Souvenires à venda na Praça Vermelha, em Moscou, com imagens de Yuri Gagarin, Stalin, Lenin, Putin e do ursinho Misha, mascote dos Jogos Olímpicos de 1980| Foto: EFE/EPA/SERGEI ILNITSKY
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Na manhã da segunda-feira (26 de junho) seguinte ao final da dita “Marcha pela Justiça” conduzida pelo Grupo Wagner, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, disse que o Ocidente não estava envolvido de forma alguma no motim.

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“Deixamos claro que não estávamos envolvidos. Não tivemos nada a ver com isso. Isso foi parte de uma luta dentro do sistema russo”, disse o presidente em uma coletiva na Casa Branca. Contudo, desde então, muitas vozes nas redes sociais passaram a interpretar a sucessão dos eventos de outro modo, alimentando inúmeras teorias da conspiração com os mais distintos personagens.

Houve quem enxergasse a teoria aparentemente improvável de que o motim foi organizado pela CIA e realizado como uma espécie de distração para desviar a atenção das últimas denúncias envolvendo o presidente americano e seu filho, Hunter Biden.

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Embora a extensão dos tentáculos de tal trama internacional possa parecer um tanto quanto exagerada, envolvendo atores e interesses na aparência diametralmente opostos, as verdadeiras intenções da rebelião do Wagner contra a liderança militar da Rússia ainda deixam perplexos os analistas.

Apoios inesperados

No momento em que o líder dos mercenários, Yevgeny Prigozhin, manifestava sua revolta contra determinados setores do poder político-militar russo, nominalmente o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, e Valery Gerasimov, chefe do Estado-Maior, suas falas foram postadas e espalhadas por grupos dos mais diversos matizes do nacionalismo russo, insatisfeitos com a condução das hostilidades contra a Ucrânia.

Porém, as palavras de Prigozhin não abalaram somente o status quo do Estado-Maior e sim toda a justificativa para a guerra na Ucrânia, fazendo com que muitos comentaristas anti-Putin revelassem distintos graus de empolgação com suas palavras. Mikhail Khodorkovsky, o ex-oligarca da indústria petrolífera russa, agora exilado na Grã-Bretanha, rapidamente emergiu como um dos mais improváveis apoiadores do levante.

“Prigozhin repetiu palavra por palavra o que nós, a oposição, temos dito desde o início da guerra: seu objetivo é a barbárie e a razão oficial da guerra… é uma bobagem na qual ninguém acredita”, escreveu ele para as mais de 230 mil pessoas que o seguem em seu canal no Telegram.

Simultaneamente a tal posicionamento, até mesmo os comandantes dos batalhões voluntários russos que lutam ao lado da Ucrânia, como o Liberdade para a Rússia (LSR) e o Corpo de Voluntários Russos (RDK), demonstraram interesse no que acontecia em sua pátria-mãe, conclamando às forças não-alinhadas a Putin e às partes pró-guerra que ficassem atentas a possíveis desdobramentos.

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Denis Kapustin, líder do RDK, inclusive postou uma mensagem na qual disse que, apesar de estarem em lados diametralmente opostos do conflito, acreditava que, à sua própria forma, Prigozhin era uma espécie de patriota.

“Acho que, embora estejamos em lados opostos das barricadas e tenhamos pontos de vista diferentes sobre o futuro da Federação Russa, posso chamá-lo de patriota da Rússia, sem sarcasmo ou ironia”, disse Kapustin.

Possíveis hipóteses do que aconteceu

Uma rebelião que foi capaz de unir grupos adversários, que algumas horas antes matavam uns aos outros no front, é um terreno fértil para teorias da conspiração. Somando-se a isso, a própria sequência de eventos sugere que a insurreição foi planejada com antecedência, pois sua escala e operação requereria várias semanas de preparação.

O próprio Prigozhin justificou a rapidez das manobras de suas formações com o argumento de que elas já haviam planejado ir a Rostov para entregar seus equipamentos. Contudo, isto não explica o progresso rápido, coordenado e quase desimpedido das tropas do Wagner por diferentes rotas em direção a Moscou.

