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Opinião

As Tripas do Mito: o significado do martírio de Bolsonaro e suas consequências políticas

O ex-presidente Jair Bolsonaro teve alta neste domingo. Ele deu entrada no Hospital DF Star, em Brasília, no dia 12 de abril, para uma cirurgia abdominal (Foto: EFE/ Andre Borges)

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Na noite do último sábado, Jair Bolsonaro fez um post no seu perfil no X (antigo Twitter) que gerou grande repercussão nas redes sociais. A imagem mostra o abdômen aberto, com um grande corte que deixou seu intestino à mostra. O ato foi classificado por muitos analistas como “grotesco”, “apelativo”, “desnecessário”, entre outros adjetivos. Como quase tudo o que costuma envolver a comunicação do ex-presidente, as críticas vão na contramão do efeito que deverá ser alcançado nos próximos meses.

O episódio remonta ao atentado que Bolsonaro sofreu em 2018, durante a campanha presidencial. A facada o tirou da disputa direta nos palanques e o colocou numa posição de destaque nas redes e na cobertura jornalística, mobilizando o eleitorado em torno de sua recuperação. Enquanto seus adversários debatiam entre si, Bolsonaro crescia em popularidade, centrando a narrativa em torno de seu sofrimento e resistência. A imagem do ferimento virou símbolo político.

Desde então, analistas discutem o papel do atentado na sua vitória — muitos sustentam que o episódio o blindou de críticas decisivas e favoreceu sua passagem ao segundo turno. Agora, diante da publicação da imagem da cirurgia, parte desses mesmos analistas vê uma tentativa de repetir a fórmula: usar a comoção em torno da saúde para frear ações do Supremo Tribunal Federal, que se prepara para julgá-lo por uma suposta tentativa de golpe de estado.

Mas há também quem enxergue algo mais profundo em jogo. A exposição pública da ferida pode sinalizar não apenas uma manobra, mas um gesto com efeitos imprevisíveis sobre o STF e sobre a legitimidade das instituições. Num contexto de polarização, a reaparição desse corpo marcado pelo atentado reacende memórias e confrontos simbólicos que vão além da figura de Bolsonaro, ameaçando a estrutura de narrativas legitimadoras do regime que tomou conta do país.

"Efeito São Paulo"

Um dos grandes paradoxos do bolsonarismo é a tensão entre a imagem de força projetada por Jair Bolsonaro e sua atuação prática como um político limitado diante de instituições mais poderosas. Esse contraste já aparecia em 2018, quando ele dava respostas diretas, quase simplistas, a questões complexas do país. Mas essa postura, livre da retórica tradicional, foi interpretada por parte do eleitorado como sinal de autenticidade — ele não fingia saber tudo, tampouco adotava o tom professoral típico dos políticos da Nova República. Isso reforçou sua imagem de outsider, alguém de fora do sistema.

Naquele momento, propus o conceito de “Efeito São Paulo” para descrever um fenômeno pouco discutido na sociologia política: o poder simbólico da fraqueza assumida. Inspirado pela passagem bíblica (“quando estou fraco, então sou forte”), o termo descreve a força inesperada de um líder que não esconde suas limitações e se mostra vulnerável, humano, acessível. Essa exposição — que o igualava aos seus eleitores em vez de se colocar acima deles — desarmou parte do eleitorado mais resistente e ajudou a consolidar sua base de apoio.

Esse padrão continuou durante o governo. Bolsonaro foi sendo progressivamente cercado por forças que restringiram sua margem de ação. O avanço do Centrão sobre o orçamento tornou os instrumentos clássicos do presidencialismo de coalizão quase inócuos. Paralelamente, o STF passou a bloquear sucessivas políticas do Executivo, impondo limites estreitos para sua atuação. Apesar disso — ou talvez por isso — a popularidade de Bolsonaro se consolidava.

O então Presidente passou à condição de lider de massas, capaz de ajuntar quantidades de pessoas equivalentes às maiores manifestações da história política nacional. Por vezes, Bolsonaro gerava expectativas de liderar uma grande virada, que eram logo revertidas por recuos ou novos avanços dos adversários. Quanto mais se debatia diante de situações que estavam além do seu alcance, assumindo não raro publicamente a impossibilidade de atuar de maneira decisiva, mais consolidava seu apoio popular.

