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O ministro da Justiça, Sergio Moro. | Antonio Cruz
O ministro da Justiça, Sergio Moro.| Foto: Antonio Cruz

Sob a rubrica “Medidas para introduzir soluções negociadas no Código de Processo Penal e na Lei de Improbidade”, o anteprojeto de autoria do Ministro da Justiça Sergio Moro, denominado Projeto de Lei Anticrime, propõe, dentre outras medidas importantes, pontuais modificações na legislação processual penal brasileira com vistas à sedimentação da chamada “justiça negocial” relativamente às questões criminais em solo pátrio. 

A possibilidade de acordo entre acusação e o provável autor do fato delitivo já existe entre nós, mas se insere no contexto limitado da transação penal em casos de delitos considerados de menor potencial ofensivo (assim definidos aqueles em que a pena máxima cominada seja igual ou inferior a dois anos e sujeitos a julgamento perante os Juizados Especiais Criminais). Evita-se, assim, com base no artigo 76 da Lei 9.099/1995, a instauração da ação penal em troca da imediata aplicação de pena não privativa de liberdade, ou nos casos de suspensão condicional do processo, para os crimes cuja pena mínima seja igual ou inferior a um ano, oportunidade em que, recebendo a denúncia, o juiz deverá suspender o processo até que o denunciado cumpra as condições estabelecidas no acordo, extinguindo a sua punibilidade nos termos do artigo 89 da lei.

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O que o Projeto de Lei Anticrime encaminhado ao Congresso pelo Ministério da Justiça pretende é estender essa negociação para casos de maior gravidade, além de estabelecer a obrigatoriedade de assunção de culpa pelo imputado (elemento inexistente na transação penal e na suspensão condicional do processo), seja evitando o oferecimento da denúncia e o início do processo (acordo de não persecução penal para delitos cuja pena máxima seja inferior a quatro anos), seja possibilitando a celebração do acordo após o recebimento da acusação (acordo penal para imediata aplicação das penas criminais). 

Há, como se deveria imaginar, pontos positivos e negativos na proposta. Atendendo aos limites dessa intervenção, e deixando registrado que existem vários aspectos inviáveis de apontamento nesta sede, marcarei o que, de início, parece reclamar mais atenção da comunidade jurídica e da opinião pública. 

Os pontos positivos são de percepção mais fácil. O nosso sistema de Justiça penal é reconhecidamente ineficaz. Em razão de uma já tradicional e lamentável precariedade do aparato estatal especialmente na sede investigativa estadual, com delegacias de Polícia Civil sem estrutura material adequada e com número reduzido de servidores, as investigações dos delitos de maior frequência acabam sendo extremamente prejudicadas, refletindo nos processos judiciais que dependem, para sua efetividade, justamente dos elementos investigativos colhidos em sede policial. Por evidente, a solução correta para esse crônico problema seria um programa de investimento sério em infraestrutura e inteligência policial. Mas não convém descartar alternativas de implementação mais célere e que possam resultar em uma maior eficiência da resposta estatal, ao mesmo tempo em que parecem contribuir para o deslinde do caso penal, fornecendo à sociedade a percepção de que as finalidades declaradas da pena criminal (retribuição e prevenção do fenômeno delitivo, com todas as suas variantes teóricas) poderiam, enfim, ser atingidas. 

Encontrar os pontos negativos da intenção legislativa em exame, por outro lado, é tarefa que exige uma visão um tanto mais crítica e cuidadosa. Mas, como todo esforço racional, é sempre mais compensador. 

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Em primeiro lugar, não se pode jamais esquecer que a solução negociada está inserida no problemático e desigual embate entre o Poder de Punir e o Estado de Liberdade. O primeiro se trata de exceção em qualquer Estado de Direito como mecanismo último na contenção dos desvios comportamentais, representado em juízo pelo Ministério Público, órgão extremamente preparado em termos de estrutura e de pessoal, atuando em nome de toda a sociedade contra apenas um de seus membros. Já o segundo é regra nos Estados democráticos cuja missão precípua é garantir – e não controlar – as liberdades individuais, mas representado pelo acusado, isolado, responsável pela contratação de advogado próprio ou sujeito a estar atendido por defensores públicos nomeados ad hoc.

Assim, parece claro que o debate a ser travado entre a acusação e o réu para atingimento do acordo pode, em virtude deste desequilíbrio, acarretar desvantagens ao arguido. Ainda mais quando a maior clientela do processo penal (ainda) é constituída por pessoas desprovidas de recursos para contratação de defensor técnico de sua confiança, algo que não consegue ser remediado pela Defensoria Pública, cuja estrutura impede, na dimensão necessária, o cumprimento do relevantíssimo papel constitucional que lhe foi reservado. 

A formalização do acordo com o Ministério Público impõe ao acusado a renúncia a uma série de direitos arduamente instituídos com vistas a conferir certo equilíbrio a esta balança descompensada. O imputado será obrigado, como condição para pactuação da pena, a não questionar o confisco de bens que, sob indicação do Ministério Público, possam constituir produto ou proveito do crime; a não colocar em marcha os instrumentos inerentes à ampla defesa e ao contraditório, não podendo produzir provas nem interpor recurso; a abrir mão do direito de não autoincriminação e, consequentemente, de permanecer em silêncio, assumindo expressamente a sua culpa, mesmo que as coisas não sejam exatamente assim no plano material. 

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Se tivermos em mente que no Direito Processual Penal de matriz democrática o verdadeiro interesse público é a proteção das prerrogativas fundamentais do imputado – como instrumento indispensável para afastar totalitarismos de regimes políticos dos mais variados matizes – talvez seja possível perceber que os riscos de importação automática deste instituto típico da common law à nossa particular realidade, da maneira como está previsto na proposta legislativa em análise, são maiores do que as suas eventuais e aparentes vantagens. 

Como se ensina desde os precursores do Iluminismo, a Justiça não se faz a todo custo, e fundamentalmente não se faz às custas da violação dos interesses de indivíduos que constituem, eles mesmos, a razão de existir da própria sociedade que se pretende e deve proteger. E é por esta razão que a assunção de culpa por um acusado eventualmente inocente, que assim age em razão do receio de ser submetido a julgamento e condenado a uma pena maior, ou por outro motivo qualquer como livrar um comparsa ou um parente da responsabilidade criminal, não pode ser taxada de mero dano colateral a ser suportado em nome de uma mais célere “Justiça” penal relativamente a outros imputados possivelmente culpados. Uma coisa não compensa a outra! 

Seja como for, a proposta obrigatoriamente demanda, por atingir tema tão delicado, muito debate e muita reflexão, em especial porque o expansionismo do Direito Penal material, cujo alcance atualmente se alastra para os mais diversos setores da vida humana, tem feito com que o marco divisório entre autor e vítima de um delito seja cada vez mais tênue e, portanto, as modificações levadas a efeito nesta seara certamente são de interesse de todos nós. 

Luiz Gustavo Pujol é Advogado Criminalista e professor de Direito Processual Penal na Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

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