Segundo o jornalista pró-russo Maxim Shevchenko, antigo desafeto de Prigozhin, o motim foi apenas um espetáculo encomendado pelo Kremlin com a intenção de servir a um propósito oculto, embora não se saiba qual. O jornalista argumentou que, dado o quanto Prigozhin “deve ao presidente”, ele não poderia ter lançado tal operação sem seu conhecimento e consentimento prévios.

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Deste modo, Shevchenko leu a insurreição como uma tentativa de “desvelar algum outro motim ou conspiração real que teria sido muito mais difícil para o governo administrar”. Já a editora-chefe da Russia Today (RT), Margarita Simonyan, sugeriu que o motim pode ter sido uma tentativa deliberada de enganar o alto comando do exército ucraniano em suas operações de contra-ataque.

Fato é que o motim deixou os analistas políticos e propagandistas dentro da Rússia absolutamente desnorteados, em busca de alguma explicação para o aparentemente inexplicável, uma vez que Putin nunca antes havia precisado de dramatização alguma para suas ações, ou sequer conduzir uma operação false flag, clandestina, para obter algum ganho político.

O duradouro silêncio da mídia russa antes que surgisse alguma narrativa oficial mostra que foi pega de surpresa juntamente com o Estado-Maior, o que não ocorreria se o golpe fosse realmente uma farsa.

A conspiração como contenção de danos

Logo após o final do motim, a mesma editora da RT sugeriu que tudo pode ter sido uma manobra da CIA para interferir na política russa. O próprio Putin sugeriu esta possibilidade em seu discurso de 26 de junho, quando disse que os fatos teriam sido articulados pelos “neonazistas em Kiev e seus patrões ocidentais”.

Respectivamente, o ministro das Relações Exteriores, Sergei Lavrov, e o chefe da Guarda Nacional russa, Viktor Zolotov, acusaram o Ocidente de instigar a revolta, e o chanceler prometeu uma investigação sobre o papel dos serviços de inteligência ocidentais na tentativa de golpe.

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De acordo com Christopher Paul e Miriam Matthews, autores de um estudo sobre a propaganda russa, neste contexto, a sucessão de teorias conspiratórias contraditórias ajudou a formar na população russa uma cosmovisão sobre os acontecimentos que, no final, tornou-se favorável aos interesses do Estado.

Para eles, o método tradicional do bombardeamento de informações não confirmadas – buscando a dianteira em qualquer acontecimento, ter a primeira voz em relação a ele – é um aliado da contradição no quesito de guerra propagandística, pois as versões descartáveis, sucessivas e contraditórias tornam a população letárgica e mais maleável a uma explanação posterior, massiva e final dos órgãos oficiais de comunicação.

“Se uma falsidade ou deturpação for exposta ou não for bem recebida, os propagandistas irão descartá-la e passar para uma nova (embora não necessariamente mais plausível) explicação. A falta de compromisso com a consistência também é aparente nas declarações do presidente russo”, disseram os autores em seu estudo.

Deste modo, o ciclo noticioso sobre as consequências do motim do Grupo Wagner, que ainda se desdobra, poderia ser classificado por seus frutos na comunicação oficial russa como uma espécie de “duplo-pensar” orwelliano, em sua versão 3D e pós-moderna.

As versões contraditórias, os apoiadores inesperados e os desfechos impensáveis tornam a realidade algo tão confuso que a população russa simplesmente desiste de entender o que a cerca e, assim, torna-se silenciosa, mansa e apolítica.

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A síntese desta cosmovisão – sem cosmo e sem visão – transborda-se por meio de reportagens, matérias, piadas e memes na esfera de língua russa da internet, onde a expressão “eu não me interesso por política” (“Я не интересуюсь политикой”) é mais do que uma frase solta sobre algum tema político aleatório: é um atestado sobre o estado mental da sociedade russa como um todo.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]