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Imagem ilustrativa. | Pixabay/Reprodução
Imagem ilustrativa.| Foto: Pixabay/Reprodução

Uma mulher, vítima de trabalho escravo por 10 anos e casamento à força, tendo prestado serviços em várias cidades dos Estados Unidos sem remuneração, recebeu cerca de US$ 8 milhões em indenização em um julgamento no estado do Kansas, nos Estados Unidos. Acredita-se que essa é a maior indenização dada em uma sentença relacionada ao tráfico de pessoas na história dos EUA.

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Kendra Ross, agora com 27 anos, disse que foi vítima de um grupo, originalmente chamado de Nações Unidas do Islã, que em 1978 se separou da Nação do Islã, liderada por Louis Farrakhan. Posteriormente, o grupo mudou seu nome para “The Value Creators” (“Os criadores de valor”, em tradução livre), com sede em Kansas City, Kansas, tendo propriedades comerciais e residenciais em outras sete cidades do país.

Por 10 anos, Ross foi forçada a trabalhar nas padarias ou restaurantes do grupo e morar em suas casas. Separada de sua mãe aos 12 anos, ela foi obrigada a casar com um membro do grupo aos 20 anos. Ela também foi enviada contra sua vontade de Kansas City para Atlanta, depois para Newark, Harlem, Tennessee e Ohio, antes de fugir do grupo aos 21 anos.

“The Value Creators” é dirigido por Royall Jenkins, que não respondeu às chamadas da reportagem. Jenkins é acusado de emitir ordens estritas que regem a vida dos membros do grupo, desde onde devem viver e trabalhar até sobre a maneira como falam, o que comem e com quem se casam. Os membros, supostamente, são privados de cuidados de saúde adequados e as crianças são educadas nas escolas não certificadas do grupo. Jenkins apresentou um documento de defesa confuso no caso, mas não respondeu formalmente ao processo.

“Esta organização acabou tirou a infância de Ross”, disse a advogada, Betsy Hutson, do escritório de advocacia McGuireWoods, que em 2015 começou a representar um abrigo para vítimas de tráfico, onde Ross ficou. “Eles a despojaram de seus 19 anos de vida, forçaram-na a trabalhar sem remuneração e submeteram-na a condições desumanas”. Ross testemunhou em fevereiro que ela sofre de transtorno de estresse pós-traumático, transtorno depressivo profundo, pesadelos regulares e ansiedade.

Depois que ela testemunhou, o juiz Daniel D. Crabtree lamentou o caso. “O modo como você foi tratada é inadmissível”, dizem os autos. “Não é como nos tratamos uns aos outros na América. Não é a maneira como nos tratamos aqui no Kansas”. Então o juiz desceu da tribuna, caminhou até Ross e apertou a mão dela. “Ele disse: ‘É uma honra e um privilégio conhecê-la’”, disse a advogada de defesa.

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Só em 2003 as leis federais nos Estados Unidos passaram a permitir que as vítimas de tráfico ingressassem ações civis contra seus captores. Martina Vandenberg, fundadora do Centro de Luta Legal contra o Tráfico Humano, disse que seu grupo acompanhou quase 280 processos envolvendo tráfico de seres humanos, e o caso de Ross foi “a maior condenação por uma vítima que já ouvimos falar”. No banco de dados da entidade, Vandenberg disse que 93% dos casos estão relacionados a reivindicações de trabalho forçado.

“Extraterrestres” e abusos

Jenkins, o líder das Nações Unidas do Islã e do “The Value Creators”, disse que em 1978 ele foi sequestrado por anjos ou cientistas, escoltado para outra galáxia em uma espaçonave, informado de que ele era “O Ser Supremo” e instruído sobre como governar a Terra, de acordo com o processo de Ross. Um de seus primeiros atos ao retornar à Terra foi se separar da Nação do Islã, e ele supostamente instruiu seus seguidores a se referirem a ele como “Alá na Terra”, “Alá em Pessoa” ou “O Ser Supremo”, disse Ross.

Jenkins tinha pelo menos 13 esposas e 20 crianças em todo o país, informou o processo de Ross, e formou comunidades de seguidores em tempo integral em Kansas City e em outros lugares.

