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As operações contra a corrupção estão acirrando disputas antigas que têm repercussões práticas na vida de todos os brasileiros. Quem fala ao telefone ou tem celular – e já são mais de 240 milhões de aparelhos no Brasil - deve se perguntar: qual é a proteção que o direito brasileiro garante ao sigilo das comunicações e dos dados pessoais, como fotos e mensagens? Ao mesmo tempo, o problema ganha importância no Supremo Tribunal Federal (STF), que começa a discutir, nesta sexta-feira (02), a possibilidade de bloqueio do WhatsApp por decisões judiciais.

Por trás dessa discussão está um texto seminal de 1993, publicado pelo jurista Tércio Sampaio Ferraz Junior, que orientou toda a jurisprudência brasileira em matéria de proteção de dados e sigilo das comunicações. Essa distinção, elaborada pelo professor aposentado da USP, foi adotada pelo STF, pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) e por grande parte da jurisprudência brasileira. Em entrevista ao Justiça & Direito, porém, Sampaio Ferraz reconheceu que a dicotomia que norteou seu trabalho, há quase 25 anos, perdeu o sentido. 

“Não se trata mais de um ‘meu’ contra um ‘seu’, mas de alguma coisa nova que envolve todos. Nosso vocabulário jurídico ainda é pobre, não dá conta disso,” afirmou o jurista.

Sampaio Ferraz também falou ao Justiça & Direito sobre os impactos das mudanças tecnológicas no mundo jurídico e na proteção de dados pessoais e sobre o protagonismo do juízes, que “operam conceitos velhos em um mundo novo” e com a responsabilidade de determinar o que a lei diz sem o auxílio da doutrina. “Se eu fosse juiz hoje, estaria angustiado”, revelou.

Na íntegra da entrevista, o jurista também critica a noção de transparência e de interesse público que justifica as decisões de derrubar o sigilo das interceptações telefônicas.

Há quase 25 anos o senhor escreveu um artigo sobre sigilo das comunicações e de dados que norteou toda a jurisprudência brasileira. Como o texto envelheceu – ou não – nesse período? 

No artigo original, eu defendo que a discussão sobre dados envolve dois conceitos jurídicos importantes. A questão é se e a expressão “dados”, de acordo com a Constituição Federal, aponta para algo que envolve o direito de propriedade ou o direito de liberdade. Essa discussão ainda não envelheceu. De um lado, isso parece apontar para problemas como busca e apreensão. Busca e apreensão do quê? Existe algo – uma coisa, uma res – a ser apreendido? Ou você está atingindo simplesmente o direito de liberdade? Essa é uma discussão que não envelhece. O problema hoje é a própria concepção do que são dados. Muita coisa aconteceu nesses 25 anos. Nesse caso, sim, eu vejo que há alguns problemas e mudanças trazidos pelas inovações tecnológicas. 

Que tipo de problema surgiu? 

Na época, eu defendi a tese de que a norma constitucional, ao falar do sigilo de dados, defendia a comunicação e, por isso, eu entendia que o que estava em jogo era liberdade, e não propriedade. Essa tese é que fica discutível hoje, quando pensamos na noção de dados. Minha posição implicava a possibilidade de separar a comunicação da sua base, do seu substrato. Dizer, por exemplo, que a posteriori você poderia pedir a impressão de dados e o juiz determinar que esses dados fossem apreendidos. 

Hoje em dia, o caso do WhatsApp mostrou que isso ficou complicado. Há pessoas que dizem que não é mais possível separar comunicação e seu substrato. A criptografia embaralha tudo, não há como dizer tecnicamente onde está a comunicação, onde estão as mensagens. Essa é uma questão que está aparecendo e que não se podia discutir na época. 

Quando o senhor se refere aos dados à luz do direito de propriedade... 

