O aparelho de repressão e a propaganda russa conseguiram acalmar os ânimos internos no país durante quase todos os sete meses de guerra na Ucrânia. Mas, desde que Vladimir Putin anunciou, na semana passada, a mobilização de 300 mil reservistas para a escalada do conflito, manifestações tomam conta do país - algumas delas, radicais. Nesta semana, um homem atirou em um oficial que recrutava novos soldados, outro ateou fogo contra o próprio corpo e mais de 200 mil russos já fugiram do país.
As filas gigantescas de carros há quase uma semana, formando engarrafamentos nas fronteiras da Geórgia, Finlândia ou Cazaquistão, denunciam a desaprovação popular em relação às decisões do presidente russo. O movimento foi tão grande que a Rússia anunciou que fechará as fronteiras para homens em idade militar.
O governo do Cazaquistão anunciou nesta terça-feira (27) que 98 mil russos fizeram a travessia nos últimos dias. As filas de carros estão tão longas na fronteira que algumas pessoas abandonaram os seus veículos e seguiram a pé. Estima-se também que cerca de 50 mil homens chegaram a Tbilisi, capital da Geórgia. Apesar do país ter declarado que receberá os fugitivos, a movimentação tem causado desconforto à população local, que tem um histórico de luta separatista com Moscou.
"A preocupação com esse fluxo é grande. Tememos a desestabilização, a entrada massiva de agentes do Kremlin. A maioria aqui não tem simpatia por aquelas pessoas que não se manifestaram contra a guerra na Ucrânia, e cujos pensamentos sobre os infortúnios que o Kremlin está infligindo na Geórgia desde 1991 são desconhecidos", explicou a cientista política Kornely Kakachia, ao jornal francês Le Figaro.
Tiro e fogo contra o recrutamento
Fontes ocidentais duvidam da capacidade do exército russo de fornecer às novas tropas o treinamento e os equipamentos necessários, enquanto dezenas de milhares de folhas de alistamento já foram enviadas ao Kremlin.
“A pressa com que a Rússia iniciou sua mobilização sugere que muitos dos recrutas serão enviados para as linhas de frente com o mínimo de preparação. Eles, sem dúvida, sofrerão pesadas perdas”, disse o Ministério da Defesa britânico.
Em resposta a essa pressão sobre os reservistas, mais de 50 centros de recrutamento militar foram incendiados, segundo publicaram as mídias de oposição russas.
Em Ust Ilinsk, na Sibéria, um jovem reservista atirou no chefe do centro de recrutamento, ferindo-o gravemente antes de ser preso. Em Riazan, no oeste do país, um jovem ateou fogo contra o próprio corpo. “Esses são eventos isolados, mas, mais cedo ou mais tarde, o descontentamento se transformará em um movimento de massa”, previu o deputado da oposição Dmitry Gudkov.
Em diversas regiões da Federação Russa, especialmente nas que são anti-Moscou, homens convocados e familiares se manifestaram contra essa mobilização. Quase 2,5 mil pessoas foram presas durante os protestos.
Isso confere uma "privação arbitrária da liberdade", conforme disse a porta-voz da ONU Ravina Shamdasani a jornalistas em Genebra nesta terça-feira. “Pedimos a libertação imediata de todos os detidos arbitrariamente e que as autoridades cumpram suas obrigações internacionais de respeitar e garantir os direitos à liberdade de expressão e de reunião pacífica”, declarou Shamdasani.
"Os russos não sabem por que estão lutando"
Desde que foi anunciada a invasão russa, que o Kremlin chama de "operação militar especial", sem admitir que está em guerra, existem especulações sobre o peso da propaganda interna na Rússia e a falta de informação dada à população e, especialmente, aos soldados, sobre a situação do conflito.
"Fica cada vez mais claro que os russos não sabem por que estão lutando. Soldados russos capturados na Ucrânia já o declaravam, mas agora não restam mais dúvidas", disse João Alfredo Nyegray, professor de Negócios Internacionais e Geopolítica na Universidade Positivo.
Além disso, conforme ressaltou o professor, o forte controle estatal da mídia impede que seja calculado qual o nível de oposição a Putin no país.
"Ao somarmos as mortes suspeitas de oligarcas, bilionários e milionários, cujas empresas são importantes para a Rússia, com os recentes protestos, podemos ter um vislumbre de que Putin já não é unanimidade. A economia do país está em queda, preços em alta, há fuga de empresas e, agora, de pessoas", observou.
Apesar da revolta popular, não existem perspectivas de Putin afrouxar a repressão à oposição. No fim de semana, o presidente russo anunciou a prisão de dez anos aos que se recusam a ir para a guerra.
"Putin, na prática, está no poder desde o final da URSS – ele foi vice de Boris Yeltsin – e parece cada vez mais paranoico e apegado ao Kremlin. Toda essa situação, e em especial a repressão violenta a protestos pacíficos e as penas de reclusão aos críticos do conflito, escancara que Vladmir Putin é um ditador moderno ultra armado", concluiu o professor.