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Tombada pelo Patrimônio Histórico, em quase 30 anos a ponte Hercílio Luz consumiu quase R$700 milhões. Para quê? Para hoje servir de cenário para selfies.
Tombada pelo Patrimônio Histórico, em quase 30 anos a ponte Hercílio Luz consumiu quase R$700 milhões. Para quê? Para hoje servir de cenário para selfies.| Foto: Wikimedia Commons

Depois de 28 anos e meio de interdição (sim, 28 anos e meio de interdição!), a Ponte Hercílio Luz, em Florianópolis, foi reaberta ao final de 2019.

O caso é cercado de exemplos de ineficiência do poder público, de suspeitas de corrupção e da falta de prestação de um serviço para a população. Mas os problemas da Hercílio Luz revelam muito sobre como as coisas funcionam no Brasil.

História

A Ponte Hercílio Luz foi a primeira ligação entre a capital, Florianópolis, e o restante do estado de Santa Catarina, com uma extensão total de 821 metros. Inaugurada em 1926, ela foi interditada em 1982 por causa da deterioração das barras de olhal, ao que tudo indica por falta de manutenção.

Em março de 1988, a ponte foi reaberta parcialmente. Foi autorizada a passagem apenas de pedestres, bicicletas, motocicletas e carroças. Mas ela foi interditada de forma definitiva em julho de 1991, sem que houvesse qualquer plano de reabertura.

Só em 2005 o governo de Santa Catarina apresentou um plano de restauração. Teve início, então, uma novela que levou quase uma década e meia para acabar.

Demora e possível superfaturamento

Em fevereiro de 2019, a Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc) criou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar a situação da ponte Hercílio Luz. O relatório final apontou que, desde a década de 1980, a ponte tinha consumido R$ 688 milhões.

Os planos de manutenção e reforma da ponte envolveram ao menos 30 contratos e aditivos, o que contribuiu para encarecer o projeto.

Segundo o procurador do Ministério Público de Contas de Santa Catarina Diogo Ringenberg, os recursos poderiam ter sido utilizados para construir até quatro pontes “em um padrão construtivo extremamente superior, mais moderno, com pelo menos o dobro da capacidade de tráfego”.

“A obra da ponte Hercílio Luz talvez seja um dos melhores exemplos do que não deve ser feito em uma obra pública”, afirma.

Desde dezembro de 2018, o Ministério Público move uma ação civil pública contra empresários e servidores por causa de supostas irregularidades em contratos de recuperação da ponte e de fiscalização da obra.

Sem indiciamento - por enquanto

O primeiro relatório apresentado na CPI sugeriu o indiciamento de 26 pessoas, incluindo três ex-presidentes do Departamento Estadual de Infraestrutura de Santa Catarina (Deinfra) e o ex-governador Raimundo Colombo, que administrou o estado entre 2010 e 2018. A CPI pedia ainda a devolução de R$ 45 milhões por parte dos indiciados.

Mas o relatório final não tinha poder de indiciamento. Ele apenas sugeria a investigação. O Ministério Público de Santa Catarina poderá utilizar o relatório como base para novas diligências ou apresentar denúncia.

Obra inaugurada antes de estar pronta

A Ponte Hercílio Luz foi inaugurada em dezembro de 2019 para pedestres e ciclistas, em evento que contou até com o governador Carlos Moisés (PSL) dirigindo um Fusca. Mas a previsão do término da restauração completa é apenas para 20 de março de 2020.

A prática de inaugurar obras antes de elas estarem prontas é comum no Brasil.

Para promover a então ministra da Casa Civil Dilma Rousseff, por exemplo, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva percorreu o país inaugurando obras inacabadas com a pré-candidata. Foram tantas ao longo de meses que a imagem de ambos se desgastou e os assessores recomendaram a desistência da prática.

No ano eleitoral de 2014, contudo, a então presidente Dilma Rousseff inaugurou obras no aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro, um conjunto habitacional em Brasília, uma via em Pernambuco, entre outras diversas obras - todas inacabadas.

Em Porto Alegre e em Santa Catarina há até leis para tentar impedir a entrega de obras públicas municipais incompletas. O lançamento da Ponte Hercílio Luz, com três meses de trabalhos planejados ainda pela frente, mostra como a legislação é ineficaz.

Muito além das obras da Copa do Mundo

O caso da Hercílio Luz não é exceção. A regra das obras públicas no Brasil é se arrastarem por anos e deteriorar os cofres públicos.

Símbolo disso, por exemplo, foi a promessa da ex-presidente Dilma Rousseff, feita em 2009, de construir um trem-bala que ligaria as cidades do Rio de Janeiro e Campinas antes da Copa de 2014. Em 2018, a estatal criada para a construção da obra registrou um prejuízo de R$ 69 milhões, quase metade para pagar salários e encargos de 140 funcionários e fornecedores, sem que houvesse trem, linha férrea ou dormente.