Essa era uma discussão que existia nos EUA. Inclusive, havia pronunciamentos da Suprema Corte americana sobre isso. Nessa proteção, que eles tinham – e tem – o que estava envolvido era a liberdade, e eu achei que podíamos adaptar bem ao Brasil, inclusive citando o Pontes de Miranda, que diz que esse sigilo que envolve a privacidade é um sigilo que protege a liberdade. Eles chamam isso de liberdade negativa: a liberdade de divulgar algo para quem você quiser. 

Isso é justamente o que está sendo posto em questão: as coisas continuam assim, ou, nas redes, na forma como se lida com dados hoje, não é mais possível falar em liberdade negativa? Na correspondência, no telefone, ainda é possível. E no mundo dos dados? 

Então nós teremos de tentar pensar os dados no âmbito do direito de propriedade ou criar noções novas para entender esses problemas? 

Essa dicotomia entre liberdade e propriedade funcionava razoavelmente bem naquela época [1993]. Já havia problemas, mas funcionava. O par conceitual permitia ajeitar esses problemas. Eu reconheço que, atualmente, nós caminhamos para uma situação em que essa dicotomia se apaga. 

O senhor pode dar um exemplo disso? 

Em que medida a sua senha bancária é algo seu, próprio da sua identidade bancária? Se nós olharmos para o direito mais antigo – liberdade/propriedade – é possível dizer que essa senha é sua, é propriedade e, porque você tem essa propriedade, você usa do jeito que quer. Mas hoje em dia está difícil sustentar isso, porque muita gente usa essa liberdade sobre esse “próprio”, dá a senha para terceiros e o terceiro entra na rede bancária com a sua senha. Mas então a rede bancária retruca: “a senha foi dada para você, mas a rede é minha”. Esse “meu” do banco também está sofrendo uma enorme mutação. Nós precisamos repensar esse tipo de relação: não se trata mais de um “meu” contra um “seu”, mas de alguma coisa nova que envolve todos. Nosso vocabulário jurídico ainda é pobre, não dá conta disso. É como em relação aos dados, que parecem viver em rede. 

O senhor tem alguma resposta para esse problema? 

Eu levantei a questão. Não há uma resposta clara para isso. Por exemplo, é preciso entender, para começar, o que é criptografia, se existe uma criptografia absoluta, se as pessoas têm direito à criptografia absoluta. É uma sequência de questões. 

De qualquer modo, seu trabalho gerou, na jurisprudência, uma interpretação de que os dados armazenados não se submetem ao regramento da Lei de Interceptações e ao inciso XII do artigo 5º da Constituição, embora, hoje, esses dados possam revelar muito sobre a intimidade das pessoas. Ainda é adequado dizer que dados armazenados têm uma proteção mais fraca que a comunicação em fluxo? 

Na época em que escrevi esse artigo, os dados sobre os quais eu falava eram dados de verificação pública da personalidade, como lugar de nascimento, nome, etc. Não ia muito além disso. Para ser franco, o que gerou meu artigo foi a questão do sigilo de dados de cartão de crédito. O problema era se as empresas de cartão de crédito estavam obrigadas ou não a entregar listas dos seus usuários. O que eu dizia, na época, era que a lista de identificação de nomes era pública, como era público o fato de alguém ter conta em um banco. Mas entrar na movimentação bancária, de fora, como se fosse um “hacker oficial”, isso eu achava que não podia. Hoje, esse tipo de distinção, eu reconheço, está difícil de ser feita. 

Inclusive, há recursos curiosos de exposição. Eu não sou mais pai de adolescentes, mas eu fiquei sabendo que agora os adolescentes têm à disposição aplicativos em que eles mandam às vezes fotografias íntimas que são destruídas em poucos segundos. Isso mostra que vivemos em um mundo completamente diferente. O que é o “privado” e o que é o “privado comunicável” nesse mundo de hoje está pondo em xeque teses como essa que eu defendia 25 anos atrás, pensando em conta bancária e cartão de crédito. Hoje está muito mais difícil generalizar essa tese. 

Mas os tribunais brasileiros continuam aplicando essa tese para decidir essas questões. 

