| Foto: Pixabay

A venda de ingressos com preços diferentes para homens e mulheres pode estar com dias contados no Brasil. Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados proíbe a variação do preço de entrada e de consumação em boates e eventos com base em sexo, gênero ou identidade.

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O texto prevê a punição para empresas que descumprirem a regra, com multa de até 500 vezes o valor do maior ingresso, interdição e cassação da licença do estabelecimento. O projeto está em fase inicial de tramitação e, se aprovado, também precisa passar pelo Senado. 

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A prática já é conhecida do público brasileiro, mas ganhou repercussão nas últimas semanas, quando a juíza Caroline Santos Lima, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, declarou em uma decisão interlocutória não haver dúvida de que “a diferenciação de preço com base exclusivamente no gênero do consumidor não encontra respaldo no ordenamento jurídico”. 

Ela analisava o pedido do estudante de direito Roberto Casali Junior, 21, no Juizado Especial Cível, que processou a empresa R2 Produções por ter se recusado a vender para ele ingressos para dois shows pelo mesmo valor cobrado de mulheres. Uma das entradas era vendida a R$ 220 para homens e R$ 170 para mulheres, e outra custava R$ 120 para homens e R$ 100 para mulheres. 

O mérito da ação ainda será julgado. Na decisão preliminar, a magistrada negou o pedido de urgência, mas adiantou que a cobrança discriminada fere o Código de Defesa do Consumidor, que garante a igualdade de contratações (art. 6º, II) e a boa fé e equidade (art. 51, IV). 

Na petição, o autor cita ainda a igualdade entre homens e mulheres, prevista na Constituição (art. 5º, I). “Se você não pode diferenciar porque a pessoa é branca ou negra, porque é gay ou heterossexual, também não pode por ser homem ou mulher”, disse em entrevista ao Justiça & Direito. Casali também apresentou a sugestão de texto do projeto de lei sobre o tema, que foi adotada pelo deputado deputado Marcelo Squassoni (PRB/SP) e agora tramita como PL 7.914/2017. 

 A economista Ione Amorim, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), acrescenta que o aumento de preço sem justa causa é considerado prática abusiva pelo Código do Consumidor (art. 39, X). “Não se pode aumentar o preço de um produto ou serviço simplesmente porque está destinado a outro público. Isso foge à natureza do custo”, diz. 

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Mulher como isca

 Outro aspecto abordado pela juíza na decisão preliminar foi o incentivo à presença da mulher como atrativo para homens ao evento. “Não pode o empresário-fornecedor usar a mulher como ‘insumo’ para a atividade econômica, servindo como ‘isca’ para atrair clientes do sexo masculino”. Para a magistrada, essa prática “afronta a dignidade das mulheres, ainda que de forma sutil, velada”. 

Esse também é o entendimento do professor de Direito Civil da FGV-Rio Gustavo Kloh. “O que existe nesse preço mais barato para a mulher é um baita de um machismo”, disse. “Os consumidores podem ser tratados diferentemente, desde que haja justificativa. Neste caso, é uma discriminação que não se justifica”, completou. 

Para o autor da ação, apesar de aparentemente beneficiadas, as mulheres apoiam a igualdade do valor dos ingressos. “A mulher quer ser valorizada, não quer ser tratada como um produto”, disse. “Além disso, o homem é feito de trouxa para pagar o máximo que puder pelo fato de ter muita mulher no evento.” 

Referência na área de Direito do Entretenimento, a advogada Deborah Sztajnberg acrescenta que a cobrança diferenciada reforça a discriminação contra a mulher. “Aceitar isso seria legitimar a diferença de salários no mercado de trabalho, porque equivale a dizer que a mulher ganha menos e, por isso, tem que pagar menos na balada”, afirma. “Se tudo que a gente quer é acabar com a intolerância, essas discriminações diversas de raça, de gênero, de tudo, como aceitar isso?” 

Livre iniciativa

Entre os argumentos em defesa da cobrança diferenciada de ingressos, segundo advogados consultados pela reportagem, está o princípio constitucional da livre iniciativa do setor privado (art. 1º, IV e art. 170), ao qual caberia estabelecer sua própria política de preços. 

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O empresário artístico Ricardo Chantilly diz que a cobrança diferenciada já é uma tradição no país, mas pode ser revista. "Hoje no mundo tudo é rediscutido. Se as mulheres ou os homens se sentem prejudicados, vamos discutir", diz Chantilly, que também é empresário da banda O Rappa, uma das participantes do evento questionado na ação. Para ele, antes de uma mudança de entendimento, seria preciso promover audiências públicas e ouvir os argumentos dos empresários.

 Ao analisar o ponto de vista do empresariado, o promotor de Justiça Paulo Roberto Binicheski lembra que o entendimento do setor é o de que “sendo de natureza privada e forte no princípio da iniciativa privada, sem custeio direto pelo Estado, cabe ao ente empresarial estabelecer sua política de preços e de descontos, até mesmo livre distribuição de ingressos, se assim desejar”. 

O entendimento predominante, contudo, é o de que o Estado deve intervir quando o agente privado cometer abusos. Nesse sentido, continua o promotor: “Quando a propriedade privada é mal utilizada, cabe ao Estado intervir e fazer cessar condutas perniciosas, como a discriminação com base apenas no gênero, fato que pode contribuir para fazer da mulher um mero objeto”. 

Esse também foi o entendimento da juíza. “Incontroverso que as pessoas são livres para contratarem, mas essa autonomia da vontade não pode servir de escudo para justificar práticas abusivas. Não se trata de um salvo conduto para o estabelecimento de quaisquer critérios para a diferenciação de preços”, afirma a magistrada na decisão. 

Especialistas lembram, contudo, que há casos em que a diferenciação de preços é justificável, como a cobrança de ingresso mais caro para áreas mais próximas do palco em um show, por exemplo. 

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 Empresa alvo da ação, a R2 Produções não quis dar entrevista. Por nota, afirmou que “a cobrança diferenciada de ingressos entre homens e mulheres é adotada por ser uma prática recorrente no país”, e que, apesar disso, a medida está sendo revista, “observando a necessidade de discuti-la, inclusive junto ao público, tendo em vista o reconhecimento de demandas atuais da sociedade”. 

 Jurisprudência

 A decisão sobre a ação contra a R2 Produções valerá apenas para o caso específico, mas a ação também foi encaminhada ao Ministério Público do Distrito Federal, que abriu inquérito civil público para apurar a prática e poderá promover uma ação coletiva. 

Ao instaurar a investigação, o promotor de Justiça Paulo Roberto Binicheski lembrou que debate semelhante ocorreu no estado norte-americano de Nova Jersey, no fim dos anos 1990, e que o caso foi pacificado com a criação de uma lei proibindo os preços diferenciados com base no gênero. 

Enquanto o projeto similar ainda tramita no Congresso Nacional, a pesquisadora do Idec recomenda que os consumidores que se sentirem prejudicados denunciem a prática. 

Para Deborah Sztajnberg, a criação de uma jurisprudência sobre o caso é a forma mais eficaz de combater as práticas abusivas. “Foi a partir de decisões judiciais únicas que tivemos várias conquistas, como o fim da consumação mínima e as regras do couvert artístico”, lembra a advogada.

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