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Policiais se alinham antes de uma manifestação em Caracas, 19 de março. Foto: Ronaldo Schemidt / AFP
Policiais se alinham antes de uma manifestação em Caracas, 19 de março. Foto: Ronaldo Schemidt / AFP| Foto: AFP

Antes de fugir da Venezuela no ano passado, o tenente-coronel Carlos José Montiel López às vezes sentia que estava servindo no exército de outro país.

Seus superiores em uma unidade de engenharia militar foram treinados em Cuba. Um oficial cubano comandava as aulas sobre construção de túneis. As passagens subterrâneas que sua brigada construiu no norte da Venezuela, como parte de um plano para conter uma possível invasão dos EUA, foram inspecionadas pelos cubanos.

"Eles se vestiam com roupas civis, mas nós os chamávamos pelo posto militar deles: mi comandante, mi general", contou Montiel, um homem de 43 anos que hoje mora em Miami e está em busca de asilo nos EUA. Os manuais de treinamento usados pelos venezuelanos, disse ele, vieram de Cuba e os cubanos eram "nossos supervisores e tomadores de decisão".

Política nos EUA

Cuba, de acordo com o governo do americano Donald Trump, é a principal razão pela qual o ditador Nicolás Maduro permanece no poder, dois meses depois que os Estados Unidos reconheceram o líder da oposição, Juan Guaidó, como presidente interino da Venezuela e começaram a impor algumas das mais severas sanções ao governo de Maduro.

"Nenhuma nação fez mais para sustentar a morte e a miséria cotidianas dos venezuelanos comuns, incluindo os militares da Venezuela e suas famílias, do que os comunistas em Havana", disse o secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, no início deste mês.

A responsabilização de Cuba pela miséria da Venezuela e a resistência de Maduro se mostrou acertada para a política externa e os objetivos políticos domésticos do presidente Donald Trump.

A Flórida, vista como um estado-chave para suas perspectivas de reeleição em 2020, tem a maior concentração de cubanos-americanos e expatriados venezuelanos nos Estados Unidos, muitos com bolsos cheios e inclinados a votar em republicanos. Alguns deles sentem que chegou o momento para fazer na Venezuela o que os Estados Unidos nunca conseguiram em Cuba: derrubar o governo. Ao mesmo tempo, o sucesso na Venezuela poderia enfraquecer profundamente os comunistas de Cuba.

"Acho muito difícil entender a política americana-venezuelana sem entender Cuba e o esforço de meio século para mudar o regime em Havana", disse Michael Shifter, presidente do Inter-American Dialogue, com sede em Washington. "O cálculo deles é que a mudança na Venezuela afetará uma mudança em Cuba."

Trump e seu assessor de segurança nacional, John Bolton, foram aplaudidos quando denunciaram Maduro e seus apoiadores cubanos em discursos proferidos em Miami nos últimos meses. Bolton e o senador cubano-americano Marco Rubio, republicano da Flórida, ambos defensores da queda do regime comunista de Cuba há muito tempo, encontraram uma nova via pela Venezuela.

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O senador Robert Menendez, democrata de Nova York, também cubano-americano, com um importante eleitorado cubano e o democrata no Comitê de Relações Exteriores do Senado, geralmente tem pouco a dizer sobre a política externa de Trump. A Venezuela, ele disse, "não deveria ser assunto de política interna".

"Mas acho que seria ingênuo não reconhecer que maus atores estão mantendo Maduro no poder. É a Rússia", que há muito tempo fornece dinheiro em troca de parte dos recursos petrolíferos da Venezuela, "e o regime cubano", disse Menendez. "Não há dúvida de que o aparato de segurança deles está totalmente mobilizado na Venezuela, a pedido de Maduro."

Russos e cubanos

Após relatos de que dois aviões militares russos, transportando cerca de 100 soldados, um oficial sênior e toneladas de material militar, desembarcaram em Caracas no fim de semana passado, Pompeo ligou para seu colega russo na segunda-feira para exigir que Moscou não interferisse. Pompeo disse ao ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, que os Estados Unidos "não ficarão de braços cruzados enquanto a Rússia exacerba as tensões".

Donald Trump, ao receber a esposa de Juan Guaidó na Casa Branca nesta quarta-feira (27), disse que a Rússia deveria sair da Venezuela. O vice, Mike Pence, também fez seu alerta.

"Os Estados Unidos consideram a chegada de uma aeronave militar neste fim de semana (à Venezuela) uma infeliz provocação. Hoje pedimos à Rússia que suspenda todo o seu apoio ao regime de Maduro, apoie Juan Guaidó e permaneça do lado das nações de todo o continente até que a liberdade seja restaurada", disse Pence.

Mas a maior parte da atenção do governo tem se concentrado em Cuba, que tem entre 20 mil e 25 mil militares e pessoal de inteligência dentro dos serviços militares e de inteligência venezuelanos, além da guarda pessoal de Maduro.

