| Foto: Marcelo AndradeGazeta do Povo

Está na mesa da Procuradoria-Geral da República (PGR), esperando parecer, um processo em que o Supremo Tribunal Federal (STF) vai decidir se o WhatsApp pode ou não ser bloqueado no Brasil. A discussão chegou ao tribunal depois de uma série de bloqueios, em 2015 e 2016, ordenados por juízes de primeira instância. Os magistrados fundamentaram suas decisões no Marco Civil da Internet, a Lei 12.965/2014, argumentando que o aplicativo se recusava a entregar o conteúdo de conversas eletrônicas para investigações criminais. O WhatsApp retruca que não tem acesso ao teor das mensagens graças à criptografia de ponta-a-ponta.

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Há dois processos discutindo o assunto no STF. No início de junho, os relatores das ações sobre o tema, ministros Edson Fachin e Rosa Weber, organizaram uma audiência pública em que diversos especialistas discutiram a lei brasileira e a tecnologia de criptografia do WhatsApp, que ainda levanta muitas dúvidas. Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 403, o Partido Popular Socialista (PPS) pede que o STF proíba o bloqueio de WhatsApp. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5527, o Partido da República (PR) argumenta pela inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 12 do Marco Civil da Internet, que fundamenta as decisões judiciais de bloqueio.

Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa: 

(...) 

III - suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou 

IV - proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11. 

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Os atritos entre Judiciário e internet são antigos no Brasil. Em 2007, a decisão liminar de um desembargador de São Paulo atendendo ao pedido da modelo Daniela Cicarelli, que teve um vídeo íntimo divulgado na rede, acabou bloqueando temporariamente o Youtube em todo o país. Em fevereiro de 2015, já depois da edição do Marco Civil, o primeiro bloqueio do WhatsApp foi executado depois da ordem de uma juíza de São Bernardo do Campo. A suspensão durou quase 12 horas. No final do ano, uma nova ordem judicial, dessa vez vinda de Sergipe, suspendeu o aplicativo por um dia inteiro. Em julho de 2016, mais quatro horas sem WhatsApp no Brasil. 

Na ADI 5527, o PR argumenta que “à medida que os serviços de troca de mensagens pela internet são mais disseminados na sociedade, maior se torna a dependência dos cidadãos em relação a esses serviços” e que a suspensão desses aplicativos “antes de ser uma punição à empresa responsável, torna-se, em verdade, uma medida que penaliza a própria população em geral”. Por isso, a prestação dos aplicativos de mensagens pela internet deveria submeter-se “ao princípio constitucional da continuidade do serviço, não podendo ser interrompido pelo Estado por questões de menor importância”. 

Entenda 

O Ministério Público Federal e a Polícia Federal, por um lado, são os principais interessados na solução da controvérsia, porque ela tem impacto direto nos poderes de investigação do Estado. “O que nós defendemos na audiência pública é que os incisos não devem ser declarados inconstitucionais”, afirma a procuradora Fernanda Domingos, que é coordenadora-substituta do Grupo Nacional de Trabalho de Combate aos Crimes Cibernéticos da PGR. 

Para Fernanda, a suspensão é uma medida necessária em casos extremos. “Uma das ações fala especificamente do WhatsApp, mas não é esse o ponto de vista que deve orientar a lei. Nós precisamos pensar em todos os mensageiros instantâneos e outras empresas que podem estar prestando serviços no Brasil e que porventura não tenham estabelecimento no país”, esclarece Fernanda. 

“Se o Estado assumir que o WhatsApp é um serviço essencial, que não pode ser interrompido nunca, então não dá para deixá-lo na mão de uma única empresa, sem saber a política interna dessa empresa, que pode vender nossos dados sem fiscalização, por exemplo”, diz. “Se o serviço for declarado essencial, é preciso haver alguma regulação estatal. Agora, se for uma empresa privada, então está submetida à lei”, completa. 

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“Especificamente sobre o WhatsApp, nós entendemos que não teria sido necessário suspender o serviço naquela ocasião, porque ele faz parte do grupo econômico do Facebook, então poderia ter sido aplicada uma multa por descumprimento de ordem judicial antes de suspender o serviço”, avalia a procuradora. “Mas e se o problema fosse com outra empresa, como o Telegram, que não tem sede no Brasil e que estivesse descumprindo ordem judicial ou cometendo algum ilícito? Como poderíamos atingir essa empresa sem a previsão do bloqueio?”, completa. 

