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A guerra no Iraque e na Síria que alcançou a França na sexta-feira (13) é, para todos os efeitos, o mais pós-moderno dos conflitos, a começar por trazer à cena um protagonista – o Estado Islâmico – cuja visão de mundo é arcaica e sectária. Some-se a isso uma resistência altamente fragmentária, interesses políticos divergentes entre os grandes atores da geopolítica, uma crise humanitária de proporções colossais e a violência extrema alçada à categoria de propaganda máxima. Em um cenário como esse, a paz é quase uma não palavra.

Para Peter Demant, autor de O Mundo Islâmico – livro que se tornou referência em língua portuguesa sobre questões geopolíticas associadas ao Islã –, não há desfecho favorável para o conflito sírio. Nesta entrevista para a Gazeta do Povo, ele fala sobre a guerra e sobre os possíveis cenários futuros para a região. Demant é doutor em História pela Universidade de Amsterdã, livre docente em História pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do Departamento de História e do Instituto de Relações Internacionais da USP.

Em um artigo publicado em 2014 o senhor afirmou que o conflito na Síria poderia desembocar em três cenários: a restauração de ditaduras ferozes, a fragmentação do território em microunidades sectárias e a expansão do califado fundamentalista. Um ano depois, podemos falar em direcionamento da situação para um desses cenários?

Em parte sim, pois tanto a fragmentação do território quanto a expansão do califado são um fato. O Estado Islâmico (EI) tem expandido seu território enquanto as outras oposições e o regime de Assad estão em um impasse. Jabhat al-Nusra e certas milícias islamistas obtiveram ganhos, mas estão também sob ataque pelo EI. Assad, que essencialmente representa os interesses dos alawitas (seita de origem xiita), e indiretamente os dos cristãos e das outras minorias, sobrevive graças ao apoio do Hizbullah libanês e do Irã, ambos xiitas. Recentemente, a Rússia também tem agido mais ativamente a favor de Assad. As mais enfraquecidas são as milícias anti-Assad, mais ou menos secularistas-democráticas, apoiadas de maneira pouco eficiente pelos EUA. Após dezenas de milhares de vítimas, enfrentamos ainda um impasse no qual as forças se equilibram e a carnificina continua.

Stringer/ Reuters

Na região, muitos acreditam em teorias conspiratórias absurdas de que o EI é uma invenção dos EUA ou de Israel. Na realidade, o trunfo mais forte do EI não são armas ou dinheiro. É sua ideologia, que atrai certa porção de muçulmanos ao redor do mundo.

A despeito da oposição militar de vários países e grupos locais, o Estado Islâmico domina um vasto território. Que suporte tem o EI para se manter tão forte?

O EI controla a metade do território sírio e um terço do iraquiano (veja mapas). As informações sobre sua expansão ulterior são contraditórias – o apetite certamente não falta. O EI inclui milhões de habitantes e algumas cidades importantes, mas também muito deserto, portanto a percentagem da população sob o reino do califado é bem menor do que sua extensão territorial faria crer. No entanto, o EI tem um programa coeso e muitos recursos. Possui dezenas de milhares de tropas irregulares mas fortes e altamente motivadas, entre elas uns 15 mil jihadistas “legionários estrangeiros”. Num primeiro momento, são as fraquezas e divisões entre seus inimigos que permitem suas conquistas, mas depois ele se mantém por terror, intimidação e doutrinação. Rumores dificilmente verificáveis alegam que por atrás da cortina existe apoio ao EI pelos sauditas ou qataris ou mesmo pela Turquia. Na região, muitos acreditam em teorias conspiratórias absurdas de que o EI é uma invenção dos EUA ou de Israel! Na realidade, o trunfo mais forte do EI não são armas ou dinheiro. É sua ideologia, que atrai certa porção de muçulmanos ao redor do mundo. É uma minoria que soma muitas pessoas, muitas delas educadas e com conhecimentos técnicos. Que um movimento violentíssimo e terrorista, com uma ideologia antimoderna, misógina, racista, homofóbica e antissemita consiga mobilizar milhões tornando-se um dos maiores desafios securitários do mundo, diz muito sobre a crise da democracia liberal e de valores supostamente universais tais como igualdade, emancipação e direitos humanos.