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O governo cubano disse que mais de 20 mil cubanos trabalham na Venezuela, mas quase todos são médicos e professores. Em entrevista coletiva no mês passado, o ministro das Relações Exteriores, Bruno Rodriguez, negou veementemente as alegações dos EUA de que Cuba mantinha um "exército privado" na Venezuela e acusou Washington de usar o "pretexto" de uma crise humanitária para preparar "uma agressão militar"contra a Venezuela.

Cubanos nas tropas venezuelanas

Mesmo sem culpar Cuba, a pressão de Trump sobre Maduro – cujo regime corrupto e opressor deixou milhões de pessoas famintas e sem acesso a assistência médica, água limpa ou mesmo eletricidade – desfruta de amplo apoio bipartidário entre os legisladores.

Elliott Abrams, o enviado especial do governo para a Venezuela, ressalta que o desastre humanitário começou muito antes de sérias sanções norte-americanas serem impostas neste ano. Medidas adicionais estão na prancheta.

"Achamos que chegará um ponto em que toda a sociedade mostrará sua rejeição a esse regime com mais força, ou seja, demonstrações maiores, mais pessoas no exército dizendo que isso não pode continuar", disse Abrams em uma entrevista.

Até agora, as deserções militares tiveram um fluxo constante, mas não em grande escala, particularmente entre os oficiais graduados, o que levou o governo americano a aumentar sua ênfase na responsabilidade cubana.

"Por que mais generais não rompem com o regime?", Abrams perguntou. "Por que não houve quebras substanciais, saídas do país?"

Parte da razão, segundo ele, pode ser porque nem a oposição nem seus apoiadores estrangeiros convenceram totalmente os militares de que eles têm um papel na Venezuela pós-Maduro. "Talvez não tenhamos falado o suficiente sobre a anistia."

Mas também há medo de captura e represálias, disse Abrams, e "os cubanos são os executores" dentro dos serviços de segurança e inteligência da Venezuela.

"Eles são os únicos que estão procurando pelo menor sinal de desafeição ao regime. Eles são os que literalmente torturam você na prisão. Eu realmente acho que o sistema nervoso do regime, neste momento, é substancialmente cubano."

Entre aqueles que desertaram, alguns apontaram o dedo para Cuba.

Em uma sessão de vídeo ao vivo, gravado de um local desconhecido e apresentado na Organização dos Estados Americanos em Washington na semana passada, o tenente Ronald Dugarte mostrou gravações de áudio que ele disse serem secretas, feitas em seu celular, de vítimas de tortura na sede da inteligência militar, no leste de Caracas.

Dugarte, usando uniforme completo, disse que abandonou sua unidade militar de contra-inteligência no final de fevereiro. Um de seus trabalhos era detectar opositores dentro das forças armadas, disse ele, acrescentando que seus treinadores eram membros da "milícia de inteligência cubana".

Entre as imagens que mostrou, estava um homem que ele identificou como o coronel Mejias Laya, sentado no chão de uma cela, vendado e com as mãos algemadas atrás de si. O prisioneiro, segundo Dugarte, foi mantido nessa posição por 30 dias e foi "brutalmente torturado".

Guerra contra o imperialismo

O general Antonio Rivero, membro sênior do exército venezuelano que se voltou contra Maduro e fugiu do país em 2014, disse em uma entrevista que a estratégia militar da Venezuela havia sido transformada, sob a influência de conselheiros cubanos, em uma "prolongada guerra assimétrica" ​​contra um novo inimigo: o imperialismo.

Rivero contou que um curso de treinamento que ele frequentou em novembro de 2008 foi liderado por um general cubano que insistiu que tudo o que foi discutido deveria ser considerado um "segredo de Estado". "Aqui estava um estrangeiro me dizendo o que era e o que não era um segredo de Estado", comentou.

Ao contrário de sua tendência impulsiva em muitas questões de política externa, a administração Trump iniciou um esforço diplomático comedido para permitir que outros países da região liderassem a oposição à reeleição de Maduro após uma votação nacional fraudulenta em maio do ano passado. Os Estados Unidos permaneceram nominalmente fora de uma coalizão dos principais países do continente, o Grupo de Lima. Formado em 2017 para mediar a crise venezuelana, a organização condenou a continuação de Maduro no poder como ilegal.

Quando Maduro foi juramentado em janeiro, foram os 14 países do Grupo de Lima – incluindo o Canadá – que primeiro disseram que não reconheceriam seu governo. Eles, junto com o governo americano, em seguida reconheceram Guaidó como presidente interino.

Alguns governos latino-americanos passaram a compartilhar a alegação do governo de que Havana está dando as cartas em Caracas – particularmente porque vários países como Colômbia e Brasil deram uma guinada à direita nas últimas eleições. Governos anteriores nesses lugares, e nos Estados Unidos, ignoraram a crescente crise na Venezuela.

"Eles deixaram uma bagunça", disse um alto funcionário de um país latino-americano que foi inundado por refugiados venezuelanos. "Eles não fizeram nada quando as coisas deram errado".

Mas as declarações do Grupo de Lima nunca mencionaram Cuba.