Continuam, porque nós não temos ainda um desenvolvimento coerente de uma teoria jurídica para essa nova situação. Nós continuamos usando a teoria de um mundo físico anterior. É mais fácil para um juiz entender isso com os instrumentos antigos do que entender os instrumentos novos de tecnologia. Nós ainda trabalhamos com conceitos velhos. Os juízes operam conceitos velhos em um mundo novo.

Falando nisso, como o senhor vê as decisões de retirar o sigilo de gravações telefônicas na Operação Lava Jato? 

Deveria haver um limite para isso, sobretudo para um juiz do Supremo Tribunal Federal. Nem a lei, e muito menos uma decisão judicial, pode avançar em situações em que existam direitos de terceiros – e isso ainda olhando com o instrumental antigo. Em um nível mais genérico, tendo em vista o interesse público, a questão de abrir tudo e correr o risco de atingir terceiros, ou de fechar tudo, é uma discussão antiga. Mas eu não teria aberto tudo isso. Acho um absurdo. Nós estamos vivendo no Brasil uma ideia perigosa de transparência. Transparência não é isso. 

Nos anos 1970, um autor chamado Niklas Luhmman, defendia a ideia, que me parecia muito razoável, que o princípio da publicidade não é um princípio que deve ser lido empiricamente, a depender dos fatos, isto é, a função desse princípio não era transformar tudo em transparente, fazer com que tudo seja público, é apenas garantir que possa ser público se houver interesse. A função dele não era deixar tudo transparente. 

Como não? 

Estava claro, por exemplo, que podia haver alguns casos com sigilo, o que também não significava que todos os outros processos deveriam ser públicos. Eles eram públicos no mundo físico, no sentido de que se alguém quisesse entrar lá, não podia fechar a porta. O princípio explicava também que algumas decisões você pudesse tomar intra corporis, como era nos Estados Unidos: a discussão entre os juízes não é pública, o que é público é o anúncio da decisão. Hoje em dia parece que, na cabeça de muita gente, tudo tem que ser transparente. 

O princípio da publicidade não é fazer com que tudo possa ser acessado de fato, porque aí você perde completamente o controle. O mundo de hoje propicia isso, mas nós devemos ter cautela. Transparência é um princípio jurídico, não sociológico, ou do mundo econômico. Se nós entrarmos nessa, vamos perder completamente o consenso social do que íntimo, do que é privado, e do que pode ser público. Há um equívoco no modo como temos tratado o princípio da transparência. 

Esses problemas parecem estar relacionados com o fato de os juízes terem de continuar resolvendo casos nesse mundo novo por meio de um instrumental velho. Como um juiz pode se situar? 

O juiz se situa com muita dificuldade, porque ele não tem, como antigamente, uma doutrina que possa auxiliá-lo a decidir. A própria doutrina está falhando aí. Antigamente, o juiz tinha como um meio de intermediação a elaboração doutrinária, mas hoje as coisas estão invertidas. Na verdade, estamos em um mundo que joga no juiz toda a responsabilidade, nós estamos dizendo para o juiz “descubra você mesmo”, porque a jurisprudência é que vai determinar o que diz a lei. Nós estamos seguindo outro caminho que não é o nosso, do direito romano-germânico. 

Aí começam a aparecer situações como essas da delação premiada, em que você vê um Procurador-Geral concedendo anistia total para uns, mas não para outros, o que tem de ser avaliado em termos de utilidade. Talvez isso faça sentido no mundo anglo-saxônico, mas no nosso mundo não fazia. Nós sempre pensamos as questões jurídicas como corretas ou incorretas, algo ou é lícito ou é ilícito, ou é legal ou é ilegal. Agora, não. Então você joga nas mãos do juiz todas essas questões. Eu diria então que não só o juiz não tem um instrumental doutrinário, como ele tem uma carga de responsabilidade terrível. Se eu fosse juiz hoje, estaria angustiado.

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