Esse ciclo atingiu seu ápice após a derrota em 2022. Multidões acamparam diante de quartéis, alimentadas pela percepção de um processo eleitoral regido sob o signo da trapaça. Mas, no fim, Bolsonaro não liderou levante algum: gravou um vídeo emocionado, reconheceu a derrota e viajou aos Estados Unidos. Ainda assim, sua figura saiu reforçada como símbolo de alguém que tentou resistir até o fim, mesmo sem meios de agir.

Bode expiatório

Em qualquer outra situação, seria normal esperar que uma liderança assim se esvaziasse. Entretanto, a visão de Bolsonaro  como uma vítima parece cada vez mais consolidada. Em todas as pesquisas de opinião, o nome do ex-capitão ainda figura como o candidato de oposição mais viável para conquistar a Presidência em 2026.

Ao mesmo tempo, as forças que conspiraram para retirar Jair Bolsonaro do poder se aglutinaram em torno do governo Lula, num esforço concertado para promover uma narrativa de restauração da democracia. Essa narrativa se compõe de uma série de mitos e promessas legitimadoras para a população, que operam juntamente com um aparato de coerção política e institucional liderado pelo STF, mas com participação direta do Poder Executivo.

Entre esses mitos, encontravam-se a ideia da retomada da governabilidade do presidencialismo de coalizão mediante a atuação dialógica de um Presidente contemporizador (Lula); a construção de uma economia pujante, mediante a associação de setores liberais com o desenvolvimentismo voltado para os mais pobres; o retorno a padrões de consumo de bens e serviços pelas classes populares nos níveis da primeira década e meia do século XXI; a promoção da diversidade e do respeito pelas minorias; a restauração da proteção ao meio ambiente; a valorização dos artistas e produtores de cultura etc.

Sustentando esse conjunto como uma espinha dorsal, está a ideia que a democracia brasileira escapou por um triz de um golpe de Estado. Ela é fruto de um processo longo de sedimentação em que operaram setores da imprensa, do Legislativo e das Cortes nos últimos quatro anos. Seu objetivo sempre foi uma desumanização geral do bolsonarismo e de seus adeptos, que precisavam ser eliminados da vida política e social do país.

A ameaça que representavam justificou inquéritos abertos de ofício, sem objeto definido, censura de perfis em rede social, ações policiais arbitrárias e mesmo prisões sem explicação. Após as manifestações de 8 de janeiro de 2023, essa posição se sacramentou em condenações abusivas de pessoas comuns, sem antecedentes criminais, pela conspiração numa suposta tentativa de golpe de Estado que nunca foi devidamente provada.

No cume dessa pira sacrificial, agora estão o próprio Jair Bolsonaro e pelo menos 38 personalidades mais ou menos importantes de seu governo que ora estão sendo julgadas como integrantes de uma conspiração contra a ordem democrática. O processo se baseia nas palavras de um único delator e no depoimento de dois ou três militares de alta patente.

Essas narrativas não raro contraditórias entre si servem de eixo de articulação para um conjunto probatório pífio, formado basicamente por umas quantas mensagens de um grupo de militares mais entusiasmados com planos mirabolantes de reversão do resultado eleitoral, além de uma minuta de intervenção militar achada na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, um arquivo que circulava livremente pela internet na época. Nada concreto que envolva o ex-presidente ou as figuras centrais do seu governo.

Entre os casos de abuso flagrante no processo, destaque para a figura de Filipe G. Martins, que foi preso sob acusação de ter feito uma viagem que não fez (e quando não estava proibido de fazê-lo), teve negado pedidos da defesa de acesso à geolocalização de seu celular e permanece submetido a cautelares que o impedem de se deslocar livremente, dar entrevistas e mesmo aparecer em filmagens de terceiros.

A revelação do mecanismo

O antropólogo René Girard apresenta em sua obra uma reflexão importante sobre o mecanismo do bode expiatório, para entender processos políticos como o que estamos vivenciando no Brasil. Grosso modo, a teoria girardiana parte de uma discussão das causas da violência na condição humana, para um entendimento do surgimento da religião arcaica, do funcionamento dos rituais, do lugar do cristianismo e da necessidade progressiva de controle da violência.

