Na imagem, Complexo Penitenciário de Pinheiros, em São Paulo (SP). | Foto: Luiz Silveira/Arquivo/Agência CNJ

Por furtar uma bermuda de R$ 10, que posteriormente foi devolvida à loja, um homem foi condenado a um ano e sete meses de reclusão. Em junho último, o caso chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde a condenação foi mantida após análise do ministro Dias Toffoli. Pouco tempo antes, em abril, na mesma Corte, Gilmar Mendes absolveu uma mulher acusada de furtar um par de sapatos avaliado em R$ 99. 

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Enquanto Gilmar aplicou o princípio da insignificância, também conhecido como bagatela, ao caso por ele analisado, Toffoli entendeu que a medida não seria cabível no processo que coube a ele. 

Objetivamente, ambas as condutas parecem não merecer uma punição severa. Por que, então, em um dos casos – o de furto de objeto de menor valor, inclusive – a condenação foi confirmada enquanto em outro a ré foi absolvida? Como praticamente tudo no Direito, a questão envolve subjetividades e não há resposta exata. 

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O princípio da insignificância, explica o advogado criminalista e professor de Direito Penal Jovacy Peter Filho, trata-se de uma construção de doutrina jurídica e jurisprudência, o que significa dizer que não há lei que regulamenta o tema, prevendo que determinado comportamento precisa ser considerado insignificante e, por isso, não deve ser considerado crime. O princípio surge quando a doutrina percebe que algumas condutas não lesam o bem jurídico (os interesses protegidos pelo Direito) de forma a justificar uma movimentação do Estado. 

“A conclusão foi de que algumas lesões eram tão pequenas que o custo que seria gasto pelo Estado, a fim de levar o processo em frente, seria muito maior do que o custo da lesão causada”, afirma o professor, que lembra que esses custos são suportados por toda a sociedade. 

A doutrina, contudo, não respondia o que seria ou não insignificante, tampouco o faz a lei brasileira. E é aí que a questão começa a se complicar, pois não há critérios objetivos que dizem quando o comportamento por ser abarcado pelo princípio da insignificância. 

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A jurisprudência, em especial por parte do STF, estabeleceu algumas diretrizes, que os juízes precisam avaliar se estão presentes no caso concreto ou não. Muitos magistrados, porém, não aplicam a insignificância justamente porque não há lei que obrigue, ou por fazerem uma leitura muito pessoal da situação. 

“Há juízes e tribunais extremamente punitivos, que acabam por fazer com que esses processos cheguem até as Cortes superiores. Quem acha que furtar algo como um xampu é gravíssimo? A gente já tem um sistema penitenciário falido, e aí vai gastar tempo de um ministro por conta de um furto assim? Uma ação dessas custa dinheiro e tempo da Justiça. Do ponto de vista da eficiência e do que é melhor para a sociedade, não faz sentido processar alguém que furtou um xampu, uma manteiga, uma peça de carne”, aponta o professor do curso de Direito da FGV-Rio Thiago Bottino. 

Novo Código Penal 

projeto legislativo do Novo Código Penal brasileiro, que tramita no Senado Federal desde 2012, traz um artigo específico sobre o princípio da insignificância. No texto, estão presentes três diretrizes gerais que já são utilizadas, quando verificadas cumulativamente, pelos juízes atualmente para verificar se a bagatela está ou não configurada. 

A primeira diretriz se trata da mínima ofensividade da conduta do agente. Segundo Peter Filho, a ofensividade diz respeito à gravidade abstrata. A conduta, portanto, teria de ser praticada com um grau de violência irrisório. Crimes que atentem contra a vida ou contra a integridade física da pessoa não se encaixariam aqui. 

“Um furto pode ser insignificante, mas um roubo não. O sentimento de medo gerado na vítima acaba por fazer com que a conduta seja mais ofensiva”, diz Bottino. 

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O ponto seguinte trata do reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento, que envolve, de acordo com Peter Filho, “uma análise social sobre determinadas questões que a sociedade tolera mais ou menos, ainda que a lei as proíba”. O professor da FGV-Rio cita como exemplo um furto de gasolina de carro oficial, praticado por um policial militar. Num caso assim, o grau de reprovabilidade social seria maior do que se o ato tivesse sido cometido por um cidadão comum. 

A terceira diretriz fala da inexpressividade da lesão jurídica provocada, que trata da extensão do dano. Aqui, observa-se o contexto, bem como perfil da vítima e do ofensor. Furtar uma peça de carne de um supermercado é diferente de furtar carne de uma família que vive com menos de um salário mínimo por mês. 

Hoje, a Justiça também costuma avaliar se o agente é reincidente. A jurisprudência, porém, não é uniforme nesse sentido, vez que no próprio STF há ministros que não entendem a reincidência como critério a obstar a aplicação do princípio da insignificância, enquanto outros juízes entendem de forma diferente. 

“Aqui, acredito que teria que se tratar de uma reincidência específica. No caso de furto, tem que ser uma reincidência por furto. Deve se tratar da reincidência contra o mesmo bem jurídico, que nesse caso é o patrimônio”, opina Jovacy Peter Filho. 

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Vulnerabilidade 

Na prática, as pessoas que praticam crimes de bagatela são aquelas que se encontram num estado de vulnerabilidade, seja ela social ou psíquica – alguém em estado de dependência química ou com algum distúrbio psicológico, como a cleptomania. E não é raro que indivíduos sejam presos por crimes assim. 

“Se a autoridade policial liberar o sujeito por interpretação própria, assim que receber o flagrante, o Ministério Público pode entender que o delegado deixou de cumprir um ato de ofício, que seria efetuar a detenção da pessoa. É comum que os delegados façam a autuação. Às vezes até arbitra-se uma fiança, mas o suspeito não tem condições de pagar”, explica o advogado. 

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Um investimento maior nas audiências de custódia seria um mecanismo para evitar que essas pessoas sigam para o sistema penitenciário, afogando-o ainda mais. Essas audiências são realizadas em até 24 horas após o flagrante e avaliam a real necessidade de manter o sujeito preso. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), cerca de 46% das detenções analisadas em audiências de custódia são convertidas em liberdade.