundos, cujos integrantes têm posicionamentos políticos progressistas claramente identificáveis e já tiveram causas julgadas pelo STF?
"Desejo narcísico"
Para o jurista André Marsiglia, professor de Direito Constitucional e especialista em liberdade de expressão, a tarefa de conscientizar o cidadão é do Executivo e do Legislativo. “O STF é, ou deveria ser, apenas uma Corte constitucional, com recursos para gerir a si própria e julgar. Todas as funções políticas lhe são indevidas”, diz.
Marsiglia também contesta a aproximação, tão defendida por Barroso, entre o Supremo e a sociedade. Segundo ele, o STF deve dialogar com a Constituição — com o povo, no máximo, por meio de seus votos.
“Parece, no entanto, que isso não basta à Corte. O diálogo que os ministros desejam é no sentido de serem compreendidos, de se tornarem populares, de educarem o povo. Um desejo narcísico incompatível com a função de juiz”, afirma.
Questionado se há exemplos de cortes constitucionais, em outras democracias, que adotam estratégias semelhantes de comunicação popular, o jurista diz desconhecer “países civilizados que fazem o mesmo”. “Os tribunais mundo afora prezam pela sobriedade, é uma forma de seus juízes se preservarem, serem respeitados.”
Sobre o uso do humor como ferramenta para transmitir conteúdos jurídicos complexos (como decisões sobre feminicídio e assédio), ele não vê o risco da banalização da lei ou de temas sensíveis. “Acredito que o humor seja capaz de lidar com qualquer pauta. Não vejo mal em se misturar humor com política. Vejo mal em se misturar o STF com política”, diz.
Por fim, Marsiglia comenta o fato de que os humoristas do Porta dos Fundos compartilham da mesma visão progressista de boa parte dos ministros da Corte — o que compromete a percepção de neutralidade do Supremo. “Como a campanha, ao que consta, não teve custo, a solução parece ter sido fazer parceria com quem pensa parecido”, afirma.

Porta dos Fundos já criticou o STF, mas também foi beneficiado pela Corte
Criada no Rio de Janeiro em 2012, a produtora Porta dos Fundos tem em sua trajetória dois episódios distintos que envolvem o Supremo Tribunal Federal.
Em 2018, o grupo virou notícia após lançar um vídeo sobre o ministro Gilmar Mendes. Com cerca de meio milhão de visualizações apenas no primeiro dia no ar, o material satirizava uma propaganda da rede de postos Ipiranga para colocar em dúvida a honestidade do magistrado.
Um personagem perguntava: “Estou precisando aprovar um projeto de lei contra abuso de autoridade, para livrar a cara de uns senadores. Sabe onde eu consigo?”. A resposta: “É lá com o Gilmar Mendes”.
Vale lembrar que, à época, o Supremo não gozava de tanta popularidade junto ao meio cultural — ao contrário dos dias de hoje, em que ministros costumam receber comitivas de artistas e são elogiados publicamente por líderes da categoria, como a atriz e empresária Paula Lavigne, mulher de Caetano Veloso.
Dois anos depois, porém, o Porta dos Fundos foi beneficiado pela Corte em um episódio sobre liberdade religiosa. Em janeiro de 2020, o então presidente Dias Toffoli autorizou a exibição de um especial de Natal dos comediantes na Netflix. O programa havia sido suspenso pela Justiça do Rio de Janeiro a pedido de uma associação católica, que contestou a representação de Jesus Cristo como homossexual.
Em dezembro daquele ano, a Segunda Turma do STF confirmou a decisão liminar de Toffoli. Por unanimidade, os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski entenderam que se tratava de um caso de liberdade expressão, e não religiosa, e a veiculação da atração (intitulada “A Primeira Tentação de Cristo”) não pôde mais ser proibida.
Em tempo: também no sábado (8), o Porta dos Fundos anunciou que voltará a ser uma produtora independente. Fábio Porchat, Gregório Duvivier e João Vicente de Castro — notadamente, os integrantes do grupo mais ligados à esquerda — adquiriram a participação majoritária da empresa, comprada em 2017 pela gigante americana do entretenimento Paramount.