Manipulador de marionetes

O Canadá está "ciente de que há uma presença cubana" na Venezuela, disse um funcionário canadense, "mas nosso foco é muito na Venezuela, tentando apoiar a restauração da democracia. Até onde eu sei, nós não fomos lá para insultar os outros", disse o funcionário, que falou sob condição de anonimato sob as regras estabelecidas por seu governo.

Em seu discurso à Assembleia Geral das Nações Unidas em setembro passado, Trump culpou o "regime socialista de Maduro" pela tragédia na Venezuela, e fez apenas uma pequena referência a Cuba como sendo um manipulador de marionetes.

Em novembro, entretanto, Bolton designou a Venezuela, Cuba e a Nicarágua como uma "troika da tirania" que estava espalhando as "forças destrutivas da opressão, do socialismo e do totalitarismo".

Seu discurso em Miami coincidiu com a decisão do governo de nomear um enviado especial, um trabalho inicialmente concebido como uma política de coordenação para os três membros da "troika". Esse plano foi abandonado na época da nomeação de Abrams em janeiro, mas a insistência de que o "socialismo" no estilo venezuelano e difundido por cubanos é uma meta dos democratas para os Estados Unidos já se tornou um um tema constante da campanha de Trump.

As décadas de esforço do governo americano para expulsar os governantes comunistas de Cuba foram interrompidas pelo governo Obama, que restabeleceu relações diplomáticas com Havana e suspendeu algumas restrições econômicas. Ele voltou com tudo sob o governo Trump. Embora as embaixadas permaneçam abertas em ambas as capitais, a representação diplomática foi drasticamente cortada e novas restrições a viagens e e relações econômicas foram impostas.

Rubio disse que chega até a chamar a política da Venezuela de uma guerra contra Cuba, insistindo que se baseia no medo de uma crise mais ampla em uma região que já está lutando para lidar com o fluxo massivo de venezuelanos fugindo de sua pátria. Enquanto milhões cruzaram a fronteira para os vizinhos Colômbia e Brasil, pelo menos 74 mil pessoas pediram asilo nos Estados Unidos.

Mas, disse Rubio, "Cuba é uma grande parte disso, em termos de seu apoio ao regime" na Venezuela.

Fidel como mentor

Um forte aliado dos Estados Unidos na Guerra Fria, a Venezuela rapidamente mudou quando Chávez, um oficial militar de carreira que foi preso por uma tentativa de golpe e depois perdoado, venceu a eleição presidencial de 1999 em uma plataforma de reformas sociais para os pobres.

Chávez encontrou um mentor em Fidel Castro, de Cuba, cuja economia estatal estava sofrendo com as sanções dos EUA e com o fim da União Soviética, seu antigo patrono. Depois de sobreviver a uma tentativa de golpe em 2002, Chávez acolheu a inteligência e a assistência militar vindas de Cuba - bem como médicos e professores - em troca de petróleo gratuito e subsidiado. Sob Maduro, que assumiu após a morte de Chávez em 2013, as remessas chegaram a cerca de 100 mil barris por dia.

Embora não tenha o poder de implementar suas ordens, a Assembleia Legislativa sob Guaidó declarou estado de emergência após apagões elétricos no início deste mês e ordenou a suspensão de todas as exportações de petróleo para Cuba, dizendo que os recursos da Venezuela são necessários para "resolver a crise". Guaidó pediu "cooperação internacional" para implementar a ordem, e Bolton disse em um tweet que "as companhias de seguros e as transportadoras que facilitam esses envios gratuitos para Cuba estão agora sob aviso".

Alguns questionaram a estimativa do governo de 20 mil a 25 mil agentes militares e de inteligência cubanos na Venezuela. Questionado sobre o número, Abrams disse que, além das avaliações de inteligência dos EUA, "é um amálgama de evidências impressionistas e evidências reais".

"Apenas como um exemplo", disse ele, "como sabemos que os seguranças de Maduro são cubanos? Quando eles vão para a ONU, eles precisam pedir vistos". No geral, ele disse, os números "não são obtidos cientificamente. Eles são calculados a partir de estimativas de quantos há nesta organização, quantos estão naquela organização, quantos estão fora de Caracas, quantos estão com o exército".

William Brownfield, que serviu como embaixador dos EUA no governo de Chávez e, até 2017, como secretário de Estado adjunto encarregado de combate internacional aos narcóticos, disse que "meu palpite seria de um quarto à metade" da estimativa do governo.

"Mas mesmo que o número esteja errado em 50% ou 75%, é um número surpreendentemente alto", disse ele. "A outra metade da história é que esses caras estão literalmente na cadeia de comando."

"Já estava começando no meu tempo", disse Brownfield, mas "obviamente não era tão avançado quanto é hoje".

Quando ele partiu de Caracas pela última vez como embaixador em 2007, disse ele, uma autoridade venezuelana no aeroporto entregou seu passaporte a um cubano para verificação. "Eu sabia … porque ele tinha um pequeno broche na lapela" com as bandeiras cubana e venezuelana.

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