“A doutrina da UNOI enfocou principalmente a supremacia de Jenkins como Deus na Terra”, afirma o processo. “Como tal, os discípulos da UNOI – e agora do ‘The Value Creators’ – consideram o ensino de Jenkins como profético”. Os ensinamentos enfatizam a superioridade dos negros em relação às pessoas brancas e que “as mulheres são inferiores aos homens e que as mulheres devem se submeter completamente aos homens para escapar da condenação eterna”, afirma o processo.

Ross disse em seu processo aberto em setembro passado que aos 11 anos ela foi forçada a trabalhar em uma padaria das Nações Unidas de Islã por algumas horas antes da escola, e um turno de oito horas após a escola, pelo qual ela nunca foi paga. Aos 12 anos, ela foi removida da casa de sua mãe e enviada para uma casa de mulheres administrada pelo grupo, enquanto continuava a trabalhar como babá ou limpando casas sete dias por semana. Ela testemunhou que a sua escolaridade irregular, que muitas vezes consistia em assistir a filmes de terror, foi interrompida quando ela tinha 15 anos.

Aos 16 anos, Ross foi transferida para Atlanta sem o consentimento dela, e passou a trabalhar em tempo integral em um restaurante de propriedade de um grupo e, quando voltasse para casa, cozinharia e limparia uma casa de cerca de 15 pessoas. Mais tarde naquele ano, ela foi transferida de volta para Kansas City, onde ela disse que foi submetida a abuso físico e emocional pelo zelador de sua casa.

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Aos 17 anos, Ross disse que foi transferida para Nova Jersey, onde trabalhou como cozinheira e garçonete em restaurantes em Newark e no bairro de Harlem, em Nova York. Ela disse que foi orientada a evitar contato com qualquer fiscal de trabalho e, se algum aparecesse, ela deveria “dar um passeio”. Dois anos depois, ela foi transferida para Dayton, Ohio, onde trabalhava seis dias por semana, das 6h às 23h, em outro restaurante UNOI sem pagamento.

Em seu depoimento no tribunal, perguntaram a Ross se ela recebia dias de folga ou férias. “Não”, ela disse, “quero dizer, o aniversário de Royall era como se fosse o Natal, então todos íamos para o Kansas celebrar esse aniversário, depois voltávamos a trabalhar”. Ela estimou que houvesse cerca de 600 membros das Nações Unidas do Islã e não sabia quantos membros do “The Value Creators”. O grupo mudou de nome em 2015.

Nenhum advogado compareceu ao julgamento para defender Jenkins ou o “The Value Creators”.

Em 2011, aos 20 anos, o grupo “facilitou um casamento entre a Ross e outro membro do UNOI por meio de um médico psíquico que alegou ter um conhecimento único de compatibilidade entre os membros da UNOI”, afirmou o processo. Ela disse que os maridos do UNOI “praticavam regularmente a poligamia” e que seu casamento não era legal.

Em 2012, Ross fugiu do grupo e acabou entrando em um abrigo para vítimas de tráfico.

Os advogados de Ross procuraram conseguir a indenização pelas milhares de horas de trabalho não pagas que ela havia realizado ao longo dos anos. O juiz concedeu-lhe US$ 453.517 pela restituição. Ele também concedeu US$ 2,92 milhões por problemas emocionais, US$ 3,37 milhões por danos morais e quase US $ 1,2 milhão por danos de extorsão e horas extras não pagas.

Executar a pena será desafiador, já que Jenkins se esconde e acredita-se que agora viva no Arizona. Por outro lado, o “The Value Creators” possui várias propriedades comerciais e residenciais nas cidades onde Ross morava.

Ross não quis dar entrevistas, mas emitiu um comunicado agradecendo seus advogados, que receberam US $ 117 mil em honorários e custos. “Estou especialmente feliz que a justiça tenha sido cumprida e que Royall, UNOI e ‘The Value Creators’ estejam expostos”, disse Ross. “Embora esta vitória legal não mude qualquer coisa que tenha acontecido no passado, isso me faz sentir como se tivesse sido feita alguma justiça. Eu sempre vou viver com as memórias do passado. Para todos os que ainda fazem parte do ‘The Value Creators’ não é tarde demais para sair, para ser livre e obter ajuda, justiça e reabilitação”.

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