Dennys Antonialli, diretor-presidente do Centro de Pesquisas Internetlab, destaca que, se um aplicativo tiver uma atividade-fim ilícita, há fundamentos jurídicos para sua suspensão. “Foi o caso da suspensão do aplicativo Tudo Sobre Todos, que era questionável do ponto de vista das garantias constitucionais da privacidade”, diz Antonialli. Em 2015, um juiz determinou o bloqueio do site Tudo Sobre Todos, que comercializava dados pessoais de brasileiros. Segundo o juiz, o site violava a Constituição Federal, o Marco Civil da Internet e a lei de Cadastro Positivo.

Mas se o aplicativo exercer uma atividade lícita, o diretor do InternetLab não vê fundamentos jurídicos que autorizem uma suspensão. “Além de esses aplicativos como o WhatsApp exercerem uma atividade lícita, garantida pelo direito à comunicação, há outros meios menos gravosos de fazer cumprir uma decisão judicial, como a aplicação de multas, a prisão de representantes da empresa no Brasil, ou o recurso a acordos de cooperação internacional”, avalia. 

Criptografia 

Embora as ações no STF não tivessem a intenção de discutir criptografia, o tema dominou as discussões nas audiências públicas. “É compreensível que os ministros tenham pedido uma audiência pública sobre criptografia, porque esse é um tema que desperta muitas dúvidas em todos nós. A grande dúvida era se o WhatsApp não podia mesmo ter colaborado com a Justiça naqueles casos”, diz a procuradora Fernanda Domingos. 

Demi Getschko, engenheiro e um dos pais da internet no Brasil, explica que a chamada criptografia forte, se adequadamente feita, é muito difícil de ser quebrada: “Às vezes demora anos para quebrar uma única mensagem, usando os computadores mais avançados. Ninguém vai investir nisso e ninguém dispõe desse tempo”, resume. 

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Fernanda faz questão de destacar que a PGR não é contra o uso de criptografia. A preocupação dos investigadores é que isso se torne uma carta branca para a criminalidade esconder-se do Estado. “O Ministério Público não é contra a criptografia. Nós usamos, os bancos usam, todos usam. Mas nós, como agentes de investigações, precisamos de alguma solução para obter essas mensagens quando elas são usadas por criminosos”, afirma a procuradora. “As organizações criminosas estão hoje com seus mensageiros blindados, planejando homicídios, assassinatos de autoridades”, completa. 

“As audiências públicas mostraram que existem meios técnicos, se as empresas colaborarem, sempre com supervisão da Justiça, de burlar a criptografia de ponto-a-ponto. Outra solução, como a adotada na Alemanha, seria autorizar o Estado a infectar com vírus os celulares e computadores de investigados. Mas isso ainda depende de um debate público mais amplo, que precisa passar pelo Legislativo”, avalia a procuradora. 

Getschko elenca alguns dos meios de burlar mesmo a criptografia de ponta-a-ponta. “Existem maneiras de danificar a criptografia, se você tiver apoio de quem está oferecendo o serviço, o intermediário. Você pode se fazer passar pelas pontas da conversa: é a chamada técnica man-in-the-middle [homem no meio]; outra forma são as chamadas back doors [portas dos fundos], que são uma espécie de terceira chave de acesso ao criptografado, por ação do intermediário”, completa. 

Mas o engenheiro questiona a possibilidade de uso dessas técnicas, mesmo em situações controladas pela supervisão da Justiça. “É errado supor que se for autorizado o uso dessas ferramentas, esses recursos não vão cair em mãos alheias. Veja o caso do vírus wanna cry: a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos descobriu um furo de segurança nos sistemas da Microsoft e resolveu guardar para si a informação, quando quisesse xeretar alguém, mas isso vazou”, avalia. “Permitir esses sistemas seria como se todas as chaves de casas tivessem uma cópia na delegacia de polícia, para ser usada em caso de emergência. Mas quem vai garantir a segurança dessas chaves todas?”, compara. 

De fato, a Lei de Intercepção Telefônica (Lei 9.296/1996), prevê a possibilidade de grampo judicial do conteúdo das ligações e regulamenta seu uso. Algumas resoluções da ANATEL obrigam as empresas telefônicas a manterem recursos tecnológicos para operacionalizar a suspenção do sigilo das comunicações, quando a Justiça determina. Mas nenhuma obrigação desse gênero existe para aplicativos como o WhatsApp. Dennys Antonialli ressalta essa diferença. “Hoje, não há nenhuma determinação legal no Brasil para que as empresas tenham de desenhar aplicativos de modo a permitir a quebra da criptografia, nem há vedação ao uso de criptografia em si”, diz.  

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“Apesar de a questão da criptografia ter aparecido nas discussões, o STF não deveria decidir sobre isso nessas ações. Seria muito ruim se o STF determinasse a legalidade ou a ilegalidade da criptografia, porque as ações não pedem isso e a discussão sobre o assunto deve considerar uma série de coisas. A discussão é ampla”, completa Antonialli.