Girard interpreta a violência como fruto do desejo mimético: imitamos o desejo do outro, e é essa disputa por objetos comuns que gera tensão e conflito. Para ele, quanto mais próximos estamos do modelo que imitamos, maiores são as chances de rivalidade e violência, pois a posição entre sujeito e modelo se torna indistinta. Enquanto a cultura impõe diferenças de posições e regula a disputa, a indiferenciação extrema o acirra.

O nascimento das sociedades se ligaria assim ao “mecanismo do bode expiatório”: quando o conflito coletivo se torna insustentável, a violência é canalizada contra uma vítima comum, tida como culpada por todos os males.

Essa vítima, muitas vezes inocente, é sacrificada pela comunidade, o que restabelece a ordem e gera coesão social. Esse assassinato fundador é então mascarado por mitos, transformado em rituais e traduzido em sistemas de regras que estruturam as religiões arcaicas, impondo diferenças e regulando as disputas.

O cristianismo rompe esse ciclo ao expor a lógica do bode expiatório. A narrativa bíblica deixa claro que Cristo é uma vítima inocente, sacrificada injustamente. Com isso, o cristianismo não encobre o mecanismo — como os mitos antigos faziam —, mas o revela.

Ao tornar evidente que a violência coletiva recai sobre inocentes, impede que o processo se repita com a mesma eficácia. Esse gesto dessacraliza o mundo: já não é possível justificar a ordem social com base em sacrifícios.

Essa mudança de paradigma abre espaço para o pensamento racional, o surgimento da ciência, do direito e do Estado moderno. A ideia de buscar causas, e não culpados, substitui o impulso de punir uma vítima. Ainda assim, mesmo nas sociedades modernas há tentativas de restaurar antigos mecanismos sacrificiais sob novas roupagens, especialmente em momentos de crise ou polarização. A sua eficácia, porém, não é a mesma das sociedades arcaicas de outrora.

A exposição da inocência da vítima enfraqueceu o poder simbólico do sacrifício, tornando-o menos capaz de restaurar a ordem social. Além disso, a consciência contemporânea sobre os direitos da pessoa humana e a valorização da individualidade dificultam a aceitação de soluções baseadas na eliminação de um "culpado" para resolver conflitos sociais. Assim, mesmo que surjam tentativas de encontrar bodes expiatórios, elas não conseguem mais produzir a coesão social que geravam nas sociedades arcaicas.

Quando a vítima vira um mito

A história está cheia de exemplos que demonstram o que acontece quando sacrificadores ignoram as leis que regem o mecanismo do bode expiatório e sua revelação. Um exemplo que me veio à mente com a exposição cruenta dos sofrimentos de Bolsonaro é o de William Wallace, herói escocês popularizado pelo filme Coração Valente (1995), estrelado e dirigido por Mel Gibson.

Nascido por volta de 1270, em uma família da pequena nobreza, Wallace cresceu em meio às crescentes tensões entre a Escócia e a Inglaterra. Após a morte do rei escocês Alexandre III, em 1286, e de sua sucessora, a jovem Margarida da Noruega, em 1290, a Escócia mergulhou numa crise de sucessão que levou o rei inglês Eduardo I a tentar impor sua autoridade sobre o reino. Diante da intervenção inglesa e do domínio militar, surgiram focos de resistência — e Wallace tornou-se o mais proeminente entre eles.

Sua fama começou a se consolidar em 1297, quando liderou uma vitória decisiva contra os ingleses na Batalha de Stirling Bridge. Usando táticas de guerrilha e o conhecimento do terreno, Wallace infligiu uma derrota embaraçosa a um exército superior em número e equipamento. Como resultado, foi nomeado Guardião da Escócia.

No entanto, sua liderança sofreu um duro revés no ano seguinte, com a derrota na Batalha de Falkirk, na qual os ingleses utilizaram arqueiros e cavalaria pesada para esmagar as forças escocesas. Wallace renunciou ao cargo e continuou lutando de forma independente por vários anos, até ser capturado em 1305, traído por aliados escoceses.

Condenado por traição à Coroa inglesa, Wallace foi levado acorrentado até Londres, onde foi exibido pelas ruas até a praça de Smithfield. Lá, foi enforcado, mas retirado antes da morte, eviscerado (com os órgãos internos retirados enquanto ainda vivo), decapitado e esquartejado. Sua cabeça foi exposta na ponte de Londres; seus braços e pernas, enviados para Newcastle, Berwick, Stirling e Perth — cidades simbólicas da resistência escocesa.