Um levantamento da ONG Transparência Brasil monitorou 135 obras em escolas do sul e sudeste a partir de 2017. Ele concluiu que há uma “baixa eficácia do programa nas localidades analisadas, com menos de uma em cada cinco obras previstas tendo sido entregue no período observado”. Pior: 40% das obras simplesmente não serão concretizadas.

Lê-se no relatório:

“De maneira geral, as obras do Proinfância são, na melhor das hipóteses, entregues com alguns meses de atraso, e na pior, iniciadas e abandonadas por anos a fio, sem perspectiva de retomada e gerando desperdício de recursos públicos”.

Segundo outro relatório, esse do Tribunal de Contas da União (TCU), em maio de 2019 havia 14 mil obras paralisadas no país, envolvendo contratos no valor de R$ 144 bilhões. Isto é, 37,5% das 38 mil que têm contratos consolidados e, portanto, deveriam estar em andamento.

O descaso do poder público com a manutenção

As outras duas pontes de Florianópolis, a Colombo Salles e a Pedro Ivo Campos, também apresentam problemas de manutenção e danificações em sua estrutura. O descaso do poder público com obras de manutenção não se restringe à capital catarinense.

Nos últimos dez anos, 9 em cada 10 pontes e viadutos da cidade de São Paulo ficaram sem reparos. Estima-se que uma em cada cinco pontes ou viadutos sob jurisdição federal requer intervenções.

Para o deputado estadual de Santa Catariana Bruno Souza (Novo), que presidiu a CPI da ponte Hercílio Luz, a explicação para isso está nos incentivos políticos. “Ninguém vê obras de manutenção e ninguém vota no político que faz mais manutenção. O eleitorado acredita que político bom é o que faz obra nova. Ninguém se elege fazendo campanha contando que fez manutenção em X pontes e Y viadutos”, afirma.

O parlamentar acredita que a negligência em obras de manutenção tem um alto custo de oportunidade na gestão pública. “A manutenção é mais barata, mas, com o dinheiro, o político pode fazer uma obra nova para tentar ganhar a próxima eleição. Se ele optar pela manutenção e perder a eleição, o legado disso fica com o sucessor. Então a regra é empurrar com a barriga”, diz.

Tombamentos

Ao longo de três décadas, a demanda de tráfego em Florianópolis foi suprida pelas outras duas pontes que interligam a ilha ao continente. Mas ambas ficam na região central da cidade, a mesma da Ponte Hercílio Luz. Mas será que não seria mais eficaz demolir a estrutura corroída e construir uma ponte em outra região da cidade?

Outra opção seria reconstruir a ponte Hercílio Luz com um material diferente e uma tecnologia superior. O problema é que nada disso pode ser feito, já que, em 1992, a obra foi tombada como Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Município de Florianópolis. Ela também é reconhecida como patrimônio histórico estadual e, em 1997, o Ministério da Cultura a reconheceu como Patrimônio Histórico, Artístico e Arquitetônico do Brasil.

A preservação do patrimônio histórico, artístico e arquitetônico é considerada um direito de todos os cidadãos, das presentes e das futuras gerações, mas o tombamento da Hercílio Luz pode ter provocado o desperdício de centenas de milhões de reais. “Conhecer e fruir nossa memória e nossa cultura é um direito. Mas, para que de fato isso aconteça, é essencial um olhar criterioso e ao mesmo tempo uma visão geral da cidade”, analisa o urbanista José Police Neto sobre a questão dos tombamentos.

“É comum uma visão populista de preservação, que utiliza critérios políticos ao invés de técnicos para decidir o que deve ser preservado”, explica ele.

Police Neto defende que o tombamento e a conservação do patrimônio cultural sejam feitos a partir de instrumentos eficientes para evitar que a medida acabe funcionando como uma punição para a cidade. Parece ter sido o caso da Hercílio Luz.

O tombamento sem critérios é um problema presente em diversas cidades brasileiras por gerar consequências não intencionais. O urbanista e fundador do site Caos Planejado, Anthony Ling, diz que, quando um imóvel é considerado patrimônio histórico, isso costuma gerar insegurança financeira para os proprietários, além de atrapalhar “reformas inovadoras”.

“Alguns consultores jurídicos inclusive recomendam a destruição de imóveis históricos antes de eles serem tombados, para evitar incômodos dos proprietários”, explica.

Atualmente a ponte Hercílio Luz está sendo utilizada apenas por pedestres, ciclistas e transporte coletivo. Não é permitida a circulação de carros e veículos individuais no local.

Na prática, o tombamento obrigou o estado de Santa Catarina a gastar quase R$ 700 milhões para beneficiar quem passa pelo local e pode tirar selfies para publicar no Instagram.

Conteúdo editado por:Paulo Polzonoff Jr.
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