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Eu comecei a dar aulas em 1987, imediatamente depois de graduado. Passei por faculdades de informática, administração, direito, cursos de especialização e preparatórios. Lecionei sobretudo direito administrativo. Nesse meio tempo, fiz meu mestrado. Lecionar era difícil, não porque não apreciasse a matéria ou a atividade. Do que eu não gostava mesmo era das minhas aulas (arrogância de maluco). Às vezes os cinquenta minutos corriam bem, mas insuportável era o tempo que os antecedia e aquele que vinha depois. 

Então, em 1998, eu parei de lecionar. Fiz minha esposa prometer que não me deixaria voltar. Contudo, ela não cumpriu o combinado: retornei em 2004, convocado por amigos para funcionar como professor voluntário na Faculdade de Direito da UFPR. Menos ou mais maluco do que antes, ainda não sei, aceitei o convite. Depois, fiz concurso e passei a integrar o quadro de professores. Na minha alma mater, a principal matéria sempre foi direito econômico. Porém, em 2007, um dos professores de direito constitucional pediu exoneração e fui designado para lecionar a matéria. O que foi um desespero revelador. 

A aflição veio da minha distância acadêmica com o direito constitucional. Eu o havia aprendido à luz da Emenda 1/69 e, na pós, só o comecinho da atual Constituição. Curioso, lia bastante a respeito, mas preparar aulas é mergulhar e respirar a matéria debaixo d’água. Como o desafio era bom, daí veio a novidade, ao organizar aulas e bibliografia. Foi quando realizei o óbvio, que desde então me instiga a escrever este artigo. 

A maioria dos livros era daqueles mesmos autores que eu havia estudado no século anterior (literalmente). Nada obstante “atualizados de acordo com a Constituição de 1988”, em boa parte isso significava mera alteração formal dos dispositivos citados (e respectiva adaptação dogmática). A estrutura era a mesma dos antepassados, sumários sem alteração, assuntos idênticos com racionalidade parecida, referências bibliográficas iguais, como se uma nova Constituição apenas atualizasse a anterior. Na verdade, eram livros de direito constitucional “desatualizados de acordo com a EC 1/69”. 

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O mesmo se diga dos cursos escritos depois de 1988: salvo exceções, são dízimas periódicas dos manuais antigos. A prova dos nove está nos sumários e referências bibliográficas: comparem e verão. Se são idênticos, pode-se imaginar que o autor apenas reescreveu o livro anterior (com um ou outro acréscimo bibliográfico). Pior do que isso só os ditos “descomplicados” ou “fáceis”. Estes estabelecem um pressuposto inibidor, que nivela por baixo os leitores. A frase subliminar é: “o direito é complicado demais para você, vou simplificar”. O que não pode ser verdade. De qualquer modo, também estes cursos e manuais apenas repetem o que vem sendo escrito há décadas (com simplificações patéticas). 

Isto é, o ensino estava tentando imunizar o direito constitucional do transcurso do tempo e respectivos desafios. Ele ficou congelado nos manuais. Bem vistas as coisas, é isso o que acontece ao se lecionar só a ideia de Poder Constituinte do século XVIII (Revolução Francesa e Emmanuel Sieyès) e a interpretação constitucional declaratória, segundo os métodos clássicos de Savigny (gramatical, histórico e sistemático). O mesmo se diga da separação de poderes como verdade absoluta (afinal, devemos interpretar a Constituição à luz de Montesquieu – ou vice-versa?). Ou, dando um salto histórico, ficar na Constituição de Weimar ao tratar da Ordem Econômica. A maioria dos cursos parou na pré-história ou no alvorecer do direito constitucional, como se nada houvesse depois. 

Contudo, ao insistir em tais temas – e só trato deles, que são mais simples – não há explicação para a União Europeia ou para o controle de convencionalidade, nem para a distinção entre texto e norma constitucional, muito menos para medidas provisórias, controle de constitucionalidade com modulação de efeitos e súmulas vinculantes. Quiçá poderíamos entender o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – órgão administrativo que até hoje funciona por meio de regulamento autônomo, com fonte na própria emenda constitucional que o criou. 

A constatação se estende ao direito administrativo. Salvo exceções, os cursos e manuais repetem teses de meados do século passado, cunhadas para um mundo que já não mais existe. Alguns são livros magníficos, que constituem divisores de águas do direito administrativo brasileiro. Mas está na hora de haver novos pontos de partida, eis que os caminhos são outros. A fronteira do conhecimento avançou e de nada adianta tentar resolver os problemas do presente sempre com as mesmas ferramentas cunhadas para assuntos do passado. 

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Por exemplo: existe alguma lógica em se classificar regulamentos administrativos só no sistema binário “executivo vs. autônomo”, desprezando as nuances da dissociação normativa constante dos arts. 84, IV, e 174, da Constituição? Como fica a noção clássica de autarquia diante das agências reguladoras, dos consórcios públicos e das fundações públicas de direito privado? Existe alguma racionalidade em dizer que os serviços do art. 21 da Constituição não podem ser objeto de autorização – tal como expressamente previsto no texto constitucional – porque seriam “naturalmente” públicos? E se as sanções administrativas são atos vinculados, como explicar os Termos de Ajuste de Conduta (TACs)? Muitas dessas perguntas não são tratadas nos cursos, nada obstante façam parte do nosso cotidiano banal. 

Logo, fato é que o ensino do direito constitucional e do administrativo há de ver com cautela a maioria dos manuais. Precisa transpor tais limites e também se orientar por artigos de revistas e coletâneas. Mais do que isso, é imprescindível o estudo das decisões dos tribunais, sobretudo STF e STJ. Pouco ou nada adianta lecionar o direito pretérito sem revelar que se trata do passado, que pode ter sido glorioso, mas não persiste atual. Afinal, ao se graduar, os alunos enfrentarão o futuro. Por isso que o ensino do direito constitucional e do direito administrativo não pode se pretender imune à história, eis que ambas as disciplinas dela se alimentam. 

Ocorre que este repto não se limita a tais disciplinas, mas a quase todo o direito público. Aliás, as aflições ficam mais agudas no estudo do direito econômico. Esta matéria, essencialmente díspar das tradicionais, enfrenta maiores desafios. Ela tende a se aproximar da dinâmica histórica, rompendo com a jurisprudência dos conceitos (estáticos). As noções célebres em outras disciplinas – autarquia, poder de polícia, serviço público, hierarquia administrativa, regulamentos executivos e autônomos, etc. – simplesmente não se encaixam. Servem como início do conhecimento. Precisam ser explicadas, justamente para permitir a transposição. O que se faz urgente é o estudo do direito econômico que hoje existe. Mas isso é assunto para outros artigos...

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