Apesar da intenção de intimidar, esse espetáculo grotesco teve o efeito oposto: inflamou ainda mais o sentimento nacionalista escocês. Poucos anos depois, a luta pela independência ganharia novo fôlego sob a liderança de Robert the Bruce, culminando com a vitória escocesa na Batalha de Bannockburn, em 1314, e, mais tarde, com o reconhecimento oficial da independência da Escócia pelo Tratado de Edimburgo-Northampton, em 1328. Wallace, embora morto, tornara-se um mártir e inspiração duradoura para a causa escocesa.

Um corpo para encobrir um crime

Os últimos acontecimentos apontam para projetar efeitos prováveis do martírio político de Bolsonaro, que certamente não estavam na conta de seus algozes. Grande parte dos mitos sobre as quais se estruturaram o regime ora no poder já se esfacelaram ou estão se desfazendo rapidamente.

A retomada da governabilidade do sistema político deu lugar a um Congresso travado, com um Lula que amarga o pior índice de aprovação de projetos da história da Nova República.

A agenda econômica afundou num pântano de altos impostos, descontrole das contas públicas, crescimento inflacionário, endividamento recorde do Estado e prejuízo nas empresas públicas. A expectativa de melhoria nos padrões de consumo se transformou num pesadelo onde produtos básicos como café e ovo atingiram preços proibitivos para grande parte da população.

Atuando como braço coercitivo do regime, o STF conseguiu atritar o relacionamento com o Legislativo em inúmeros episódios, ao mesmo tempo que se coloca como elemento central no descontrole orçamentário do Estado brasileiro.

A agenda de promoção da diversidade fragmentou ainda mais a sociedade e já vem sendo abandonada por grandes empresas e grupos de investimentos em todo o mundo.

O desmatamento e os incêndios florestais saíram completamente do controle, e o setor cultural acaba de entrar em greve.

Na sua coluna de sustentação, o regime político segue forte na sua disposição de condenação de seu maior adversário, mas os abalos que sofreu tem impacto direto na sua legitimidade. O percentual de brasileiros que acreditam que o ex-presidente está sendo vítima de perseguição judicial já é o maior da série histórica. Ao mesmo tempo, quase metade dos brasileiros diz não confiar no Superior Tribunal Federal. E o número de apoiadores do projeto de anistia para os manifestantes do 8 de janeiro aumenta a cada dia, com a percepção crescente dos exageros cometidos pelas Cortes.

Enquanto isso, avança a agenda de retaliação internacional contra Alexandre de Mores no governo norte-americano, e os abusos cometidos pelo STF se tornam objeto de investigação por autoridades policiais de outras nações.

Nesse ínterim, cada vez mais lideranças políticas do centro para a direita se aglutinam em torno de Jair Bolsonaro, acompanhando a sua radicalização no discurso contra as Cortes. Por mais que muitas delas estejam pensando no espólio político do ex-presidente, o nível de tensionamento crescente tende a consolidar uma pauta de enfrentamento para as eleições de 2026, onde o controle dos excessos do Poder Judiciário está deslocado para o centro do debate político.

Na verdade, basta uma palavra do ex-presidente para colocar uma reforma do Judiciário como principal bandeira das próximas eleições, comprometendo inclusive políticos de direita que até agora optaram pela moderação ou pelo silêncio. Inevitavelmente, a necessidade de sobrevivência política, a concorrência pelo posto de liderança e o espetáculo de arbítrio judicial se encarregarão de garantir a radicalização do pleito como um todo.

Não dá para saber com certeza se o espetáculo das tripas à mostra do ex-presidente prenuncia sua agonia final ou um retorno triunfal depois de uma virada de mesa. O que parece claro, contudo, é que o gesto escancara — de modo brutal e simbólico — a falência das estratégias de deslegitimação que sustentaram o discurso oficial das instituições desde 2019.

Quando o sacrifício da vítima é exposto sem véus, ele perde a capacidade de manter a coesão do grupo e, em vez disso, começa a revelar a violência de quem o executa. A exposição dos danos associados pela vítima se torna só mais uma etapa de um processo de reconhecimento.

Se os algozes insistirem em dramatizar sua condenação, correm o risco de acelerar sua transformação em mito. E mitos, como a história mostra, têm força para sobreviver aos seus próprios corpos.

Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político. Autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil”.

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