O Estado Islâmico tem um programa coeso e muitos recursos. Possui dezenas de milhares de tropas irregulares mas fortes e altamente motivadas, entre elas uns 15 mil jihadistas

É possível conceber o Estado Islâmico a partir do modelo de Estado, ou ele se organiza de outra forma?

Imagens de terror “teatral”– decapitações de reféns, amputações de mãos de ladrões, apedrejamento de adúlteras, execuções em massa, escravidão sexual de moças yazidis, crucificação de hereges e detonação de antigos templos – é o que mais chama a atenção graças à disseminação pelo aparelho midiático sofisticado do próprio EI. Contudo, o EI tem um projeto territorial e internacional bem definido. Tenta se consolidar como verdadeiro Estado, com hierarquia de comando político, uma polícia (que mantém uma ordem draconiana), hospitais, rede de educação (preparando moços a decapitar e se suicidar) e uma economia baseada em contrabando de petróleo e de resquícios arqueológicos, impostos especiais levados dos cristãos e até planos para uma nova moeda. Eles têm um projeto e um mapa. A visão é a de um “megacalifado” que se expandiria, em princípio, indefinidamente – daí a aglutinação de grupos jihadistas afins no Egito, Líbia, Iêmen, Afeganistão, Nigéria etc., mesmo que, por hora, a cooperação seja muito mais propagandística.

Thaier Al-Sudani/Reuters

Há jovens europeus ingressando no EI (na Síria ou em casa) e milhares de refugiados se instalando em países como a Grécia, a Alemanha e a Grã-Bretanha. Na sua avaliação, há risco de aumento do número de atentados terroristas na Europa?

Ambas essas afirmações parecem realistas aos serviços de segurança europeus. Os atentados contra Charlie Hebdo em Paris no janeiro passado forneceram um exemplo assustador do que poderia se tornar um fenômeno muito mais amplo. No entanto, o perigo é duplo. Por um lado, os jihadistas, com seu programa de destruir a sociedade ocidental (a seu olhar) “decadente” e “politeísta”, são muçulmanos verdadeiros, embora de uma tendência extremista minoritária. Por outro lado, seu alvo – ou seja, a população não muçulmana no Ocidente –, influenciada por imagens e preconceitos negativos e impressionada com o “tsunami humano” vindo do Oriente Médio, pode deixar-se tentar por generalizações islamofóbicas injustificadas. O mal que alguns muçulmanos fazem não pode implicar todos os muçulmanos. Do mesmo modo que nem todos os judeus do mundo são culpados por crimes do governo de Israel e nem todos os cristãos respondem pelas fogueiras da Inquisição. Esse tipo de “responsabilização coletiva” apenas dificulta ainda mais a convivência entre Ocidente e Oriente. Os intelectuais têm grande responsabilidade para evitar esse “efeito bumerangue”.

O senhor imagina um cenário para a Síria em um ano?

Com o presidente Obama continuando sua redução do papel internacional dos EUA, o Irã em emergência geopolítica e a Rússia entrando com força na Síria, o tabu contra a manutenção de Assad no poder está se esvaziando: o ditador cruel como mal menor. Na teoria, com suficiente ajuda russa e iraniana, é concebível que ele reconquiste o terreno perdido e se restabeleça, apesar da maioria sunita dos sírios se opor. Contudo, há inúmeros fatores imponderáveis que tornam duvidoso este desfecho. O EI é um inimigo feroz e bem organizado. O Irã (pró Assad) e a Arábia Saudita (anti Assad) poderiam sepultar sua rivalidade no interesse de um combate conjunto contra o EI – ou poderiam continuar sua colisão, como está acontecendo hoje no Iêmen. A Turquia poderia se envolver mais. As massas de refugiados sírios poderiam desestabilizar o Líbano ou a Jordânia. O conflito Israel-Palestina poderia ser deflagrado novamente. Até os próprios alawitas poderiam largar Assad. Uma fragmentação da Síria em unidades homogêneas, apesar de arriscar múltiplas limpezas étnicas e ser uma solução feia, seria talvez, ainda, o resultado menos ruim. Mesmo ela, contudo não conduziria à estabilidade regional. No longo prazo, só uma verdadeira democratização das sociedades árabes e a paz entre o Islã e a modernidade poderiam completar aquela tarefa. Para o futuro previsível, todos os desfechos são trágicos.

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